17 Abril 2023
30 anos se passaram desde a assinatura dos históricos Acordos de Oslo. Uma temporada que viu acender na terra de Jesus a esperança da paz. 30 anos em que muitas coisas mudaram naquela terra. A política mudou, seus protagonistas, os cenários internacionais, mas também as sociedades israelense e palestina. As expectativas geradas por aquela temporada foram frustradas: depois de 30 anos, a paz ainda parece distante e o diálogo entre as partes parece estagnado. Nove anos também se passaram desde a iniciativa do Papa Francisco de chamar os presidentes Shimon Peres e Mahmūd Abbās (Abū Māzen) aos Jardins do Vaticano para plantar uma oliveira. No pouco que um jornal pode fazer, gostaríamos de suscitar a renovação de um diálogo, gostaríamos de voltar a regar aquela oliveira oferecida pelo Papa Francisco para que volte a crescer. Faremos isso, hoje e nos próximos dias, rememorando aquela época de esperança e dando a palavra aos cuidadores daquela árvore. Vamos começar pelo presidente do Estado da Palestina.
A entrevista é de Roberto Cetera, publicada por L'Osservatore Romano, 13-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ao longo da estrada que leva de Jerusalém a Ramallah, a noite já caiu há muito tempo e as ruas são iluminadas pelas luminárias que aqui se acendem durante o Ramadã. Aqui a noite já é amena e à beira da estrada grupos de famílias se reúnem para o iftar, o jantar que segue o longo jejum cotidiano. O branco ofuscante dos prédios da muqata, a residência do presidente, destaca-se contra a escuridão de uma noite sem lua. A conversa com o Presidente Abbās ocorre à noite; não é incomum por aqui. Após vários controles de segurança acedemos a uma sala de espera que está mobilada com um grande pôster fotográfico no qual estão representadas, como se fossem realmente contíguas, a cúpula dourada da Rocha, e as duas cúpulas cinzentas da Basílica do Santo Sepulcro. “Fazemos questão de apresentá-las juntas”, nos diz Majdi Khaldi, assessor diplomático do presidente, porque juntas representam a adesão da Autoridade Nacional Palestina (ANP) ao pluralismo religioso que caracteriza o povo palestino. Com certa solenidade cerimonial, somos conduzidos à sala do presidente Abbās. Seu aperto de mão é vigoroso, ele parece bem mais jovem do que sua idade. “Você veio aqui para me fazer perguntas. Mas eu quero fazer a primeira pergunta: como está meu amigo Papa Francisco?” E durante a entrevista a figura do Papa Francisco reaparecerá várias vezes.
Não há argúcia política ou diplomática: toda vez que fala do Papa, o rosto do presidente se ilumina, fica claro que o admira, gosta dele.
Senhor Presidente, o senhor é o único muçulmano (talvez mesmo o único entre os cristãos) que todos os anos participa de três missas para celebrar o Natal. Com os latinos, os ortodoxos e os armênios. Como descreveria seu relacionamento com a comunidade cristã na Palestina nos últimos anos?
A religião cristã na Palestina é tão verdadeira quanto a religião islâmica. O que distingue o Cristianismo na Palestina é que Jesus é filho desta terra, e aqui nasceu, na cidade de Belém, numa humilde gruta, sobre a qual foi posteriormente construída a Basílica da Natividade, que visitamos para felicitar as diversas confissões cristãs, ortodoxa, católica e armênia, três vezes por ocasião do Natal de Jesus. Como ANP, somos muito ligados a esses lugares de culto caros tanto para os cristãos locais quanto para os muitos peregrinos que vêm de todo o mundo. Por isso, nos últimos anos não hesitamos em iniciar as importantes restaurações das Basílicas da Natividade em Belém e do Santo Sepulcro em Jerusalém, de acordo com as três confissões cristãs que aderiram ao Status Quo. Celebramos as festividades cristãs com todo o nosso povo palestino, cristãos e muçulmanos, e consideramos todas as festas religiosas cristãs como festas nacionais palestinas. Estamos cientes de que a terra da Palestina é a terra da santidade, da qual o cristianismo se originou e se espalhou pelo mundo.
Presidente, 30 anos se passaram desde os Acordos de Oslo e o processo de paz não avançou desde então. Nesse ínterim, entretanto, muitas mudanças ocorreram nos fatos. Por exemplo na composição da população daquela Área C, cuja definição naqueles acordos era adiada para o futuro. Pergunto a senhor: como se pode imaginar hoje um Estado palestino se não há contiguidade territorial? E o senhor pensa que a solução "dois Estados para dois povos" ainda seja viável hoje?
A causa palestina atravessou muitas fases, a mais grave delas foi quando as forças israelenses cometeram aquela que ainda hoje é lembrada como a maior tragédia sofrida pelo povo palestino, a Nakba de 1948. Mais da metade do povo palestino foi então expulso de suas próprias terras, 51 massacres foram cometidos, e 529 aldeias foram destruídas: é a maior catástrofe de nossa história e ainda hoje 6 milhões de palestinos, tanto muçulmanos quanto cristãos, vivem em campos de refugiados. Este ano marca o 75º aniversário da Nakba, bem como o 54º aniversário da ocupação do restante das terras palestinas na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental e a Faixa de Gaza em 1967. Apesar da adoção de inúmeras resoluções pelo Conselho de segurança das Nações Unidas, da Assembleia Geral das Nações Unidas e do Conselho de Direitos Humanos, nenhuma delas foi implementada até o momento.
Apesar da disponibilidade de parte dos palestinos para muitas iniciativas de paz e assinatura de acordos, como justamente os Acordos de Oslo em 1993, a iniciativa de paz árabe em 2002, o roteiro para o Oriente Médio em 2003 e muitas outras propostas, os sucessivos governos israelenses nunca responderam a nenhuma dessas iniciativas e nem mesmo respeitaram os acordos feitos. Pelo contrário, foram implementadas práticas coloniais que violam o direito internacional e a Quarta Convenção de Genebra, como a construção de assentamentos ilegais, a anexação de terras, a demolição de casas, a expulsão de palestinos de suas terras, a violação de lugares sagrados islâmicos e cristãos. Tudo isso contribuiu para minar a possibilidade da solução de dois Estados e permitiu que crimes de discriminação étnica ao estilo do apartheid fossem cometidos.
Infelizmente, devo constatar que, em vez de contestar Israel por sua agressão contra o povo palestino, obrigando-o a respeitar os acordos firmados com base no direito internacional, muitos países continuam calados sobre as responsabilidades de Israel, expressando apenas uma proximidade genérica e superficial aos legítimos direitos dos palestinos. Apesar disso, porém, o Estado da Palestina goza de respeitável reconhecimento internacional, foi observador na Assembleia Geral das Nações Unidas e membro titular em mais de uma centena de agências e tratados internacionais, assinando acordos e respondendo a todas as iniciativas da comunidade internacional. Neste momento, cabe à comunidade internacional a responsabilidade de deter Israel, obrigando-o a implementar as decisões de legitimidade internacional e respeitar os acordos assinados, colocando um fim à ocupação israelense da terra do Estado da Palestina com sua capital, Jerusalém Oriental, e retornando às fronteiras de 1967. Na realidade atual, ou seja, aquela do estado único, o que domina é, ao contrário, o sistema de apartheid, que é contrário ao direito internacional.
O nosso povo, que chegou a 15 milhões de palestinos em todo o mundo e no Estado da Palestina, merece viver em segurança, paz e boa vizinhança com todos os estados desta área geográfica.
E quanto a Gaza? Talvez dois povos em três países?
A Faixa de Gaza é uma parte essencial e importante do estado palestino independente e do projeto nacional palestino: uma vontade firme é essencial para enfrentar todas as conjurações e projetos de destruição aos quais a causa palestina foi exposta. A Faixa de Gaza e a Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, são todas terras palestinas ocupadas desde 1967 e, de acordo com as Resoluções de legitimidade internacional, constituem a terra do Estado da Palestina. O que o movimento Hamas realizou contra a legitimidade palestina não é aceito pelo povo palestino: o único representante legítimo do nosso povo é a Organização para a Libertação da Palestina, com suas instituições legítimas eleitas pelo nosso povo, inclusive o Conselho Nacional, que é o parlamento do povo palestino, e o comitê executivo da organização chefiada pelo presidente do Estado da Palestina. Estamos tentando, com todos os nossos esforços, reafirmar a coesão nacional e direcionar as nossas ações para enfrentar a principal ameaça para o nosso povo e a nossa causa, que é a ocupação israelense e a necessidade de se livrar dela.
O senhor, presidente, é conhecido como um homem de paz. Especialmente entre os jovens palestinos, que nasceram e cresceram sem conhecer a liberdade, cresceu nos anos uma sensação de frustração, que muitas vezes se transforma em violência, como também aconteceu nos últimos dias. O que pretende dizer aos jovens palestinos a esse respeito?
Somos contrários à violência, especialmente se for dirigida a civis indefesos. Em vez disso, a juventude palestina é o pilar fundamental de nosso projeto para a construção das nossas instituições nacionais palestinas. Temos trabalhado nos últimos anos para contar com instituições estatais baseadas no estado de direito, dando poder às mulheres e aos jovens, disseminando uma cultura de paz, usando o diálogo, os métodos diplomáticos e políticos e a resistência popular pacífica. E digo aos jovens da Palestina que têm orgulho de sua terra, que quaisquer que sejam as dificuldades e os desafios que a nossa causa nacional deve enfrentar, devemos permanecer em nossa terra e na terra de nossos ancestrais, porque as mudanças que estão ocorrendo, tanto na nossa região como no mundo, indicando claramente que o fim da ocupação israelense é inevitável e não distante. Nós queremos a paz. A paz que será alcançada é para nós uma escolha estratégica em conformidade com as resoluções de legitimidade internacional, para finalmente poder viver de forma independente num estado soberano com Jerusalém Oriental como capital, um estado baseado nos fundamentos do direito internacional, da liberdade, da igualdade e da justiça.
Exortamos os jovens e as gerações futuras a preservar a herança originária da Palestina e a completar o caminho que iniciamos pela liberdade, dignidade, justiça e independência. Nós os instamos a estudar e utilizar as tecnologias mais avançadas na indústria, na agricultura, nos serviços de saúde, na educação e na construção de cidades sustentáveis. Somos um povo que merece ser amado, viver com dignidade no próprio solo nacional, como é justo e vital para todos os povos do mundo.
Passaram-se nove anos desde que o senhor aceitou o convite do Papa Francisco no Vaticano, onde o senhor, com o presidente Shimon Peres, plantou uma oliveira nos Jardins do Vaticano. Essa árvore cresce muito lentamente, embora o Papa Francisco faça questão de regá-la todos os dias com uma oração pela paz. Como é possível relançar de forma realista o processo de paz?
A paz e a estabilidade são uma exigência fundamental e constante na nossa política palestina, que obstinadamente procuramos concretizar através da implementação das resoluções de legitimidade internacional, da iniciativa de paz árabe e da convocação de uma conferência internacional de paz sob a égide das Nações Unidas. Ao mesmo tempo, respondemos a todas as iniciativas internacionais para respeitar os acordos assinados e deter as ações unilaterais que violam a legitimidade internacional, em preparação para o lançamento de um processo político que ponha fim à ocupação israelense da terra do Estado da Palestina com a sua capital, Jerusalém Oriental, nas fronteiras de 1967. Concordo com você que a oliveira que plantamos junto com Sua Santidade, o Papa, deva dar frutos em breve, e espero que Sua Santidade, o Papa Francisco, continue a rezar pela paz, e o exortamos para continuar o percurso que iniciou levando adiante o caminho de paz e de justiça na Terra Santa. E não esqueçamos a posição do Vaticano em reconhecer o Estado da Palestina nas fronteiras de 4 de junho de 1967 e na vontade de abrir a embaixada do Estado da Palestina junto à Santa Sé. Apreciei muito a resposta positiva de Sua Santidade, o Papa, à nossa iniciativa de reconstruir pontes com Al-Azhar Al-Sharif, culminando no encontro fraterno entre Sua Santidade, o Papa Francisco e o venerado Grande Sheikh de Al-Azhar Ahmed Al-Tayeb e a assinatura do documento sobre a Fraternidade Humana.
A paz, ao contrário da guerra, não conhece vencedores e vencidos. A paz é sempre o fruto de compromissos. Em Oslo podemos dizer que a paz venceu sem que ninguém perdesse. Quais são as soluções de compromisso que podem apresentar hoje à mesa de negociações para voltar àqueles acordos e fazer progressos nessa direção?
Acho que já lhe dei algumas indicações nas respostas anteriores sobre as bases e os meios para alcançar a paz. O grande problema hoje é a ausência de um parceiro em Israel que realmente acredite na paz com base na solução de dois Estados em conformidade com o direito internacional. Ao contrário, líderes e ministros extremistas que incitam o ódio contra nós parecem prevalecer em Israel; os colonos são encorajados a cometer crimes terroristas contra o povo palestino, como aconteceu recentemente na cidade de Hawara e em outros locais e cidades. Em suma, o problema é que não vejo interlocutores confiáveis do outro lado neste momento.
Muitos anos se passaram desde as últimas eleições na Palestina. O que impede que novas eleições sejam convocadas?
São as autoridades de ocupação israelenses que estão impedindo a realização de eleições gerais na Palestina. Controlam todos os detalhes da nossa vida e impediram que fossem realizadas em 2021 porque foi negada a possibilidade de votar em Jerusalém Oriental, segundo os acordos, como também havia sido feito nos anos anteriores. Infelizmente, nossos esforços até agora não tiveram sucesso com o governo dos EUA e a União Europeia para obter ajuda para nos permitir organizar eleições em Jerusalém, junto com o resto da terra palestina, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Posso garantir que estamos prontos para organizar essas eleições imediatamente, se elas também puderem ser realizadas em Jerusalém Oriental.
Presidente, já se passaram três anos desde o primeiro dos chamados Acordos de Abraão. O que mudou para você nesses três anos?
A conquista da paz, segurança e estabilidade na região passa pelo reconhecimento do direito do povo palestino à liberdade e à independência e, claramente, o fim da ocupação israelense... A implementação da iniciativa de paz árabe, como já foi afirmado, é o caminho certo para conseguir esse objetivo.
Como a opinião pública palestina vê a guerra na Ucrânia, e o que o senhor acha?
Somos um povo sob ocupação, vivemos uma vida de refugiado há 75 anos e até agora nosso povo não foi ressarcido. A ocupação israelense de nossa terra não acabou, os acordos internacionais não foram implementados, mas continuamos a ouvir muitas avaliações equivocadas sobre a nossa situação. Posso lhe responder com absoluta certeza que somos a favor do fim de todas as guerras e da conquista da paz em todas as partes do mundo, para que todos os povos possam desfrutar de segurança, liberdade e prosperidade.
Os patriarcas e chefes das igrejas de Jerusalém denunciam os repetidos ataques a igrejas, cemitérios e ao clero cristão. O senhor acredita, Presidente, que a comunidade internacional mostra sensibilidade suficiente para as ameaças e os perigos que pairam sobre a presença cristã na Terra Santa?
É essencial lembrar que durante a visita e peregrinação de Sua Santidade a Belém, o Papa Francisco ficou em silêncio atônito e eloquente ao ver aquela humilhação flagrante representada pelo muro de separação, e colocou a mão sobre aquele muro pedindo ao Todo-Poderoso para derrubar as barreiras, porque esta terra não merece muros, mas pontes a serem construídas. A presença cristã está em perigo e tememos que a Terra Santa perca seus bons filhos cristãos, que aqui são o sal da terra. Nesse contexto, pedimos às igrejas e capitais do mundo que se posicionem em apoio ao povo palestino para preservar os lugares sagrados das fés cristã e islâmica.
Os conselheiros do presidente sinalizam que o tempo acabou, outros compromissos o aguardam. Mas ele, mais do que nós, gostaria de continuar falando. Acende um cigarro e toma um café aromatizado com cardamomo, lembrando-se de todas as ocasiões em que se encontrou com o Papa Francisco, e depois seus três filhos e nove netos, que reclama ver bem pouco.
O carro que nos leva de volta a Jerusalém desliza rapidamente no escuro pelas ruas agora desertas. Chega uma mensagem no celular de quem nos acompanha. “Esqueci de dizer algo importante. Vocês pode transmitir ao meu amigo Papa Francisco os votos de uma Feliz Páscoa?”
*Colaborou Padre Ibrahim Faltas, o.f.m., vigário da Custódia da Terra
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
30 anos depois dos Acordos de Oslo: “Esta terra não merece muros, mas a construção de pontes”. Entrevista com Mahmūd Abbās, presidente da Palestina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU