16 Mai 2023
"Não escapa à diplomacia vaticana que o governo de Kiev só pode usar esses tons de ultimato porque se sente diretamente protegido por Washington. Enquanto for afirmado nos Estados Unidos que a paz só pode ser feita dentro das condições estabelecidas pela Ucrânia, a liderança de Kiev pode insistir na pressão", escreve Marco Politi, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 15-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Até onde é possível lembrar, nunca havia acontecido que um chefe de Estado, encontrando-se com o pontífice, abrisse um grande caderno sobre a mesa de conversa com os pontos a serem especificados.
Um líder vai ao Papa para falar, mas também para escutar. Para apresentar a sua visão e ao mesmo tempo acolher a perspectiva, que vem de uma significativa autoridade ético-política, certamente desprovida de divisões militares e de poder econômico, mas carregada de uma memória secular. De cabeça fria, passado o encontro, fica claro que o presidente ucraniano não tinha nenhuma intenção de escutar a palavra de Francisco.
A linguagem corporal fala bastante. Ao chegar ao prédio da Aula Nervi, diante do pontífice, Zelensky às vezes pareceu atrapalhado, como quem não sabe exatamente como se sentar, como cumprimentar, como iniciar uma conversa. Zelensky sabe o que é um papa e o que é este papa argentino. Mas seu objetivo não era uma troca de ideias.
Seu objetivo era encurralar Bergoglio num canto, sabotar qualquer hipótese de mediação vaticana, obrigá-lo a se confrontar com os insistentes pedidos – e propagandísticos – do líder ucraniano:
1) juntar-se à condenação de Putin como criminoso,
2) pressionar para que seja aceito como único resultado o chamado “plano Zelensky”, que plano de paz não é, no máximo uma lista de condições que uma Rússia de joelhos deveria ser obrigada a aceitar, porque a chantagem das sanções continuaria mesmo depois da retirada do exército russo.
Por isso o caderno colocado sobre a mesa com os pontos bem à vista. Relativos em parte a questões humanitárias (ajuda à população, trocas de prisioneiros, repatriamento das crianças) e sobretudo a pedidos políticos culminando no axioma de que a única paz é aquela imposta por uma Ucrânia vitoriosa e nos exatos termos decididos pela liderança ucraniana.
Assim, parece evidente o abismo entre o objetivo de Francisco, orientado para um cessar-fogo para favorecer uma paz negociada, e a orientação de Zelensky. Fosso evidenciado até pelos presentes trocados. De parte do pontífice a escultura de bronze de um ramo de oliveira; de parte do presidente, ícones forjados no ódio ao inimigo invasor. Uma Nossa Senhora pintada em uma chapa à prova de balas com as cores ucranianas arranhadas simbolicamente pelos bombardeios de Moscou e outro quadro com Nossa Senhora segurando nos braços uma criança sem rosto, toda preta, "apagada": para lembrar as crianças mortas no conflito.
Presentes para enfatizar que o inimigo é bárbaro e não se pode tratar com ele. E menos ainda se querem mediadores indesejados.
Vinte e quatro horas antes da chegada de Zelensky ao Vaticano, a linha da liderança ucraniana havia sido traçada pelas declarações do assessor presidencial Mykhailo Podolyak: “Não existe um meio-termo… Existe um agressor absoluto, a Rússia, que veio para matar e destruir… E existe a Ucrânia que está defendendo seus próprios filhos e territórios… Qualquer tentativa de dizer simplesmente 'parem a guerra, venham para a mesa de negociações" significaria obrigar a Ucrânia à derrota”.
Com um corolário explicitamente dirigido ao Papa Francisco: “Talvez o Vaticano esteja pronto para demonstrar uma compreensão muito mais profunda por esses temas. Talvez o Vaticano esteja pronto para reconhecer que a Rússia... desencadeou uma grande guerra não provocada”. Um tapa na cara da política da Santa Sé, acusada de não ser capaz de uma análise adequada e de não querer reconhecer a agressão de Putin. Tapas desse tipo foram reservados no passado pelos colaboradores de Zelensky para a França, quando Macron tentava se orientar em uma linha independente, e para a Alemanha, quando Berlim se mostrava relutante à escalada dos armamentos.
Agora é a vez do Vaticano. Na noite de sábado, Zelensky, de forma um pouco mais polida, reiterou: “Com todo o respeito por Sua Santidade, nós não precisamos de mediadores”. Existe um único plano de paz e é aquele ucraniano.
A única reação do Vaticano: no Angelus de domingo, o pontífice não mencionou o encontro com Zelensky. Sinal de que não o considera em nada produtivo a fim de conter a escalada para um conflito cada vez mais sangrento e perigoso.
Desse ponto de vista, Francisco está sozinho na Europa. Alemanha e França desistiram de desempenhar qualquer papel. Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, a esta altura apresenta-se lançada numa retórica guerreira, que desemboca no paradoxal. Ontem, em Aachen, quando Zelensky recebeu o Prêmio Carlos Magno, exclamou: "Estamos ao lado do povo ucraniano até que, juntos, alcancemos o impossível".
Além disso, não escapa à diplomacia vaticana que o governo de Kiev só pode usar esses tons de ultimato porque se sente diretamente protegido por Washington. Enquanto for afirmado nos Estados Unidos que a paz só pode ser feita dentro das condições estabelecidas pela Ucrânia, a liderança de Kiev pode insistir na pressão.
No entanto, o Vaticano insiste em permanecer acima dos contendores. Francisco não tem nenhuma intenção de voltar aos tempos de Pio XII, quando a Igreja era protagonista da Guerra Fria. Francisco prefere que hoje a Santa Sé esteja do lado daqueles Estados (a maioria da população mundial) que querem acabar com o conflito e consideram ultrapassada a ideia de uma hegemonia unipolar no planeta.
É sintomático que em uma recente entrevista ao jornal dos bispos Avvenire o chefe da Igreja Greco-Católica Ucraniana, D. Shevchuk, tenha ressaltado que o governo ucraniano "não entende a ideia de uma conferência (mundial, com todos os novos protagonistas da cena internacional) sintetizada na fórmula Helsinki-2". É singular essa aversão de Kiev a uma conferência internacional para estabelecer as novas regras de convivência do planeta no século XXI. Mas a aparente estranheza pode ser explicada se olharmos para Washington, que não quer ouvir falar sobre isso.
No grande risco geopolítico que se abriu com a guerra ucraniana, Zelensky e seus protetores talvez subestimem a lucidez de uma potência desarmada, que de João XXIII a João Paulo II, de Paulo VI a Francisco demonstrou que não é exatamente boba ao avaliar as dinâmicas internacionais.
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Zelensky queria encurralar o Papa, mas a Santa Sé não é boba. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU