17 Abril 2023
Com uma grande xícara de café e a luz do sol entrando por sua janela, a filósofa Judith Butler aparece via Zoom. Figura central no pensamento feminista e pós-estruturalista, esta autora publicou Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990) e Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo” (1993), livros essenciais para entender os estudos de gênero.
Professora da Universidade de Berkeley, durante uma manhã californiana, Butler conversou com La Tercera sobre seu novo livro, Que mundo é este?, em que escreve sobre covid, que tipo de planeta vivemos hoje, como torná-lo habitável e qual seria uma definição de vida bem vivida.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 07-04-2023. A tradução é do Cepat.
Seu livro reflete sobre os efeitos da pandemia, que embora pareça que já passou, não é bem assim...
Claro, ainda existem milhares de pessoas morrendo de covid, todas as semanas, e muitas pessoas que não puderam retomar suas vidas públicas, porque estão imunocomprometidas ou em quimioterapia, porque as vacinas não funcionam para elas. Há ainda os que estão sequestrados, isolados e morrendo, mas, mesmo assim, nossos políticos dizem: isto já passou.
E é claro que essa declaração é para reabrir os mercados, para reassegurar ao público que está tudo bem, mas sabemos que nem tudo está bem e que, mesmo quando as pessoas contraem o vírus, permanece a pergunta: será leve, terei covid por muito tempo?... Penso que existe uma certa negação, na qual estamos caindo.
Em seu livro, você diz que hoje vivemos em mundos diferentes e sobrepostos. Como podemos encontrar um terreno comum, vivendo nesses mundos diferentes?
Bem, penso que o quadro que precisamos traçar é o de que estamos todos conectados, somos todos interdependentes nesta Terra, com outros humanos e com outras formas de vida, na própria Terra. É o que estamos vendo bruscamente com a mudança climática. E, no entanto, experimentamos isso de diferentes maneiras: alguns de nós são muito privilegiados, contamos com enormes recursos, e outros só lutam para sobreviver, e uma grande quantidade de pessoas não sabe se terá ou não um futuro econômico seguro.
Penso que estamos conectados pela vulnerabilidade comum, todos podemos adoecer. Se temos os recursos para nos proteger da doença ou mesmo de uma possível morte é uma questão de como a riqueza é distribuída, como a classe foi construída ao longo do tempo, as diferenças de classe. Portanto, devemos aceitar que, independentemente de qualquer história que contemos, esta inclui tanto nossos pontos em comum como as profundas desigualdades sociais e econômicas que existem entre nós.
A covid iluminou e também intensificou as desigualdades, como escreve...
Sim. Estar sem teto, estar sem casa, sempre foi muito difícil, a pessoa fica exposta quando não está protegida do perigo ou da violência. É uma forma de abandono social, motivo de grande vergonha para o resto de nós e, obviamente, deveria ser corrigido por meio de políticas governamentais. Todos deveriam ter o direito de encontrar refúgio.
Contudo, estar desprotegido diante da covid intensifica essa situação: não eram apenas os problemas de pobreza e exposição às doenças e violência nas ruas, também não havia como se proteger da doença sem muros ou forma de fechar a porta, de se distanciar de outras pessoas que podem ser portadoras do vírus... As taxas de morbidade e mortalidade nos mostram que a pobreza torna mais provável que você morra em condições de pandemia.
O paradoxo é que a covid deveria ter nos ensinado que não se pode realmente dissociar o bem-estar próprio do bem-estar dos outros. Proteger-se sozinho não era a solução, exigia-se a vacinação em massa, o acesso a cuidados e todas as outras medidas que vimos... Estamos caminhando para um retorno ao mesmo de sempre?
Eu diria que existem duas tendências, uma delas é voltar ao de sempre, o mais rápido possível. “Ok, foi terrível, superamos, acabou, vamos nos concentrar nos prazeres, no trabalho, curtir as grandes festas, seja aonde for”. Claro que há aqueles que fogem o mais rápido possível do cenário de confinamento, doença, morte e luto. Contudo, também acredito que os movimentos sociais que se destacaram diante da covid são aqueles que reconhecem o que eu chamaria de vulnerabilidade transnacional à doença e à morte.
A covid não dava atenção às fronteiras nacionais, não precisava de passaporte para cruzar fronteiras; não entendia de nações, nem de nacionalismos, nem de território. Então, nós que buscávamos oferecer atenção e apoiar redes de cuidado, tínhamos em conta que não é só o bairro local – que é importante – e não é só dentro do marco nacional, ainda que isso também seja importante.
Penso que o chamado, especialmente entre as feministas, foi por redes de cuidado transnacionais, reivindicando o direito de ser apoiada por infraestruturas de cuidado, como um direito que todos deveriam ter sem importar onde vivam. Então, (há) os movimentos pelo atendimento médico, para reverter o desastre climático, esses movimentos para “desdomesticar” o cuidado, ou seja, fazer do cuidado algo que pertença à nossa vida pública, e por essa compreensão global de nós mesmos. A luta contra o racismo, a morte prematura de tantas pessoas negras e pardas em todo o mundo por não terem tido acesso a um bom e acessível atendimento à saúde...
A política de saúde coloca o corpo no centro da política. Quais corpos podem viver, quais corpos não? Quem está sendo apoiado, quem não? Quem pertence à comunidade? Quais vidas importam e quais não? Essas formas de desigualdade vieram à luz e penso que a luta contra a desigualdade se intensificou.
Então, suponho que a resposta à sua pergunta é sim, vejo que o mundo se move em duas direções: uma é a luta contra a desigualdade social e econômica, que às vezes é fatal, e a outra é uma espécie de negação maníaca que acompanha certo tipo de lógica de mercado e paixão de mercado.
Você considera que existe outra forma de definir e ver a liberdade individual. Não só as liberdades pessoais, mas também a consciência do destino das outras pessoas que nos cercam. É uma definição humanista, independentemente de qualquer ideologia, certo?
Ou talvez eu chame isso de ética. Muitas pessoas estavam preocupadas que suas liberdades pessoais ficassem restringidas e que fossem trancafiadas. Queriam poder viver suas vidas como fazem comumente. E, é claro, a resistência às máscaras e ao protocolo de distanciamento social, que também foi uma restrição à liberdade pessoal.
Algumas pessoas, que se irritaram muito com as restrições às liberdades pessoais, acabaram sendo egoístas e até (desenvolveram) certa forma de conduta que colocava em risco a si e aos outros: “Não vou usar máscara, mesmo que esteja doente e que as taxas de transmissão sejam muito altas, porque é minha liberdade pessoal fazer isso”.
Agora, o que penso que aconteceu para muitos de nós, diante da covid, foi o reconhecimento de que, na verdade, estou interconectada com outras pessoas, esta é uma doença do mundo interconectado. Esta doença ilumina nossa interconexão: o que eu faço a você, você pode fazer comigo.
Nossas vidas estão encadeadas umas às outras. Não somos apenas indivíduos com esta liberdade pessoal, que querem estar livres de qualquer freio. Também estamos buscando descobrir como viver em liberdade uns com os outros, como seres sociais que têm o poder de provocar danos uns aos outros e o poder de afirmar e apoiar uns aos outros.
E a pergunta é: exerceremos a liberdade de um modo coletivo que reconheça nossas responsabilidades para com os outros? Posso ver redes de cuidado e novas formas de relações que reconhecem que estamos em uma situação comum e que para avançar temos que reconhecer realmente essa comunidade.
Penso que a covid, curiosamente – odeio a covid –, iluminou, mais uma vez, o modo como nossas vidas estão interconectadas. Isso dá um sentido diferente à liberdade coletiva: agimos juntos para sermos livres. Na verdade, trabalhamos uns para os outros e encontramos nossa liberdade nesse tipo de responsabilidade e coletividade.
Isso leva a um conceito que você explora: uma vida bem vivida. Qual é essa vida?
Bem, eu penso que uma vida isolada, como um indivíduo que persegue o interesse próprio e que entende a liberdade apenas como uma prerrogativa pessoal, não vive uma vida com os outros e não entende que a minha liberdade e a sua têm que trabalhar juntas para produzir uma forma de vida em que não estejamos constantemente sacrificando uns aos outros. Se eu digo: quero ser livre e realmente não me importa o que aconteça com você, serei livre até para infectá-lo, e se isso acontece, bom, é uma lástima... Então, o que é essa liberdade baseada em não se preocupar com a vida dos outros?
Parece-me que isso é uma falta de liberdade, significa que sou livre para ferir, prejudicar, até para deixar morrer e provocar a morte de outro, mas não posso me isolar de um mundo com outros. E me parece que uma vida bem vivida é aquela que se sustenta, que se sente com futuro e que pertence a um sentido mais amplo do mundo social de modo recíproco, onde cuidamos uns dos outros. Onde meu desejo de viver é também um desejo de que você viva.
A palavra-chave parece ser o cuidado. Costuma ser invisível, não reconhecido, realizado majoritariamente por mulheres. Ao menos no Chile, seria 26% do PIB. Quais são suas reflexões sobre o cuidado hoje e por que está no centro de uma nova forma de ver a sociedade?
Penso que as feministas teóricas, ativistas e acadêmicas, durante muitos anos, chamaram a atenção para o fato de que o trabalho doméstico não é recompensado. O trabalho reprodutivo – ou seja, o trabalho necessário para reproduzir as condições materiais de uma vida, seja os trabalhos na casa, a comida, a limpeza – tem sido tradicionalmente delegado às mulheres e não é valorizado. Embora seja um trabalho absolutamente indispensável, não é remunerado e não é reconhecido como indispensável.
Essa espantosa contradição foi esclarecida por estudiosas feministas de modo muito importante. Estou pensando em Silvia Federici, entre outras. Mas, também devo dizer que cometeremos um erro se dissermos: (o cuidado) é o talento especial das mulheres, a virtude especial delas. É o que as mulheres deveriam estar fazendo porque fazem melhor que os homens...
Uma visão essencialista...
A questão é que os homens se incorporaram ao trabalho de cuidado, sendo muito importantes. Penso que todas as criaturas humanas deveriam estar em trabalhos de cuidado, todos deveriam participar das relações de cuidado. Não se deveria assumir uma divisão de trabalho onde um grupo faz o trabalho de cuidado e outros não.
Nos Estados Unidos, a maioria das mulheres que se dedicam ao cuidado de pessoas idosas ou crianças pequenas, ou que limpam as casas nos subúrbios, são mulheres afro-americanas e pardas, então, também há uma divisão racial sobre quem faz o trabalho de cuidado e quem não. Muitas vezes, os migrantes fazem esse tipo de trabalho. E depois existe a ideia de que você saia desse trabalho para fazer algum outro que seja mais notório.
Temos que repensar todos esses valores. Em primeiro lugar, para que o trabalho de cuidados seja algo que qualquer um possa fazer e, em segundo lugar, para que se valorize o seu caráter imprescindível nos governos, políticas públicas, organizações sociais e culturais, pelas pessoas em todos os lugares, e isso inclui os meios de comunicação. E, depois, também pensar em como funcionam as divisões raciais e de gênero na organização social do cuidado. Também fiquei impressionada com o fato de que, durante a pandemia e depois, tenha ocorrido uma revitalização dos ideais socialistas.
Como a renda básica universal, por exemplo?
Sim, para que ninguém fique nessa terrível posição de que se for trabalhar, pode ficar doente e possivelmente morrer ou contagiar os mais próximos, mas se não for trabalhar, não pode viver, nem sustentar os seus... Esse tipo de contradição é inaceitável: não é uma vida vivível enfrentar essa contradição o tempo todo. Uma garantia assim de renda é algo que não deve ser oferecida apenas quando há uma pandemia, mas deve ser generalizada. E penso também que um atendimento médico de excelência deve ser um direito, como a moradia, a educação.
Esses são requisitos básicos de uma vida vivível e se não garantimos isso como sociedade uns para os outros, na verdade, estamos aceitando o argumento de que algumas pessoas terão uma vida vivível e outras não. Essa é a opinião de Trump; essa é a visão. Quando a desigualdade social radical foi apontada a Donald Trump, ele simplesmente disse: sim, a vida é assim. Essa frase guarda a normalização da desigualdade radical. É isso que devemos contestar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Conectados pela vulnerabilidade comum. Entrevista com Judith Butler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU