01 Dezembro 2022
Mais uma vez, em janeiro deste ano, falando sobre Israel e Palestina ao corpo diplomático, o Papa Francisco disse que gostaria de “ver esses dois povos vivendo em dois Estados, lado a lado, em paz e segurança”. Contudo, hoje, não repetiria o mesmo, pois nos últimos dias, pela primeira vez após muitas décadas de adesão constante à solução de dois Estados, a Santa Sé disse que chegou o momento de “repensar a divisão” e de almejar muito mais a “igualdade entre israelenses e palestinos, em qualquer marco político para o qual a situação possa evoluir”, inclusive a um único Estado.
A reportagem é de Sandro Magister, publicada por Settimo Cielo, 29-11-2022. A tradução é do Cepat.
Quem marcou o ponto de inflexão foi La Civiltà Cattolica, a revista dos jesuítas em Roma, publicada com a autorização prévia, linha a linha, do Papa e da Secretaria de Estado, em um artigo com a data de 19 de novembro, com o título: Repensar a divisão da Palestina?
O autor do artigo é um jesuíta com um perfil muito singular, David M. Neuhaus, de família judaico-alemã que migrou para a África do Sul, nos anos 1930, nasceu em Joanesburgo, em 1962, foi enviado a Israel ainda adolescente para estudar e lá ficou fascinado pelo encontro com freiras da Rússia. Aos 25 anos, foi batizado na Igreja Católica e depois entrou para a Companhia de Jesus, primeiro nos Estados Unidos e depois no Egito, mas sempre permaneceu judeu e israelense. De fato, de 2009 a 2017, foi vigário do Patriarcado Latino de Jerusalém para os católicos de língua hebraica, em Israel, bem como professor no Pontifício Instituto Bíblico de Jerusalém.
O artigo de Neuhaus começa lembrando quando e como nasceu a ideia de dois Estados: “Há 75 anos, em 29 de novembro de 1947, a Organização das Nações Unidas aprovou a Resolução 181, que dividiu a Palestina em dois Estados: um judeu e outro árabe-palestino. O Estado israelense passou a fazer parte da ONU em maio de 1949. Contudo, ainda não há um Estado da Palestina como membro de pleno direito, ainda que 65 anos após a aprovação da Resolução 181, em 29 de novembro de 2012, a ONU tenha concedido à Palestina o status de “Estado observador não membro”, posição que compartilha apenas com a Santa Sé”.
Trinta anos antes, em 1917, a Santa Sé havia manifestado sua oposição às palavras do ministro das Relações Exteriores britânico, Arthur Balfour, em favor de “um lar nacional para o povo judeu” na Palestina, respeitando os “direitos civis e religiosos das comunidades não judias” do lugar. Contudo, em 1947, aprovou a ideia da partição, e ainda mais prontamente a do controle da ONU sobre Jerusalém e seus arredores, como um corpus separatum à espera de um futuro acordo negociado.
No entanto, os dois Estados não chegaram a ser criados, nem o status especial para Jerusalém. Os árabes rejeitaram a divisão e partiram para a guerra, vencida por Israel, que ficou com 78% do território em disputa. Naquele momento, a população total era de cerca de 1.845.000 habitantes: 608.000 judeus e 1.237.000 árabes. Destes últimos, cerca de 700.000 foram forçados a deixar o território ocupado por Israel e chamaram este êxodo forçado de Nakba, catástrofe.
Neuhaus relaciona a Nakba com a Shoah, o extermínio dos judeus, e é justamente na onda desse raciocínio que levanta dúvidas sobre a solução de dois Estados: “Muitos insistem no fato de que a Shoah não pode ser comparada com outros eventos, e aqui não pretendemos entrar em confrontação. [...] No entanto, o plano de partição, ao projetar uma pátria para os judeus na esteira da Shoah, com a esperança de também dar espaço para uma pátria árabe palestina, colocou em marcha a Nakba. Foi uma consequência necessária? O debate acadêmico, político e especulativo que gostaria de responder à pergunta não muda a realidade derivada desses acontecimentos: a instituição de um Estado definido como judeu levou os palestinos a serem relegados às margens da história. […] A decisão de repartir a Palestina, 'dois Estados para dois povos', baseia-se justamente na convicção pós-Shoah de que o povo judeu precisa de uma pátria segura e isso não deveria significar que os palestinos percam a sua. Mas a segurança judia pode ser compatibilizada com a justiça palestina? A solução de dois Estados é ainda atual?”
Neuhaus responde não a esta última pergunta, pois “quando se observa a realidade, após décadas de invasão israelense das terras posteriormente ocupadas na guerra de 1967, com a incessante construção de assentamentos judeus, estradas israelenses e outras infraestruturas, a solução de dois Estados parece, hoje, pouco realista”.
De fato, continua Neuhaus, para piorar, “desde 2004, alguns argumentam que o conceito apropriado para definir a situação atual é o de apartheid. Nos últimos anos, a acusação de que Israel usa um sistema de apartheid para dominar os palestinos se estendeu até mesmo aos territórios ocupados no próprio Estado de Israel e seu controle sobre os cidadãos árabes palestinos de Israel”.
Em apoio a esta acusação de apartheid, Neuhaus cita uma declaração do Conselho Ecumênico de Igrejas, reunido em Karlsruhe (Alemanha), em setembro de 2022, embora não compartilhada por alguns membros do mesmo Conselho.
A consequência apontada por Neuhaus nesse cenário é que no campo político e diplomático “a atenção está se deslocando lentamente para um vocabulário que mudou”, cuja palavra-chave é “igualdade”.
Em sua opinião, a demografia também aponta nessa direção: “Hoje, sete milhões de judeus israelenses e sete milhões de árabes palestinos convivem nesses lugares”, dos quais dois milhões residem em Israel, aproximadamente um quarto da população, e exigem direitos iguais, ao mesmo tempo em que expressam uma crescente decepção com o processo político que ocorre no país”. Consequentemente, “a luta pela igualdade entre judeus israelenses e árabes palestinos é parte integrante da tentativa de resolver o conflito em curso”.
Em definitivo, “dado que a eventualidade da partição, em uma realidade em que Israel quase anexou a maior parte dos territórios ocupados durante a guerra de 1967, parece cada dia mais duvidosa, este pode ser o momento certo para reforçar a consciência sobre a necessidade de uma luta pela igualdade entre israelenses e palestinos, em qualquer marco político para o qual a situação possa evoluir”.
Já em 2019, destacou Neuhaus, os bispos católicos da Terra Santa se mostravam céticos em relação à solução de dois Estados e, ao contrário, estavam convencidos de que a igualdade de direitos era a solução correta: “No passado, vivemos juntos nesta terra, por que não poderíamos viver juntos no futuro também? Esta é a nossa visão de Jerusalém e de todo o território chamado Israel e Palestina, que fica entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo”.
E até mesmo o sentimento majoritário dos cidadãos dos dois povos já se desviou da perspectiva de dois Estados, escreve Neuhaus. “Em uma pesquisa realizada em setembro de 2022, pelo Israel Democracy Institute, apenas 32% dos judeus israelenses eram a favor de tal solução. E segundo uma pesquisa realizada em outubro de 2022, pelo Palestinian Center for Policy and Survey Research, apenas 37% dos palestinos na Palestina a apoiavam”.
E os cristãos residentes na região? A este respeito, o último relatório da fundação Ajuda à Igreja que sofre apresenta um quadro estatístico de duas faces. No conjunto de Israel e Palestina, onde os judeus são 49% e os muçulmanos 43,5%, os cristãos representam agora 1,5% de toda a população, em números absolutos 217.000, dos quais pouco mais da metade são greco-católicos melquitas. Contudo, enquanto em Israel há 182.000 cristãos, 2,6%, um ponto e meio a mais do que no ano anterior, na Palestina, caíram vertiginosamente, de 18%, em 1948, para o 1% atual. E este seu êxodo parece não ter fim.
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Uma pátria comum para judeus e palestinos. O Vaticano abandona a solução de dois Estados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU