04 Abril 2023
"O texto da conferência episcopal afirma que 'já há, por exemplo, um enorme salto de qualidade na passagem da promiscuidade à fidelidade' e sublinha que, mesmo fora do matrimónio sacramental, 'toda a procura de integração é digna de respeito, merece encorajamento.' Mas os prelados acrescentam que sua tarefa é indicar o caminho 'pacificador e vivificante' do ensinamento de Cristo: 'Faltaríamos com vocês - sublinham - se oferecêssemos menos'", escreve Giovanni Maria Vian, catedrático de Filologia Patrística na Universidade de La Sapienza e diretor do jornal L’Osservatore Romano nos anos 2007-2018, em artigo publicado por Domani, 02-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A sexualidade humana e a questão do gênero estão no centro de uma carta contracorrente dos oito prelados que compõem a pequena conferência episcopal dos países escandinavos (Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega, Suécia). Como outrora era costume para os documentos eclesiásticos mais importantes, nas poucas igrejas católicas espalhadas nesta parte da Europa o texto foi lido durante as missas do quinto domingo da Quaresma, o último antes de Ramos, que hoje abrem a semana santa. Mas pelo nível e teor, a ressonância da carta logo ultrapassou as fronteiras da "última Thule", a antiga região nas fronteiras do mundo. “Parece óbvio que o desafio central do anúncio cristão hoje é antropológico. “O que é o homem?”.
A pergunta, colocada pelos Salmos, preocupa muito os nossos tempos”, e este debate, centrado na sexualidade, suscita “fortes emoções” declarou – indo direto ao cerne da questão – o bispo Erik Varden ao “Tablet”, o histórico jornal católico inglês que apresentou a carta nestes termos: “A misericórdia de Deus não exclui ninguém”, mas certamente sua proposta constitui “um alto ideal”.
Monge trapista, Varden chefia a prelazia territorial de Trondheim, que abrange pouco mais de dezesseis mil católicos que vivem no centro da Noruega, cerca de dois por cento da população. O jovem bispo nasceu de pais luteranos e se converteu muito jovem. Assim como outro dos signatários da carta, Anders Arborelius, a cardeal carmelita de 73 anos, bispo de Estocolmo há um quarto de século: um eclesiástico de perfil original. Poliglota e obviamente engajado no diálogo ecumênico, Arborelius concilia a vida contemplativa com o empenho na sociedade sueca, onde é considerado uma voz de autoridade. Há até quem comece a olhá-lo como candidato a papa. Varden, ex-abade perto de Nottingham, desde que era bispo criou um site (Coram fratribus) pensando nele como um lugar de hospitalidade e diálogo. Refinado conhecedor da tradição cristã, que estudou e ensinou durante uma década na Universidade de Cambridge, de fato, para a sua presença online, escolheu uma frase de Gregório Magno que sublinha a compreensão comunitária – “diante dos irmãos”, justamente – das Escrituras. Ao adicionar como logo o perfil estilizado de uma coruja, há séculos o "símbolo do monge" que vigia na noite.
Parte da Bíblia a carta sobre a sexualidade humana, publicada em várias línguas no site de Varden e que nas intenções se apresenta como um "contributo construtivo" para um debate marcado por "muita confusão" e "muita angústia". Recordando os quase concluídos quarenta dias da Quaresma, o texto - não longo, mas denso - remonta aos quarenta dias e quarenta noites do dilúvio universal, cuja narração no Gênesis se conclui com a aliança de Deus com "todo o ser que vive em toda carne”.
Como sinal dessa aliança, Deus coloca o arco-íris, que “hoje é reivindicado como símbolo de um movimento ao mesmo tempo político e cultural. Reconhecemos - afirma sem hesitação o documento da conferência episcopal escandinava – o que há de nobre nas aspirações deste movimento. Partilhamo-las na medida em que falam da dignidade de todos os seres humanos e do seu desejo de visibilidade”, porque a Igreja “condena qualquer discriminação injusta, seja ela qual for, mesmo aquela baseada no gênero ou na orientação sexual”.
