05 Dezembro 2022
“Se a solidariedade é indispensável para que as sociedades 'permaneçam juntas' em todas as escalas, o futuro dela deve necessariamente levar os cidadãos, pesquisadores e líderes políticos a questionar as formas e os contextos da vida em comum hoje, do local ao global”, escreve Michel Agier, antropólogo francês, em artigo publicado por El Tiempo, 01-12-2022. A tradução é do Cepat.
Estamos vivendo em um mundo maior do que ontem em termos sociais, culturais e econômicos. Em escala planetária, surge explicitamente a questão do mundo em comum, por exemplo, com esta preocupação recorrente: que espaço e que forma de governança queremos em escala mundial?
No entanto, este mesmo mundo está mais do que nunca fragmentado pela violência ecológica e social do capitalismo desenfreado, a sucessão de guerras e as políticas de segurança dos Estados Nacionais. Um sentimento geral de instabilidade e incerteza aumenta os medos sociais. Estes são inseparáveis das “políticas do medo” que preconizam o confinamento nos territórios domésticos e nacionais e a agressão nas fronteiras.
Uma engrenagem distópica parece se apoderar do presente e das visões do futuro. Além da crise ambiental, há outras tensões: a da governabilidade em todos os níveis, com a proliferação de regimes ou partidos autoritários, a das desigualdades sociais estendidas por todos os lugares, a da relação com os outros, um problema tanto político quanto antropológico.
Quase cem milhões de pessoas no mundo, hoje, precisaram se deslocar, muitas vezes com urgência, por causa dessas crises múltiplas e cruzadas. Em termos concretos, a América Latina e a Colômbia em particular estão vivendo esta situação com a mobilidade forçada de novos migrantes e refugiados provenientes do Haiti, Venezuela e até da África subsaariana.
Em todas as partes, desencadeiam-se movimentos de cidadãos que reivindicam a acolhida de estrangeiros em nome do princípio universal da hospitalidade, enquanto outros defendem o fechamento em si e o fechamento nacional, em geral, pela rejeição aos estrangeiros.
Desse modo, em um contexto em que o “clima de ansiedade” é constantemente evocado pelos meios de comunicação e muitos Estados Nacionais promovem o fechamento em si como uma solução de “emergência” permanente, pensar a solidariedade é um verdadeiro desafio! Requer uma reorientação radical de mentes e políticas, e a coragem para defendê-la e implementá-la.
Se a solidariedade é indispensável para que as sociedades “permaneçam juntas” em todas as escalas, o futuro dela deve necessariamente levar os cidadãos, pesquisadores e líderes políticos a questionar as formas e os contextos da vida em comum hoje, do local ao global.
A sociologia francesa definiu a solidariedade a partir de dois aspectos. A “solidariedade orgânica”, nas palavras do pai da sociologia francesa, Émile Durkheim, designa a interdependência de todas as funções e categorias que tornam possível a existência de uma sociedade.
No entanto, uma ressalva: esta forma “orgânica” geralmente é concebida dentro do marco nacional, ao passo que hoje é bastante óbvio que essas relações estruturantes se projetam para muito além do nacional, em escala planetária. É o que demonstram os diferentes aspectos da globalização, econômica, cultural, bem como a natureza planetária das principais questões do nosso futuro, seja da ecologia, da migração ou da saúde pública.
Por outro lado, o próprio Durkheim evocou a “solidariedade mecânica”, ou seja, a das pequenas unidades sociais, das relações face a face, das dádivas e contradádivas. Este domínio é por definição o “campo” dos antropólogos que estão interessados nas práticas e teorias da relação, nos mundos relacionais em geral.
Como antropólogo, familiarizado com campos de pesquisa na África e na América Latina, partirei daí para detalhar com a maior precisão possível a proposta da vida em comum, apoiando-me em três conceitos relacionais nos mundos africanos: zumunci, teranga e ubuntu, três palavras que falam de relação em uma dimensão universal.
Ao estudar as formas de hospitalidade, ou seja, as formas de estabelecer uma relação com um estranho que ainda não conheço, extraí de minhas pesquisas no mundo Hausa, entre Togo, Níger e Burkina, a noção de zumunci, na língua hausa. Este conceito é utilizado cotidianamente para designar a acolhida de uma pessoa estranha à família, casa, cidade ou país que acolhe, bem como a dependência da pessoa acolhida, durante sua permanência, e a dívida que ela sempre terá com quem a acolheu como seu “pai”.
Trata-se de uma relação de proteção mínima que vai da simples hospedagem à possibilidade de uma relação de trabalho ou também de uma futura colaboração. É uma forma social que amplia o familiar e que também é uma forma de dependência: não há igualdade no momento desta relação, mas, sim, uma forma social em evolução, que se transforma com o tempo.
Um segundo conceito ecoa o anterior: o de teranga, na língua wolof do Senegal. Designa a implementação de um princípio de reciprocidade. Cada um fica profundamente marcado pela teranga que recebe e que deve ser devolvida posteriormente, o que a torna uma forma de economia da relação.
É importante delongar para dar tempo ao endividamento e a uma relação que também abre amplas possibilidades de cooperação e desenvolvimento econômico. A teranga, portanto, possui efeitos econômicos: requer investimento, cuidado e atenção que mantém uma confiança favorável à cooperação.
Um terceiro termo, agora reconhecido internacionalmente por sua capacidade de dizer o que outras palavras não dizem, é ubuntu. “Eu sou porque nós somos”: é assim que a palavra geralmente é traduzida ou interpretada. Vem da língua bantu xhosa da África do Sul. Foi muito utilizada por Nelson Mandela na política para pedir a reconciliação e para significar que é imperativo conseguir viver coletivamente para poder viver individualmente.
Encontramos as mesmas palavras, traduzidas para o espanhol, na Colômbia: “Sou porque nós somos” é o nome do movimento cidadão formado por minorias afro-colombianas, indígenas e feministas, e liderado por Francia Márquez, ela própria afro-colombiana, vice-presidente da Colômbia. Aliado ao líder de esquerda e ex-guerrilheiro Gustavo Petro, este movimento atraiu o voto popular em massa, o que contribuiu para a sua eleição.
É sugestivo ver na articulação desses três conceitos um possível “trio” exemplar (uma exemplaridade que pode ser facilmente encontrada explorando outras línguas e outras sociedades) que entrelaça as dimensões social (zumunci), econômica (teranga) e política (ubuntu) de uma ideia da vida em comum.
Se, por exemplo, o termo “hospitalidade” (do latim) corresponde, mas só em parte, ao conceito hausa zumunci, da mesma forma a teranga da língua wolof desenvolve de forma mais ampla a ideia de “solidariedade (também do latim) mecânica”, e o ubuntu da língua xhosa responde à necessidade da “solidariedade orgânica”, descrita acima, conferindo-lhe uma dimensão existencial genérica e uma ambição política.
Há nesse trio um universal de vida em comum e, mais ainda, um universal comum porque é múltiplo. O método cosmopolítico é o que torna possível estabelecer o necessário vínculo entre todos os vínculos.
Pode ser multiplicado até o infinito, o que permite imaginar uma linguagem universal da vida em comum, feita do inventário e do encontro dessas noções. É uma utopia que nasce do presente, mas também é uma emergência que permite reimaginar o horizonte da vida em comum na escala mais ampla do mundo, tornando finalmente possível, um dia, o acordo de todos sobre a necessidade de um “nós” cosmopolítico.
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Entre a hostilidade e a solidariedade, repensar a vida em comum. Artigo de Michel Agier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU