24 Junho 2022
Nos últimos dias o dicastério do Vaticano para os Leigos, a Família e a Vida, com um prefácio do Papa Francisco, publicou os “Itinerários catecumenais para a vida matrimonial”.
Lendo-o, se veem confirmados, um por um, todos os fundamentos da visão católica oficial do casamento e da vida conjugal. Também nestes últimos anos de seu pontificado, o Papa Francisco está interessado em confirmar a continuidade política e teológica com o passado. Isso foi visto no início de 2020, sobre a questão dos padres casados na Amazônia, e hoje se confirma na questão do casamento e da castidade.
O comentário é do sociólogo italiano Marco Marzano, publicado por Domani, 23-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O documento, no entanto, oferece a oportunidade de falar sobre os matrimônios católicos que, embora em declínio, antes da Covid, envolviam quase 100 mil pessoas todos os anos.
Tratei do tema há alguns anos como parte de uma pesquisa sobre a secularização da sociedade italiana e participei de muitos cursos pré-matrimoniais e depois entrevistei muitos párocos e muitos casais ativos na preparação dos noivos.
Soube assim que os militantes de quase todos os chamados movimentos católicos estavam entusiasmados com a ideia de participar de um curso pré-matrimonial que durasse muitos meses e que previsse dezenas de encontros.
Na frente oposta, em vez disso haviam se posicionado, pelo menos nos grandes centros, aqueles casais de noivos que buscavam o curso pré-matrimonial mais curto possível. Quatro cinco reuniões, nada mais.
Existem “formadores profissionais” para o matrimônio católico, verdadeiras equipes de casais especializadas na preparação dos noivos com métodos empresariais: slides, comunicação interpessoal, aconselhamento e demonstração dos benefícios para a saúde dos “métodos naturais” como alternativa à contracepção.
Mesmo para muitos padres, a preparação e celebração de um casamento de jovens estranhos à vida paroquial é uma pena. “Eles não sabem nada do catolicismo. E não dão a mínima”, disse-me um deles, referindo-se em geral aos noivos. “Eles vêm aqui porque algumas mães os obrigam. Tento despachá-los o mais rápido possível porque não suporto sua hipocrisia”.
Sem falar do que acontece durante a cerimônia: fotógrafos surgindo de todos os lugares, parentes com celulares que conversam e soltam gargalhadas, pessoas que entram e saem da igreja o tempo todo, testemunhas que olham para seus smartphones, ninguém que saiba responder, que conheça a função. “Desse ponto de vista, os funerais são um pouco melhores. Pelo menos lá as pessoas estão tristes e, embora não participem do serviço, mantêm uma atitude composta e séria”, dizia o padre.
A manutenção dos cursos é garantida por casais “maduros”, com alguns anos de casamento às costas. Na maioria dos encontros, na ausência do padre, a fé e a religião ficam em segundo plano e o tempo é ocupado por dinâmicas de grupo e reflexões sobre as belezas e as dificuldades da vida em comum.
A Igreja é chamada em causa por algum participante (e sobretudo na presença do pároco) mais para queixar-se das suas deficiências do que para elogiar o seu papel: alguém protesta pelo espaço concedido à Opus Dei, outro pela cumplicidade com os pedófilos, outro mais pela distância da mensagem do Evangelho, pelo muito dinheiro, pelos escândalos, pela posição intransigente sobre a homossexualidade, etc.
Alguma coisa está mudando? Esses dias liguei para alguns dos padres que conheci mais recentemente. Eles confirmaram a validade substancial do retrato que fiz na época.
Um sacerdote de Brescia confidenciou-me que na sua paróquia muitos noivos vêm de fora atraídos pela beleza do local: “Atualmente caso poucos jovens daqui, que frequentam a paróquia menos ainda. Muitas vezes sou contatado diretamente pelos agroturismos da região que, em nome do casal que, por exemplo, mora em Milão ou em outro lugar, negociam comigo todos os detalhes da cerimônia. O padre agora faz parte do pacote do casamento”.
As cerimônias são cada vez mais invadidas por figuras externas em relação ao celebrante. “Certa vez - revelou-me o padre Maurizio – fiquei realmente muito irritado porque durante a função aquele que atuava como uma espécie de diretor coordenava em alta voz as atividades dos vários cinegrafistas”.
Quase todos os noivos, hoje como há dez anos, vivem juntos. E todos, mesmo os não coabitantes, incluindo os católicos militantes, fazem amor com o namorado ou namorada e contam ao padre sem particulares pudores. “Mas você quer que eu fale com eles sobre castidade - exclama o padre Lucio - Eles não vêm aqui me perguntar o que devem fazer na cama. E, cá entre nós, isso está certo. Quando a Igreja deixar de ser obcecada pelo sexo, muitas coisas vão se arrumar”.
Também nas separações o papel desempenhado pelo padre é muito diferente daquele prescrito pelos documentos do Vaticano. Todos os padres que ouvi confirmaram não se empenhar para impedir a todo custo o rompimento do casamento.
“Jovens católicos que se unem e se separam como os outros. Às vezes eu os ajudo a fazer isso de maneira civilizada. As separações são dolorosas e quando as pessoas chegam a tomar esse caminho significa que pensaram bem. Como posso me intrometer, persuadi-los a desistir?”. Com todas essas limitações, os cursos pré-matrimoniais ainda desempenham funções importantes, muitas vezes desvinculadas do contexto puramente religioso. Ajudam os casais a pensar no sentido de estarem juntos, a se confrontar com outros casais.
Os cursos representam o cenário em que emergem valores profundos, também relevantes numa perspectiva cristã. Por exemplo, aquele da fidelidade que, como atestam muitas pesquisas sociológicas, é crucial para as jovens gerações, que o consideram não em termos formais, mas em termos sentimentais e morais, como expressão de sinceridade e de liberdade.
São elementos que escapam completamente aos redatores de mais um inútil documento magistral preocupado apenas em reafirmar uma verdade eterna e a superioridade moral de quem seria seu depositário, a instituição eclesiástica. Observar o rebanho pode ensinar que o rebanho não é apenas o repositório de pecados. Talvez um dia entendam isso também em Roma.
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Matrimônios, a visão do Vaticano é distante dos casais reais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU