05 Junho 2023
Bruno Latour (1947-2022) foi um dos mais versáteis e influentes pensadores franceses. Um autêntico intelectual. Formado em filosofia e antropologia, suas propostas em matéria de ecologia política se tornaram uma referência de autoridade.
Hábil (e entusiasta) conhecedor dos processos de pesquisa científica, revirou a visão convencional da ciência baseada no dualismo natureza e sociedade, abordando diferentes assuntos: a transformação da luta de classes marxista, a inter-relação entre o que é humano e o que não é, a sociedade como um processo em constante construção, o fim da modernidade..., ao mesmo tempo em que defendia o coletivo e a concretização do compromisso ecológico.
O jornalista Nicolas Truong (Paris, 1967), que acaba de publicar suas longas conversas com o filósofo no livro Bruno Latour: Habitar la Tierra (Arcadia), mergulha em seu pensamento.
A entrevista é de Esther Peñas, publicada por Ctxt, 02-06-2023. A tradução é do Cepat.
Sua teoria mais conhecida, a do “ator-rede”, é uma abordagem metodológica e epistemológica que propõe estudar a realidade a partir de um mapeamento das relações que são simultaneamente materiais (entre coisas) e semióticas (entre conceitos) e que, por sua vez, envolvem as pessoas, suas ideias e tecnologias, que devem ser analisadas conjuntamente. Esta é a contribuição mais importante de Latour, um pensador de enorme influência, sobretudo entre os jovens?
Foi no último período de sua trajetória que conseguiu fazer o grande público, sobretudo, como diz, os mais jovens, compreender o que considero ser a sua maior contribuição: a ideia de que vivemos em um mundo diferente, novo.
A densidade de seu pensamento dificulta o acesso a seus livros, por isso me concedeu essas entrevistas em que fala de áreas que o preocupavam e interessavam: direito, religião, ciência, técnica e tecnologias..., mas sua grande contribuição é nos fazer entender que estamos em uma nova terra.
O que nos falta para sermos realmente modernos?
Esse é um dos pensamentos paradoxais de Latour, que dizia que nunca fomos modernos. Não somos porque embora pensássemos assim, não é possível viver de modo independente da natureza. Os modernos traçaram uma diferença radical entre o homem e a natureza, mas Latour demonstrou que isso era uma falácia.
Galileu explicou o que significava para o homem olhar para o céu, o sol e o universo, exortou para isso. Latour afirmou que se trata do contrário, baixar os olhos e olhar a terra. Não para o planeta, não para o globo, mas para o pequena película de terra em que vivemos.
Temos que viver preocupados com esse pedaço de terra, porque somos os seres vivos que criam suas condições de vida. E, aqui, novamente, relacionamos com essa ideia que transmitiu, especialmente às gerações jovens, de que o mundo mudou, ao ponto de já não ser o mesmo. Ele a formulou de uma forma muito singular, mas também coletiva.
Latour é um dos mais estimulantes pensadores do coletivo. De fato, uma de suas afirmações mais sugestivas é a de que “a sociedade não existe”, mas deve ser construída continuamente, como se fosse uma associação, entre todos.
Sim, trabalhava sempre em grupo. No Instituto de Estudos Políticos, criou muitos grupos de trabalho e pesquisa, considerava que eram necessárias diferentes perspectivas e o compromisso de todos para mudar as coisas, para conhecê-las.
Entendia essa nova ecologia a partir do coletivo, mas também trabalhava em grupo porque estava convencido de que a figura do filósofo que divulga seus conhecimentos de forma vertical não fazia mais sentido. Em sua avaliação, trata-se de criar um intelecto coletivo. Nisso, era muito parecido com o sociólogo Pierre Bourdieu. Eram muito críticos um ao outro, mas ambos apostaram no coletivo.
O sucesso de Bruno Latour vem de sua forma de entender e explicar a ecologia, e chegou a ela tendo estudado filosofia e vindo de uma família burguesa que se dedicava ao comércio do vinho. Os filósofos buscaram reduzir o mundo a um princípio, a uma síntese; as religiões, a um só deus; os meios de comunicação, a uma manchete. No entanto, o mundo não pode ser reduzido a uma só coisa.
Latour tinha muita clareza a esse respeito, conhecia a complexidade e a multiplicidade de nuances que derivam das relações entre os elementos envolvidos. Para explicar a questão, escreve seu livro Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica, optando por um realismo construtivista em que os fatos científicos são elaborados no laboratório, uma vez que se parte de fatos experimentais.
O que Latour faz é aplicar aos cientistas os mesmos métodos que os etnólogos e antropólogos utilizam para conhecer os povos africanos, demonstrando que a ciência é algo muito particular, que tem controvérsias, que requer bricolagem, que as coisas mais mundanas também acontecem nos laboratórios e que como fruto da interação de todas essas variáveis surgem as verdades científicas.
Percebe que vivemos estabelecendo vínculos muito fortes com objetos e coisas que não são humanas: animais, aparelhos etc. Ele admirava a tecnologia, via nela uma aliada. Mas, sempre terminava no mesmo ponto: a terra que habitamos não é mais a que conhecemos. Por isso, retoma o conceito de Gaia, para personificar a Terra, para evidenciar que é impossível a não interdependência entre sujeito e objeto.
Não foi o amor aos grandes espaços naturais que o levou à ecologia, mas o estudo dessa troca entre o humano e o não-humano. A pandemia nada mais fez do que evidenciar o que ele, há anos, anunciava: que não é possível a separação entre cultura e natureza, como pensavam os filósofos modernos, com esse erro de perspectiva.
Imbricado na ideia de que, iniciada a era do Antropoceno, “não habitamos mais a mesma terra”, Latour considerou que o desafio do pensamento político reside integralmente na questão ecológica. Tudo se reduz, então, a uma questão ecológica?
De fato, essa era a visão de Latour e de outros pensadores, como o antropólogo Descola, cujo trabalho sobre os povos indígenas da Amazônia era bem conhecido de Latour. Todos os conflitos que enfrentamos hoje têm a ver, de uma forma ou de outra, com a habitabilidade do planeta. Não apenas em regiões distantes, desertificando-se a marchas forçadas.
Pensemos nos gravíssimos conflitos em Sainte-Soline, no centro-oeste da França, onde milhares de cidadãos protestaram contra a construção de infraestruturas de armazenamento de água porque se opunham à que um bem como a água fique nas mãos da agroindústria. Foi um conflito muito violento, com mais de duzentos feridos, duas pessoas em coma, e outra que ainda está entre a vida e a morte.
É o primeiro grande conflito europeu que tem a ver com a adaptação ao aquecimento global. Não se trata de uma rodovia que agride a biodiversidade, não se trata de escolher entre a energia nuclear ou a eólica, trata-se de escolher um modelo ecológico.
Por que a ecologia é, segundo Latour, a nova luta de classes e o que a distingue da clássica luta de classes?
Ele apostava no surgimento de uma nova classe social, uma classe geossocial, ecológica, da mesma forma que, no século XIX, surgiram socialistas e liberais. Essa nova classe recomporia a luta clássica, pois para defender um rio, exemplo que era dado por Latour, essa nova classe poderia se aliar a parceiros que, na antiga luta social, talvez fossem inimigos.
A luta de classes, hoje, é uma questão de habitabilidade do planeta, para além da pobreza e a desigualdade. Latour soube ver que as forças de produção são forças de destruição. Nisso se diferencia da clássica luta de classes. Tanto os liberais quanto os marxistas defendem as forças produtivas. Nessa luta entre burgueses e proletários, Marx via a resolução no controle das forças produtivas pelas classes operárias.
Latour sabe que a questão não é a distribuição do fruto das produções, nem sobre quem tem as forças produtivas, mas o fato de que as forças produtivas destroem e que é necessário neutralizá-las. Ele me dizia que, às vezes, não escrevia porque sabia que o simples ato de usar seu computador e seu teclado impactava no degelo. “Se eu escrevo, uma geleira derrete em algum lugar do mundo”, dizia-me.
Tinha muita consciência do nível de inter-relação das coisas. Constantemente, tanto ele quanto seus colaboradores e discípulos demonstravam esses vínculos. Por exemplo, a caneta com a qual você está anotando o que eu digo, Latour a teria relacionado a uma mina situada em algum país distante, à geração de plástico que causa a sua produção etc.
No consumo, há sempre interdependências que impactam degradando o planeta. Um rio poluído afeta não só os animais que vivem ao seu redor, os humanos, mas também as plantações de soja no Brasil, a geração de resíduos etc. Por isso, toda questão política, hoje, é ecológica.
Não é quem controla a produção, mas a própria produção que destrói o planeta. Este é um pensamento revolucionário. A questão é como prosperar ao mesmo tempo em que se mantém as condições habitáveis do planeta. É um grande desafio.
Onde buscar “a força de não ceder à angústia, nem à catástrofe”, em relação à emergência climática?
Tem razão, quando ouvimos notícias sobre a mudança climática, oscilamos entre o medo e o aborrecimento, talvez porque os meios de comunicação sejam fascinados em enumerar as catástrofes, “adoram” falar do desaparecimento de espécies, da formação de ilhas de resíduos de plástico, mas não aprofundam sobre o que causa tudo isso.
Latour desconfiava das manifestações ou mobilizações do tipo “salvemos o planeta”. O planeta é algo muito abstrato, ele preferia que cada pessoa se mobilizasse por aquilo que conhecia bem, pelas áreas verdes de seus bairros, contra a sua gentrificação, para protestar contra a construção de grandes centros comerciais...
Ou seja, concentrar-se na luta e não a dispersar.
Sim, Latour era pragmático e concreto. Defendamos este rio. Este parque. Este bairro. Dessa forma, as pessoas se envolvem muito mais.
É por isso que ele resgata os cadernos de reclamações da Revolução Francesa, para estimular cada cidadão a descrever como, onde e do que vive, mas não se limitar à queixa?
Sim, exato. A primeira coisa que um cidadão precisa fazer é saber do que vive, quais são os vínculos que estabelece, como é o lugar onde está. É preciso encontrar uma causa com a qual se comprometer pessoalmente e defendê-la coletivamente. E fazer isso a partir do amor, do amor a um bosque, um rio, um bairro... não esqueçamos que a crise ecológica é uma crise da sensibilidade, porque perdemos a sensibilidade à vida.
Nós a perdemos ou a substituímos pela paralisia?
Sim, é uma nuance interessante... coisificamos a natureza, nós a transformamos em objeto e pensávamos que os objetos não têm relação conosco, mas os objetos nos definem, a técnica é uma relação entre o que é humano e o que não é. A televisão, por exemplo, vemos o mundo através dela. Privilegiamos o morto sobre o vivo.
Como estabelecer uma relação “viva” entre o que é humano e o que não é?
A sociedade não existe, já falamos a esse respeito. O social não é a essência da sociologia, mas a ciência das associações. Latour gostava do coletivo porque remetia aos coletores. Cada um deve contribuir com algo para o comum. Para que uma sociedade se sustente, deve haver associados, de forma permanente, porque a sociedade não existe por si mesma, mantém-se por associações, não só entre seres humanos, não só entre homens e mulheres, humanos e não-humanos, mas também entre animais, e entre objetos, e tudo isso produz inter-relações que passam pelo “vivo”, como você diz.
O problema é que consideramos a sociedade pronta, e Latour é contrário a isso, porque é algo que está sendo construído continuamente, por isso pode se reinventar, modificar, mudar. Ele é reprovado por certo relativismo, mas é um filósofo relacionista, não reducionista. É necessário passar do abstrato ao concreto, caso contrário, se não tivermos consciência de nossas interdependências com o não-humano, nós nos tornamos um vírus para o planeta.
As propostas de Latour estão cheias de otimismo, de entusiasmo, porque confia na possibilidade de cada um de nós conciliar suas forças e possibilidades de mudar as coisas. Podemos mudar o mundo, não existe qualquer fatalidade. Escolhemos o modo de produção, mudá-lo está em nossas mãos.
Às vezes, parece impossível pensar em uma alternativa ao capitalismo…
Podemos sair do capitalismo. Nós o criamos, estabelecemos nossas condições de vida, trata-se de nos interessarmos por essa pequena película de terra em que vivemos e que devemos cuidar. Em todo caso, entramos no capitalismo, portanto, antes não estávamos nele.
Hoje, existem inúmeras propostas de antropologia anarquista que lembram as formas de sociedades igualitárias que subsistiram compartilhando bens, funcionando por centenas de anos. O capitalismo não é um destino fatal, não é nosso destino final, podemos nos bifurcar. Latour pensava assim. Não será fácil, mas tampouco impossível.
Na linha histórica, o capitalismo não é tão importante. Há muitos ecolugares que, há anos, estão experimentando outras formas de vida, Latour os conheceu. É preciso resgatar os socialistas utópicos, fazer propostas, inventar novas formas de vida comum, outras formas de fazer, produzir, governar, apostando em comunidades em que se possa viver de forma mais harmoniosa, com autonomia libertária. As pequenas experiências nas quais ninguém apostava, como as mútuas, as mutualidades, acabaram se consolidando.
Será necessário ler mais Gramsci, Kropotkin, Simone Weil e Anselmo Lorenzo...
Começarei pelo último, que não conheço.
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“A luta de classes é uma questão de habitabilidade do planeta”. Entrevista com Nicolas Truong - Instituto Humanitas Unisinos - IHU