Ao mesmo tempo, a carta expressa discordância quando esse movimento "propõe uma visão da natureza humana que se abstrai da integridade corporificada da pessoa, como se o sexo fosse algo acidental". A linguagem do texto tem tons muito respeitosos, mas a crítica à ideologia do gênero é igualmente bem definida, principalmente quando essa visão é “imposta aos menores como um pesado fardo de autodeterminação para o qual não estão preparados”. Segundo o documento, assim surge o paradoxo de uma sociedade que se mostra muito "preocupada com o corpo" e que, ao contrário, "na verdade o leva pouco a sério". De fato, a ideologia de gênero recusa-se a ver o corpo “como sinal de identidade” e assume “que a única individualidade é aquela produzida pela autopercepção subjetiva”. A questão, que ignora a realidade, diz respeito às próprias raízes da fé porque - especifica a carta - "quando professamos que Deus nos fez à sua imagem, isso não se refere apenas à alma", mas "misteriosamente também ao corpo".
Tendo reafirmado a crença cristã na "ressurreição do corpo", que em todo caso será transformado, o texto reconhece que é difícil imaginar o que será o corpo "na eternidade", mas com base na visão bíblica afirma "que a unidade de mente, alma e corpo durará para sempre. Os aspectos interiores conflitais que agitam profundamente o ser humano serão então resolvidos, mas já nesta vida devemos trilhar um caminho de “aceitação de nós mesmos” no “empenho com o que é real”. Central nesse sentido, apesar das contradições e feridas, é “a complementaridade do masculino e do feminino”, mesmo que a integração “pode ser árdua” e exija paciência.
O texto da conferência episcopal afirma que "já há, por exemplo, um enorme salto de qualidade na passagem da promiscuidade à fidelidade" e sublinha que, mesmo fora do matrimónio sacramental, "toda a procura de integração é digna de respeito, merece encorajamento." Mas os prelados acrescentam que sua tarefa é indicar o caminho "pacificador e vivificante" do ensinamento de Cristo: "Faltaríamos com vocês - sublinham - se oferecêssemos menos". Na igreja “há lugar para todos”, reitera o documento, que sugestivamente descreve a própria igreja como “a misericórdia de Deus que desce sobre os homens”, citando um texto siríaco do século IV.
No entanto, essa misericórdia comporta “um elevado ideal”: não é possível “reduzir o sinal do arco-íris a algo menos do que o pacto vivificante entre o Criador e a criação”. Em suma, "qualquer consideração do desejo humano que coloque o sarrafo de altura abaixo disso é inadequada do ponto de vista cristão". E o convite da carta é se aproximar do “ensinamento cristão tradicional sobre a sexualidade”, que pode enriquecer o discurso secular e cujo objetivo não é “reduzir o amor, mas realizá-lo”.
O interesse do documento está, portanto, na visão global e aberta sobre a sexualidade, ponto crucial na história do cristianismo e das religiões. Nos últimos anos, depois da revolução sexual que marcou a segunda metade do século passado, o tema voltou dramaticamente à pauta na Igreja Católica (mas não só), sobretudo devido à escandalosa tragédia - passada e presente - dos abusos cometidos pelo clero contra menores e mulheres religiosas. Além disso, considerar a homossexualidade isoladamente da temática geral tornou-se motivo de divisão e duros confrontos dentro da igreja.
São emblemáticos os confrontos nos Estados Unidos e na Alemanha, mas também as críticas do próprio papa pelas repetidas afirmações - não disruptivas, mas formuladas de forma a serem brandidas pelas partes opostas - durante muitas entrevistas e conversas informais. A começar pela famosa ("se uma pessoa é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la") que encerrou a memorável primeira entrevista coletiva no voo de volta do Rio de Janeiro. Corpo e alma, com a dimensão sexual em primeiro plano, foi o tema da tradicional série de reflexões quaresmais no La Croix. Das raízes judaicas e do Novo Testamento, o jornal católico francês passou a investigar os anos mais recentes. Com a interessante, mas controversa "teologia do corpo" de João Paulo II - tema por três ados de 129 discursos de Wojtyła - e com a "ecologia integral" delineada pela Laudato si', a encíclica mais original e bem-sucedida do Papa Francisco, até os debates atuais sobre a questão de gênero. Confirmando a intuição da conferência episcopal escandinava, uma dessas minorias criativas presentes nas sociedades secularizadas, como o jovem Ratzinger já havia prefigurado há mais de meio século atrás.
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Amor, identidade e Igreja. A redescoberta da sexualidade humana na carta dos bispos escandinavos. Artigo de Giovanni Maria Vian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU