22 Fevereiro 2023
"O Bispo de Roma reduziu o tamanho da Cúria Romana para dar ao catolicismo mundial o espaço para se expressar. Para que também no futuro a Igreja Católica universal possa encontrar em Roma o fundamento para se projetar no mundo, não o perímetro sufocante: um ponto de partida e não de chegada", escreve Iacopo Scaramuzzi, vaticanista italiano, em artigo publicado por La Repubblica, 21-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No momento principal, o Papa não apareceu. A perplexidade inicialmente estampada nos rostos dos bispos alemães, porém, aos poucos foi substituída por um sorriso. Vaticano, novembro passado. A Conferência Episcopal da Alemanha está em visita ad limina apostolorum a Roma, nos túmulos dos apóstolos. O encontro é periódico, praticamente a cada cinco anos, e concerne a todos os episcopados do mundo. Desta vez, porém, há algo de extraordinário. Abalada pela crise dos abusos sexuais, a Igreja alemã de fato iniciou, em dezembro de 2019, um percurso sinodal para enfrentar, bispos e leigos juntos, as questões subjacentes ao problema da pedofilia do clero, acreditando que todo abuso sexual é, na realidade, um abuso de poder. E, portanto, fala-se, livremente, de celibato obrigatório, moral sexual, papel marginal das mulheres.
De assembleia em assembleia, de voto em voto, a apreensão cresce em Roma. “São temas que dizem respeito à Igreja universal e não podem ser objeto de deliberações ou decisões de uma Igreja particular”, a objeção. Na realidade, o próprio Papa Francisco está "um pouco preocupado", confidencia aos seus interlocutores. Chega a evocar a acusação de serem, no fundo, um pouco luteranos: “Na Alemanha já tem uma bela Igreja Evangélica, não precisamos de outra”.
Mas quando, no final dos encontros no Vaticano, é convocado um confronto entre os 62 bispos alemães e os chefes de dicastério da Cúria Romana, Francisco não comparece. Os prelados alemães inicialmente ficam desapontados, mas aos poucos percebem o significado mais profundo daquela cadeira vazia. O pontífice não quis jogar como "líder" do time romano em oposição ao alemão: permanecendo de fora, ele recortou para si o papel de árbitro da partida. Certamente não ficou do lado dos alemães, mas nem mesmo com o Vaticano. Além disso, durante os dez anos de seu pontificado, ele redimensionou, refreou, sacudiu a Cúria Romana. Uma devolução que se compreende recuando alguns passos.
A Cúria vive seus anos dourados com João Paulo. O pontífice polonês delega muito a seus colaboradores, especialmente nos últimos anos do pontificado marcados pela doença. O aparato ganha espaço, não sem opacidade. Incubando problemas – abusos sexuais, escândalos financeiros, lutas pelo poder – que explodem sob Bento XVI. O teólogo alemão os vê, mas a arte de governar não é seu ponto forte. Não reforma a Cúria, mas com sua renúncia, oito anos depois, desfere-lhe uma bofetada simbólica.
Abrindo as portas para um conclave muito diferente daquele sonhado nos sagrados palácios, Jorge Mario Bergoglio trouxe o "complexo antirromano" (de autoria do teólogo Hans Urs von Balthasar) no coração de Roma. Desde o início, o Papa que veio "quase desde o fim do mundo" indica que a Cúria não deve ser “uma pesada e burocrática alfândega”. “A corte é a lepra do papado”, confidencia a Eugenio Scalfari já no outono de 2013: “A visão vaticano-cêntrica não se preocupa com o mundo que nos rodeia. Não partilho essa visão e tudo farei para a mudar”. Era um programa de governo. Cristalizado quase dez anos depois na constituição apostólica Praedicate Evangelium (2022), que redesenha, não sem algumas incoerências, o organograma vaticano. São fundidas várias congregações: a da Doutrina da Fé perde o primado, a da Evangelização sobe. Mas já antes o pontífice argentino silenciou muitas exuberâncias de seus ofícios. Frequentes no passado, as publicações de documentos e pronunciamentos das principais congregações podem ser contadas nos dedos de uma mão.
Um sistema de spoilers em câmera lenta.
Como arcebispo de Buenos Aires, ele mal suportava as prepotências romanas, como papa, se empenha a descentralizar. Transfere algumas competências para as conferências episcopais. Concede-lhes maior autonomia na tradução dos textos litúrgicos, e quando o cardeal Robert Sarah tenta desmenti-lo, com uma interpretação restritiva da disposição de Bergoglio, este o repreende publicamente. Ele também mexe no dinheiro, quando cria o fundo Populorum Progressio para transferir a gestão das ajudas para as comunidades indígenas ao Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM). O mau-humor em Roma é palpável. Convoca para o seu lado um grupo de cardeais conselheiros dos cinco continentes que se sobrepõem aos departamentos vaticanos. Escolhe morar na Casa Santa Marta e administra sua própria agenda escapando do controle da prefeitura da casa pontifícia. Adota um sistema de spoilers em câmera lenta, mas a desconfiança mútua com a Cúria Romana ressurge ciclicamente. E lhe gera críticas abrasivas.
“Há uma espécie de círculo mágico que gravita em torno de Santa Marta”, ataca o cardeal Gerhard Ludwig Müller, um alemão mais ratzingeriano que Ratzinger. Quando o teólogo argentino Victor Manuel Fernandez se atreve a sonhar que o Vaticano poderia se mudar para Buenos Aires, Rio de Janeiro, Montevidéu, Müller se levanta, atribuindo a ideia a Francisco. Que, deve-se dizer, oferece alguns argumentos para seus detratores. Pretende descentralizar, mas por vezes, de repente, centraliza as decisões, intervém pela força, passa por cima de seus próprios homens, envolve-se em problemáticas de gestão miúda. E nem sempre acerta as nomeações. Errático na tática, Jorge Mario Bergoglio é, no entanto, científico na estratégia. Graças à dieta de enxugamento imposta pela queda estrutural das ofertas que chegam ao Vaticano, busca a descentralização para deixar espaço para as Igrejas locais, redimensiona a burocracia vaticana para deixar o catolicismo mundial respirar.
Revitaliza o sínodo, ao fazer com que as assembleias dos bispos sejam precedidas de uma consulta ao povo de Deus realizada, com sucesso variado, por meio de questionários, assembleias paroquiais, entrevistas online.
Em 2019, convocou um grande sínodo global que durará até 2024 para envolver todos, progressistas e conservadores, ocidentais e orientais, clérigos e leigos, na definição da Igreja do amanhã. Nos sínodos dos anos passados, os participantes travaram verdadeiras lutas, sobre a comunhão para os divorciados recasados ou sobre a bênção dos casais homossexuais, sobre os padres casados ou sobre mulheres ordenadas ao diaconato.
A mesma coisa está acontecendo agora: ao lado dos alemães que pressionam por reformas estão os poloneses que temem o plano inclinado da descristianização e os estadunidenses que estão alarmados com o aborto, as divergências são profundas entre países secularizados e países mais tradicionais, entre Igrejas ricas e Igrejas pobres. No entanto, Francisco considera que, se não surgissem cacofonias e tensões, mais cedo ou mais tarde explodiriam. E que assim podem ser reabsorvidas em uma nova síntese - "unidade na diversidade" - dando nova vitalidade à Igreja.
A montanha pode parir o proverbial rato. Ou, ao contrário, pode-se desencadear a dinâmica surgida no Concílio Vaticano II (1962-1965): o "partido romano" viu-se aos poucos cercado pelas instâncias dos padres conciliares de todo o mundo. A Cúria tentou resistir, em parte até boicotar a lufada de ar fresco, depois cedeu. Um compromisso foi encontrado e resultou uma Igreja mais aberta.
Quando chegam a Roma os bispos de todo o mundo, eles se surpreendem com o fato de que hoje o pontífice e seus colaboradores escutem e dialoguem. Tentam encontrar juntos soluções para problemas que Roma sozinha não pode resolver. Até alguns anos atrás, quem chegava ao Vaticano tinha que sentar e ouvir. Instruções, indicações, às vezes censuras. Hoje, conta um bispo do norte da Europa, “podem ser examinados juntos assuntos que apenas dez anos atrás não podiam sequer ser abordados”. O Bispo de Roma reduziu o tamanho da Cúria Romana para dar ao catolicismo mundial o espaço para se expressar. Para que também no futuro a Igreja Católica universal possa encontrar em Roma o fundamento para se projetar no mundo, não o perímetro sufocante: um ponto de partida e não de chegada.
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Assim Francisco esvaziou a Cúria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU