31 Março 2019
Bruno Latour (Beaune, 1947) é um dos filósofos franceses mais influentes da atualidade. Acaba de publicar Down to Earth. Politics in the New Climatic Regime (Com os pés no chão. Política no novo regime climático, em tradução livre). O livro faz um diagnóstico sobre um mundo onde tudo é perturbado pela mudança climática e permite compreender fenômenos que vão das desigualdades até a globalização, passando pela ascensão do populismo. A obra também é um pedido de ação e um manifesto europeísta. E, finalmente, uma síntese do pensamento de um precursor de disciplinas como a sociologia da ciência sobre os fatos e a verdade.
A entrevista é de Marc Bassets, publicada por El País, 31-03-2019.
O senhor contou que uma vez, sobrevoando a baía de Baffin numa viagem ao Canadá, viveu um momento revelador ao ver como o gelo retrocedia. O que aconteceu?
Olhando pela janela, percebi que a placa de gelo, por sua forma, resumia o problema que vivemos. Ao estar no avião eu já não assistia a um espetáculo, mas o estava modificando, pois o CO2 que a aeronave emite influi na placa de gelo. Antes, esse espetáculo – o da placa de gelo vista do avião – teria tido um caráter sublime. Agora é complicado senti-lo assim. Se te dizem que você é responsável pelo que vê, o sentimento é diferente, é uma forma de angústia.
Essa é a vertigem da qual fala no livro?
Antes, a angústia que a natureza nos causava vinha do fato de que éramos pequenos demais, e a natureza era imensa. Agora temos o mesmo tamanho, influímos em como a Terra se comporta. E é desorientador, por exemplo, para os jovens que se manifestam [contra a mudança climática]. Da extrema esquerda à extrema direita, todas as posições políticas estão marcadas pela angústia.
No caso dos coletes amarelos ou dos eleitores de Trump, a angústia é mais econômica que ambiental, não?
É como se o solo do país onde estou já não me fosse favorável. Não é ecológica no sentido da natureza, mas é do território. O problema é esse sentimento de perder o mundo. Já existia antes, mas eram os artistas, os poetas, que o sentiam. Agora é um sentimento coletivo.
Segundo o senhor, uma elite, ante essa situação, diz: “Vamos embora”. Abandona o barco.
Comparemos isso com as reações fascistas dos anos trinta. Há semelhanças, uma espécie de retirada nacional, étnica. Mas naquela época eram projetos de desenvolvimento.
Desenvolvimento em que sentido?
Era uma loucura, mas era um projeto de civilização. Agora estamos diante de um projeto para desfazer os vínculos, abandonar as construções. A reação mais extraordinária de Donald Trump consiste em dizer: “Nós não temos problemas de mudança climática; é algo que ocorre na casa de vocês, não na nossa.” Ele considera que o continente americano não está sujeito aos mesmos problemas climáticos que a Europa ou a China. Isso é uma novidade.
Mas Trump é uma exceção, não? O Acordo de Paris para combater a mudança climática foi firmado pelos Governos do mundo todo, o que poderíamos chamar de elites.
Essa ideia de abandonar as obrigações é compartilhada agora também pelo Brasil, e consiste em dizer: “Vamos embora.” Essa é a versão Trump, mas existe outra variante high tech que diz: “Nós também vamos, mas rumo a um futuro tecnófilo extremo.” É o projeto californiano, pós-humano, Marte, a inteligência artificial, os robôs. O interessante é que agora existem pessoas que vivem em planetas diferentes.
E outras, diz o senhor, que fogem para o âmbito local.
Sim, a reação dos que se sentem abandonados pelos que vão embora para Marte é regressar ao Estado-nação como o imaginam, um Estado-nação imaginado, uma ficção. O exemplo é o Brexit. Ao contrário dos fascismos, não há um retorno a uma conquista territorial, e sim a um Estado-nação vazio de todo sentido prático. Então alguns vão para Marte, outros regressam ao planeta nacional, que também é abstrato, e no meio estamos os infelizes que pensamos que, em um momento ou outro, será preciso aterrissar: reconciliar a economia, o direito, a identidade com o mundo real do qual dependemos.
Aonde regressar exatamente?
Ao [plano] terrestre. Pode parecer estranho: por que aterrissar se já estamos na Terra? Mas os europeus, os ocidentais, temos vivido numa Terra muito utópica. Imaginávamos que ela se desenvolveria ad infinitum, sem limites. Mas o sonho de que o planeta se modernizaria indefinidamente nunca foi verificado, não tinha fundamento material. Desde o século XIX, com o carvão e o petróleo, a economia havia se tornado infinita. E há uma angústia geral por esse desajuste.
Diante disso, pode haver uma ideia compartilhada da verdade?
As pessoas se queixam das fake news e da pós-verdade, mas isso não significa que sejamos menos capazes de raciocinar. Para conseguir manter um respeito pelos meios de comunicação, a ciência, as instituições, a autoridade, deve haver um mundo compartilhado. É um tema que estudei no passado. Para que os fatos científicos sejam aceitos, é preciso um mundo de instituições respeitadas. Por exemplo, sobre as vacinas se diz: “Estas pessoas ficaram loucas, estão contra as vacinas.” Mas não é um problema cognitivo, de informação. Os que são contra não serão convencidos com um novo artigo na revista The Lancet. Essas pessoas dizem: “É este mundo contra este outro mundo, e tudo o que se diz no mundo de vocês é falso.”
Os fatos não existem independentemente desses mundos?
É preciso sustentar os fatos, não vivem sozinhos. Um fato é só um cordeiro frente aos lobos.
Quem são os lobos?
Os que devoram os fatos. Um fato deve estar instalado numa paisagem, sustentado pelos costumes de pensamento. São necessários instrumentos e instituições. As vacinas são o exemplo de um fato que precisa de uma vida pública. Se eu sair pela rua com uma seringa tentando vacinar as pessoas, serei considerado um criminoso. Se a vida pública é deteriorada por pessoas que consideram que – não importa o que você disser – este não é o mundo delas, os fatos não servem para nada.
Mas nesse caso há um fato: as vacinas são úteis, não importa se os outros acreditam ou não.
No meu mundo e no dos leitores do EL PAÍS, sim. Mas nem todo mundo lê o seu jornal, nem tem um doutorado, nem confia nas instituições médicas, nem vive num país onde o Ministério da Saúde apoia as vacinas. É preciso muita coisa para sustentar os fatos.
Os dois mundos valem o mesmo?
Não, mas estão em guerra. É um problema geopolítico. Antes, eram problemas de valores ou ideologia, mas num tabuleiro estável. Agora, não. O mapa está em discussão. “Na América não há problema climático, isso é falso”, diz Trump.
Qual é a solução?
Se aterrissarmos no terrestre, poderíamos começar a definir um mundo comum. Então já não poderíamos nos permitir dizer que não há mudança climática, que os problemas de saúde não nos dizem respeito, que a reprodução das abelhas não é nosso problema. Voltaríamos a discutir entre civilizados.
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“O sentimento de perder o mundo, agora, é coletivo”. Entrevista com Bruno Latour - Instituto Humanitas Unisinos - IHU