24 Março 2023
“Bukele, ideologicamente e geopoliticamente muito pragmático, acabou se conectando com um tipo de “libertarismo” de extrema-direita que, hoje, possui inúmeros adeptos na região e que pode ser definido com a síntese “Bitcoin mais mão de ferro””, escreve Pablo Stefanoni, jornalista e historiador, em artigo publicado por Fundación Carolina, 22-03-2023. A tradução é do Cepat.
A política “antigangues” do presidente salvadorenho Nayib Bukele alcançou uma forte repercussão na América Latina e para além dela. Não é comum que o presidente de um pequeno país centro-americano ganhe semelhante projeção internacional. Mas, o “presidente millennial” a alcançou primeiro entre os fãs do Bitcoin, ao tornar o país o Woodstock dos bitcoinheiros. E agora, ainda em maior dimensão, com uma forma de luta contra as gangues que combina estado de exceção, prisões em massa, condições carcerárias desumanas, ausência de direito à defesa... e muitos vídeos postados nas redes sociais.
A nova megaprisão (batizada como Centro de Confinamento do Terrorismo), não só não é camuflada, como também faz parte de uma série de vídeos que incluem transferências de presos cinematográficas, filmadas com a estética de um trailer da Netflix e com tons futuristas. Muito distante das prisões semiarruinadas do passado, a atual reluz impecável, “de primeiro mundo”, insistem as autoridades, e ao mesmo tempo implacável.
A ênfase é colocada na humilhação dos detidos. “Nunca mais um raiozinho de sol”, “só terão camas de metal, sem lençóis e travesseiros”, “não comerão frango até que o último salvadorenho, e mesmo o último cachorro da rua, coma”, “passarão 40, 30 ou 20 anos detidos”. Tais palavras apareceram, nesses dias, na boca ou nos tuítes de autoridades, inclusive do próprio presidente, que se vangloria por esta prisão ser “a mais criticada do mundo”.
Resultado: a popularidade de Bukele alcançou 90%. E na América Latina há muitos políticos dispostos a imitá-lo, ao menos retoricamente. El Salvador já assessora o Haiti sobre segurança e políticas contra suas próprias gangues. A presidente de esquerda de Honduras, Xiomara Castro, anunciou, recentemente, um “plano anti-extorsão” e endureceu sua política frente ao aumento da violência. Contudo, de modo geral, são as forças de direita que parecem ter encontrado em Bukele uma nova estrela (seu duelo no Twitter com o presidente colombiano Gustavo Petro o reafirmou nessa posição antiprogressista).
Meios de comunicação independentes e críticos à política de Bukele, como El Faro, admitem que as gangues se retiraram. “Após dez meses de regime de exceção, no qual as garantias constitucionais foram suprimidas, o Governo do presidente Nayib Bukele desestruturou as gangues de El Salvador, minando seu controle territorial, sua principal fonte de financiamento e sua estrutura hierárquica”.
As estruturas territoriais locais, escrevem Carlos Martínez, Efren Lemus e Óscar Martínez, foram desconectadas das cúpulas que as lideravam das prisões: “Após dez anos de negociações com governos nacionais [incluindo o de Bukele], os membros de gangues livres pararam de confiar em seus líderes presos”.
Não é difícil entender a popularidade de Bukele. A ocupação do território pelo crime, a criação de fronteiras quase intransponíveis entre áreas controladas por gangues rivais, a extorsão permanente, a cobrança de “impostos” e os assassinatos geravam um clima de opressão que, de repente, desapareceu. Vizinhos que não podiam jogar futebol com outros, por estarem em áreas de influência mutuamente hostis, habitantes que não podiam visitar um lago por ser território “inimigo”, pessoas que tinham que pagar “impostos” por qualquer coisa...
As gangues “chegaram a ter comunidades inteiras sob o seu regime e por mais de 20 anos constituíram um segundo governo, por meio de um sistema de normas e punições para a população sob o seu domínio e, inclusive, uma forma de imposto ilegal popularmente conhecido como 'a renda'”, escreveu o antropólogo e estudioso deste fenômeno Juan Martínez d’Aubuisson, no New York Times.
“Esses filhos da puta nos ferraram por muitos anos”, disse um morador de Sierra Morena, uma colônia de San Salvador que foi o bastião da Mara Salvatrucha (MS-13). Nesse contexto, Bukele se apresenta como um libertador. Se um presidente que ganha uma guerra se torna um herói, Bukele já ganhou a dele.
Várias organizações de direitos humanos, como Human Rights Watch e Cristosal, registraram centenas de prisões arbitrárias (mais de 60.000 pessoas foram detidas sob o estado de exceção), torturas e até mortes violentas de pessoas sob a custódia do Estado. Alguns contra-argumentam que embora seja verdade que essas políticas, às vezes, fazem os justos pagarem pelos pecadores, e inclusive violam direitos humanos, em comparação com a situação anterior, o custo-benefício é positivo.
Contudo, a longo prazo, a destruição do Estado de direito tem consequências. E não será a primeira vez que o herói de um momento vira o vilão de outro. Muitos devem se lembrar do peruano Alberto Fujimori caminhando entre os cadáveres dos guerrilheiros do Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA), massacrados na residência do embaixador do Japão, para demonstrar seu combate implacável contra a guerrilha que havia tomado o edifício.
O custo-benefício das políticas de “exceção” de Fujimori também parecia positivo, até que foi interrompida e o ex-presidente peruano acabou condenado a 25 anos de prisão, entre outras coisas, por diversas violações de direitos humanos. Como no caso de Fujimori, é claro que Bukele utiliza sua “vitória” contra as gangues para construir um regime cada vez mais antidemocrático e reforçar seu poder pessoal e o de sua panelinha.
“Há um desmantelamento do Estado de Direito, da presunção de inocência, do direito à legítima defesa e da independência dos poderes. Desmantelou-se a possibilidade das pessoas se submeterem a um julgamento justo. Agora, as instituições que investigam e punem os crimes não estão sob o comando da Constituição e da lei, mas, sim, da ordem de uma única pessoa”. Quem disse isto ao jornal El Faro não é um progressista garantista, mas um importante deputado do partido de direita Aliança Republicana Nacionalista (ARENA): René Portillo Cuadra.
Ainda que se assumisse que o custo-benefício do estado de exceção e da prisão sem advogados, juízes, nem formas de velar pela inocência é positivo, sem uma institucionalidade e organismos judiciais e de controle independentes, como evitar que uma máfia de Estado (nas palavras de Martínez d’Aubuisson) menos sangrenta, mas não menos cleptomaníaca, não se aproprie de vários negócios das organizações criminosas derrotadas?
Também não está claro se essas políticas, que foram eficazes para neutralizar as gangues, servem para combater o narcotráfico em outros países. Por enquanto, os narcotraficantes não usam tatuagens como os membros das gangues, o que, sem dúvida, simplificou sua prisão em massa.
Mas, simplificar as questões de segurança gera retornos eleitorais em uma região onde a penetração do crime organizado e o aumento da insegurança pública é um problema político número um, mesmo em países onde antes não era, como Chile e Uruguai. O Equador vive um de seus piores momentos históricos em termos de violência e a Argentina tem a cidade de Rosário como área tomada pelo narcotráfico. Não é por acaso que a ex-ministra da Segurança, Patricia Bullrich, que promove políticas de “mão de ferro”, vem crescendo de forma sustentada nas pesquisas para as eleições presidenciais de 2023.
O curioso é que Bukele, ideologicamente e geopoliticamente muito pragmático, acabou se conectando com um tipo de “libertarismo” de extrema-direita que, hoje, possui inúmeros adeptos na região e que pode ser definido com a síntese “Bitcoin mais mão de ferro”. Em relação à forma concreta que esta lógica da mão de ferro deveria assumir, os “libertários” manifestam certa ambiguidade entre a preferência ferozmente individualista pela liberdade de porte de armas e o apoio à ação das “forças repressivas do Estado”. Se o Estado é pró-mercado, a repressão é boa; caso contrário, é pura tirania “socialista”.
Na Argentina, muitos seguidores do candidato presidencial Javier Milei (terceiro nas pesquisas), que reflete essa mesma sensibilidade no país austral, não param de expressar nas redes sociais seu entusiasmo com o mandatário salvadorenho, que agora reluz melhor do que o precedente favorito da extrema-direita “libertária” regional: o decadente Jair Messias Bolsonaro.
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Bitcoin mais mão de ferro: o fantasma de Bukele que percorre a América Latina. Artigo de Pablo Stefanoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU