“Fratelli Tutti” é Ubuntu com outro nome. Artigo de Agbonkhianmeghe Orobator

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07 Outubro 2020

“As ideias gêmeas de Francisco de fraternidade e amizade social destacam a urgência do Ubuntu no nosso contexto atual, onde o tecido da humanidade está dividido por conflitos atávicos, divisões ideológicas, paranoia isolacionista e polarização política que levam um custo catastrófico sobre os mais fracos e mais vulneráveis”, escreve Agbonkhianmeghe E. Orobator, padre jesuíta nigeriano, presidente da Conferência dos Superiores Maiores Jesuítas de África e Madagáscar - Jesam, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 06-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Eis o artigo.

 

Umuntu ngmuntu ngabantu”. Esse ditado existe em formas variantes nas línguas bantus da África Austral e pode ser traduzido como “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”, ou “eu sou porque nós somos”.

Notavelmente, a encíclica Fratelli Tutti do papa Francisco contém um equivalente: “Cada um é plenamente pessoa quando pertence a um povo e, vice-versa, não há um verdadeiro povo sem referência ao rosto de cada pessoa” (FT 182). Em outras palavras, nós somos “todos irmãos e irmãs” (8).

Francisco cita o bispo anglicano da África do Sul, Desmond Tutu, entre outros, como uma inspiração de sua encíclica (286). Tutu é o principal proponente do Ubuntu, uma filosofia humanista africana baseada na cultura do compartilhamento, da abertura, da dependência mútua, diálogo e encontro interpessoal. Em Ubuntu, a existência humana encontra sua plenitude como parte do todo, a sociedade prospera em uma humanidade comum, e o perdão e a reconciliação são pré-requisitos para preservar a harmonia social.


Ubuntu. 'Eu sou porque nó somos'. Revista IHU On-Line Nº 353. Clique na capa para acessar.

As ideias gêmeas de Francisco de fraternidade e amizade social destacam a urgência do Ubuntu no nosso contexto atual, onde o tecido da humanidade está dividido por conflitos atávicos, divisões ideológicas, paranoia isolacionista e polarização política que levam um custo catastrófico sobre os fracos e vulneráveis (18-19).

Sem um horizonte em comum, nosso medo ancestral dos outros leva-nos a construir muros (26-27, 37, 41), enfraquecendo nosso pertencimento de uma família comum e dilaceram nosso sonho de um projeto comum (30). Visto que estamos nisto juntos (35), por isso o imperativo de construirmos uma comunidade de solidariedade e pertença.

“Montanhas não se reúnem, mas pessoas sim”, diz um provérbio suaíli. Uma premissa do Ubuntu reconhece a centralidade do encontro com o outro. Para Francisco, a fraternidade está sobre uma cultura de encontros reais, os quais são pré-condições para uma abertura criativa ao outro (50).

A abertura mútua, infelizmente, é furtada por uma comunicação digital tóxica, saturada em agressões sociais, violência verbal e miopia ideológica. O resultado é um circuito virtual fechado pelo medo compartilhado e o ódio contra o outro (42-46).

Francisco propõe um novo caminho para uma cultura de fraternidade, encontrada em uma “encontro de misericórdia” (83). Inspirado na parábola do Bom Samaritano, ele destaca a responsabilidade do amor para os outros, baseado em nosso Ubuntu compartilhado. Tal amor constrói uma fraternidade universal para além das considerações dos status, gênero, origem ou local de seus destinatários (107, 121).

Fraternidade universal requer sofrimento e tempo (48, 63) para forjar um novo compromisso social de solidariedade que considera a vulnerabilidade e a fragilidade dos outros (66-69, 115). Francisco compara essa comunidade a um poliedro de realidade compostas, não de mônadas isoladas (111, 143-145), mas como “uma família que é mais forte que a soma de pequenas individualidades” (78).

Essa realidade exemplifica o Ubuntu por excelência, porque é cimentada por um amor social inclusivo que transcende barreiras, interesses e preconceitos (83).

Para Francisco, a mutualidade radical do Ubuntu é conquistável através do amor sem fronteiras que transforma a humanidade em uma comunidade de vizinhos sem limites. Assim como a filosofia Ubuntu, Francisco defende um prêmio social sobre os direitos e deveres por conta da relacionalidade da humanidade, cuja manifestação mais profunda é a capacidade de transcender a si mesmo e criar uma solidariedade de serviço aos outros (87, 88, 111).

O amor social de Francisco vai além do imediatismo e da vizinhança; é expansivo e enriquece as vidas e a existência dos outros. Esse tipo de amor se manifesta como hospitalidade porque acolhe e valoriza os outros por quem eles são (90-93), reconhece cada pessoa humana como um “estrangeiro existencial” com uma incontrovertida reivindicação moral de nossos cuidados (97).

Esse amor expansivo forma as bases de uma amizade social inclusiva e fraternidade sem limites (98, 99). Longe de ser uma diferença de nível ou um “universalismo falso” desprovido de diversidade (100), ou pior, um grupo fechado com mente de “associação”, fraternidade, junto com igualdade e liberdade, oferecem um forte antídoto ao vírus do individualismo (105).

Se “eu sou porque nós somos”, então a verdadeira fraternidade não deixa ninguém para trás (108) porque nós nos salvamos juntos e somos responsáveis pela vida de todos (137).


Ubuntu como ética africana, humanista e inclusiva. Artigo de Jean-Bosco Kakozi Kashindi. Cadernos IHU Ideias Nº 254. Clique na capa para acessar.

“Se a casa do meu vizinho está incendiando, eu não posso dormir em paz”, diz outro provérbio africano. No espírito do Ubuntu, fraternidade genuína evita um “narcisismo local” que sufoca as mentes e o coração (146-147). A fraternidade autêntica cria uma família de nações, baseada na hospitalidade e gratuidade (139, 141); reconhece os direitos de todos os povos, comunidades e grupos nas esferas social e privada (118, 124, 126).

Na visão moral de Francisco, o teste decisivo da autenticidade da fraternidade é quando se acolhe, protege, promove e integra migrantes, que vêm, não como incômodo ou fardo, mas como um presente e uma bênção (129, 133).

Como as virtudes do evangelho inspiram (277), a fraternidade e a amizade social são antíteses das patologias políticas como o populismo, nacionalismo e neoliberalismo que negam os vários significados de “povo”, o qual é “aberto” (160). Diferentemente desses tipos deletérios de políticos, a cultura do encontro prioriza o multilateralismo sobre o bilateralismo (174).

A política é saudável quando serve ao bem comum e é animada pela caridade como seu “coração espiritual” (180, 186). A caridade política se traduz como “amor social” fundado na verdade e na busca comum de soluções para problemas urgentes (183).

A fraternidade universal e a amizade social conectam o local e o global em uma relação mutuamente benéfica (142). O enraizamento cultural pressupõe a abertura ao encontro com o outro, seja como povos, culturas ou países. A hospitalidade cultural gera comunhão e dependência mútua das nações (146-9).

Além de encontro, outro sinônimo de Ubuntu é diálogo. O diálogo promove a amizade social porque respeita a diferença de opiniões e pontos de vista. O diálogo é aberto aos outros, reconhece nossa pertença compartilhada e é animado pela busca comum pela verdade, do bem comum e do serviço aos pobres (205, 230). Nele repousa a possibilidade de paz baseada na verdade (228).

Essa cultura de diálogo e encontro transcende diferenças e divisões; ainda assim, é inclusiva para todos e oferece novas possibilidades e processos de estilo de vida, organização social e encontro (215-217; 231). Como forma de gentileza, a amizade social dá preferência ao amor pelos pobres, vulneráveis e menos favorecidos (224, 233, 235).

Conforme mencionado, o Ubuntu prioriza o perdão e a reconciliação, especialmente quando a transgressão rompeu a harmonia social. Francisco concorda: A amizade social valoriza o perdão e a reconciliação, não como mecanismos para esquecer ou tolerar a injustiça e a opressão, mas como meios de resolver os conflitos por meio do diálogo (241, 244, 246, 251). Como diz Tutu, a busca pela justiça “não tem futuro sem haver perdão”. (cf. FT, 250, 252).

Fratelli Tutti por qualquer outro nome teria um cheiro tão doce quanto Ubuntu.

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