22 Novembro 2022
O antropólogo Philippe Descola dedicou parte de seu trabalho para propor novas formas de habitar a Terra. Ao desconstruir a ideia de “natureza”, ele convoca para uma mudança radical na nossa relação com o mundo vivo e os não humanos.
Professor emérito do Collège de France, onde sucedeu Claude Lévi-Strauss como chefe do Laboratório de Antropologia Social, Philippe Descola é um eminente antropólogo. Tendo convivido com os achuar, povo animista que vive na floresta amazônica do Equador, ele dedica grande parte do seu trabalho a traçar os contornos de novas formas de habitar a Terra. Como? Desconstruindo a própria ideia de “natureza”, e convocando-nos para mudar radicalmente o software nas nossas relações com o mundo vivo. Entrevista com uma das vozes mais influentes e respeitadas da ecologia política.
A entrevista é de Barnabé Binctin, publicada por Basta!, 17-11-2022. A tradução é do Cepat.
Seu último livro, Ethnographies des mondes à venir, escrito em parceria com Alessandro Pignocchi, assim como o documentário do qual você é o tema principal, "Composer les mondes", de Eliza Levy, tecem um paralelo entre o que você tem sido capaz de observar entre os achuar na Amazônia e depois na ZAD (Zona a Defender) de Notre-Dame-des-Landes. O que, na sua opinião, une esses dois territórios tão distintos?
Um mesmo movimento de recusa da apropriação privada dos comuns, que também participa de uma outra forma de se vincular ao seu território. Em suas lutas contra a espoliação territorial, as populações indígenas sempre se esforçam para mostrar que os territórios que habitam não são simplesmente “meios de subsistência”, ou seja, lugares usados primeiramente para explorar os recursos. Existem muitas outras razões, além disso, pelas quais eles ocupam o território.
Um exemplo é a luta contra os projetos de mineração nos Andes: eles lutam em nome da montanha porque é um “comum”, mas não no sentido de que seria um recurso comum para todos, mas no sentido de que é um elemento que faz parte do território e que faz parte de um coletivo mais amplo que os humanos. As lutas pela proteção do território na Amazônia não são reivindicações de autoctonia, não se trata de reivindicar para si a exclusividade de um espaço: trata-se de mostrar que as relações que ali se tecem, entre humanos e não humanos, são únicas e merecem ser perpetuadas. É, portanto, por esta razão que o território deve ser preservado.
E, basicamente, as pessoas da ZAD dizem a mesma coisa quando proclamam “Nós não estamos defendendo a natureza, nós somos a natureza se defendendo”: elas se mobilizam em torno de um ambiente vivo que lhes ofereceu sua hospitalidade e pelo qual elas sentem a responsabilidade de mantê-lo protegido das agressões e das ameaças que lhe são dirigidas – ali mesmo onde as árvores ou as ovelhas não podem agir.
Durante a minha estada na ZAD, fiquei muito impressionado por constatar que aqueles que me acolheram desenvolveram um regime de atenção muito agudo para com os não humanos. Isso se manifestou através de um apurado senso de observação de todas as particularidades do ambiente – a vegetação que o compõe, o abrigo que oferece a esta ou aquela espécie animal, as trocas que ali ocorrem, etc. –, mas também através de uma forma de estreita intimidade com cada componente deste ambiente – tal parcela de cereais demasiado exposta ao vento norte, tal ovelha caprichosa, tal árvore que poderia atrapalhar a vizinha... é uma maneira muito diferente de se relacionar com o mundo, o que me lembrou o que eu tinha visto entre os achuar.
Você diz que os zadistas vivenciam uma “cosmopolítica inédita”...
Porque apresentam relações completamente diferentes com o mundo vivo, com o qual constroem uma forma de convivência que se distancia do produtivismo ou do consumismo. Não estamos mais na depredação típica do capitalismo, que só concebe os não humanos na forma de recursos úteis a serem transformados em fatores de produção e mercadorias – uma relação fundamentalmente destrutiva e mortífera.
Os zadistas, ao contrário, têm uma consideração real pelo não humano; não se trata mais de tratá-los como objetos inertes, mas como alter egos, como iguais. Não se trata, portanto, de uma “cosmopolítica” no sentido que Kant lhe dava, quando defendia seu projeto de paz perpétua em que todos os humanos pudessem participar reconhecendo mutuamente qualidades estimáveis uns nos outros – o que, aliás, constituía um projeto inteiramente admirável, na época! Trata-se de uma cosmopolítica inédita no sentido de que os não humanos passam a fazer parte do regime político: eles têm um papel a desempenhar na vida coletiva e nas instituições; em todo caso, trata-se de estruturá-las de tal maneira que os não humanos possam assumir toda a sua parte nele.
E isto é inédito, porque este registro de atenção não tem nada de espontâneo, dada a origem urbana de muitos dos ocupantes da ZAD. Aliás, no início, o princípio de identificação que contribui para a defesa do lugar resultou provavelmente muito mais da oposição a um adversário comum – um grande projeto aeroportuário, inútil e dispendioso. Mas isso não é suficiente para se apegar a um lugar. Os zadistas aprenderam a se identificar progressivamente com as plantas, os animais, a vegetação e com todo um ambiente vivo. Aprenderam a reconhecer o seu caráter distintivo, a descobrir as peculiaridades das plantas e dos animais que encontram no dia a dia. E acho esse aprendizado particularmente interessante, porque significa que não há inevitabilidade na separação dos humanos dos vivos naquilo que chamo de “naturalismo”.
O naturalismo é uma das quatro “ontologias”, ou seja, uma das quatro grandes formas de ser no mundo, que você identifica em sua obra de referência, Par-delà nature et culture (Para além de natureza e de cultura). Ao contrário do animismo, do totemismo e do analogismo, o naturalismo estipula uma dicotomia completa entre natureza e cultura. Por que essa invenção perfeitamente ocidental lhe parece problemática?
O naturalismo é a ideia de que existe uma separação de direito entre humanos e não humanos. Uma vez que os humanos são percebidos como os únicos detentores de uma alma, de um espírito, de uma subjetividade, isso os coloca de fato em uma posição de dominação que lhes permite objetivar os não humanos, transformá-los em recursos, em objetos da ciência, até mesmo em fontes de prazer estético na imagem do movimento romântico. Isso pode, portanto, ter um caráter totalmente positivo, pois foi isso que permitiu o desenvolvimento das ciências naturais.
Mas esta separação entre humanos e não humanos é também precisamente o que tornou possível este movimento de privatização dos “comuns” – isto é, todos estes elementos não humanos partilhados pelos grupos de humanos: a água, as florestas, as pastagens, mas também o conhecimento, por exemplo –, transformando-os em “recursos”. Os mesmos que permitiram, primeiro pela política de exploração da mão-de-obra e das matérias-primas nas colônias, depois pelo desenvolvimento da revolução industrial que dela decorreu, uma acumulação de capital sem precedentes, com todas as consequências ecológicas e sociais que hoje conhecemos. Ou seja, pela mudança de pensamento que produziu entre os europeus a partir do século XVII e que depois se acelerou e se espalhou pelo mundo, o naturalismo foi a condição de possibilidade do capitalismo, seu fundamento.
Portanto, a crise climática e ecológica contemporânea seria herdeira direta do naturalismo?
O problema é a forma de imperialismo com que o naturalismo se impôs sobre outras representações do mundo, em todos os lugares. Conceitualmente, podemos continuar a apresentar os chineses como “analogistas” – uma tradição antiga, também presente na Europa Medieval ou nas populações indígenas mesoamericanas, que defende que os elementos díspares do mundo devem estar ligados em cadeias de correspondências, como a analogia entre o microcosmo e o macrocosmo, o corpo humano e o cosmos celeste. Mas, na verdade, o Estado chinês participa integralmente da grande batalha produtivista, baseada nessa ideia demiúrgica de controle e transformação dos recursos...
O naturalismo é apenas uma formulação entre outras, e é até provavelmente uma das representações mais exóticas em si, em todo caso a menos compartilhada no mundo! A ideia de uma espécie de totalidade externa aos humanos que chamaríamos de “natureza” não é universal, devemos estar cientes disso. Por isso, digo que “a natureza não existe”, para sempre lembrar que ela é uma construção.
No entanto, toda a tragédia do colonialismo é que ele não apenas saqueou os recursos e escravizou as populações, mas também difundiu as ideias que estão na origem desse movimento generalizado de pilhagem. E agora, na verdade, estamos medindo as consequências dramáticas, quando vemos que populações, como os achuar, que nada têm a ver com a mudança climática, sofrem diretamente com suas consequências... É também por isso que o conceito de Antropoceno me parece ser inapropriado – um termo como “capitaloceno” seria muito mais apropriado: é de fato uma pequena parcela da humanidade que, por meio de sua gula, colocou todos os humanos em uma posição terrível, ao comprometer as possibilidades de habitabilidade na Terra.
Em que a relação dos achuar com seu ambiente é tão diferente?
Os achuar são animistas, atribuem alma às plantas e aos animais. Há o que se pode chamar de uma “continuidade das interioridades”: ao as capacidades morais e cognitivas não serem reservadas aos grupos humanos, os achuar também detectam uma subjetividade e intenções nos não humanos. A partir daí, eles têm relações diferentes com eles, de pessoa para pessoa. Sob certas circunstâncias, principalmente nos sonhos onde os não humanos às vezes assumem formas humanas, eles podem se comunicar.
Eles não são mais objetos, mas parceiros e, como qualquer parceiro, você deve negociar com eles, seduzi-los, constrangê-los, etc. Mas não há essa posição de saliência diante de uma massa de agregados de não humanos que constituiriam a “natureza”. Aliás, os achuar não têm um termo para designar a natureza – na verdade, é um termo que só existe nas línguas europeias, quase impossível de encontrar em outras partes do mundo.
Você estudou primeiro filosofia quando entrou na École Normale Supérieure. O que o levou a se voltar para a disciplina de antropologia?
Um pouco de descontentamento com a filosofia, digamos. Em vez de fazer epistemologia ou história da filosofia, pareceu-me mais interessante examinar experiências filosóficas de tamanho natural, que coletivos humanos poderiam implementar. Mesmo que essas experiências não fossem necessariamente reflexivas, tive a sensação de que traziam lições que poderíamos aproveitar. A antropologia permite “des-eurocentrar” o olhar e, neste caso, também me ensinou a “des-antropocentrar” os conceitos que usei.
Acima de tudo, as ciências sociais são herdeiras diretas da filosofia do Iluminismo, e se todos agora usam os conceitos de “natureza”, “cultura”, “sociedade”, nunca devemos esquecer que eles têm uma história muito singular, que nos é própria, na Europa. A antropologia convida a questionar todas essas noções e a propor outras.
E para que serve a antropologia hoje? Pode nos ajudar a metabolizar melhor a crise ecológica?
Para conscientizar os nossos concidadãos de que os caminhos que trilhamos, com o naturalismo e depois com o desenvolvimento do capitalismo, não são os únicos possíveis! A história também mostra isso, mas pelo passado, enquanto a antropologia mostra povos contemporâneos que nos oferecem outras escolhas coletivas. É um trampolim para imaginar outros futuros possíveis.
Isso nos permite escapar daquilo que François Hartog chama de “presentismo”, a ilusão de que estamos em um eterno presente, quando na verdade existem muitos caminhos diferentes que poderíamos escolher. Não se trata de copiar modelos existentes, pois nenhuma situação histórica pode ser transposta. Trata-se simplesmente de admitir, como estimulantes intelectuais, todas essas fórmulas alternativas que concebem e modelam de maneira diferente a vida comunitária, a relação com os não humanos, a organização social, etc.
É basicamente um esforço de desconstrução?
Por definição, sim: a antropologia consiste em deixar de lado os valores que carregamos dentro de nós, para melhor observar realidades que podem então questionar nossas próprias certezas. Portanto, a dimensão crítica é automática. A principal qualidade do etnógrafo é a humildade, que o encoraja a desconfiar de seus preconceitos. O antropólogo está entre dois mundos: deve abandonar em parte aquele de onde vem, sem nunca estar inteiramente naquele que o acolhe. E é por ter essa distância que ele pode ser eficaz, variando assim os parâmetros de seu próprio mundo a partir dos parâmetros do mundo em que escolheu residir.
Foi isso que o levou a se afastar gradualmente do marxismo, do qual foi companheiro de viagem durante muito tempo?
Há muitas coisas para manter em Marx, por exemplo, sua teoria da mais-valia que permanece completamente atual. Muitos dos textos da juventude de Marx são muito interessantes justamente porque lutam contra o naturalismo. Mas depois, com seus textos mais econômicos, e em particular O Capital, acabou sendo apanhado em sua crítica da economia política, e teve a tendência de naturalizar a atividade produtiva como característica do tempo presente... Isso é típico de pensadores socialistas do século XIX que não levaram em consideração a finitude dos recursos. No entanto, este é precisamente um ponto crucial que compromete todo o projeto construído sobre a emancipação dos povos através do desenvolvimento das forças produtivas.
No âmago dessa união está, de fato, uma dupla impostura que Pierre Charbonnier destacou claramente em seu livro Abundância e liberdade (Boitempo, 2021): a emancipação tornou-se possível graças ao enriquecimento e ao acesso a um número muito grande de bens, sem levar em consideração o fato de que isso só foi possível graças a um fenômeno de superexploração dos recursos, ou à mão de obra escrava, ou às matérias-primas, também fora da Europa, e que por isso nos pareceram infinitos porque não vimos o seu esgotamento. Isso Marx também havia visto de certa forma através da teoria do fetichismo da mercadoria: ele explica claramente que não percebemos o valor-trabalho que é investido nas mercadorias, e que acabamos tendo a tendência de ver as relações entre humanos como relações entre mercadorias.
Desse ponto de vista, a situação que permitiria sair de uma lógica mercantil supõe, portanto, sair da lógica da produção, que é característica do naturalismo. No entanto, por mais que existam muitos debates acalorados sobre o princípio da acumulação capitalista, a ideia de produção como tal ainda é algo bastante difundido. Enfatizar o fato de que devemos ser sensíveis aos não humanos como parceiros em um movimento geral de emancipação torna possível mudar completamente o software.
Alguns dirão que desconstruir o dualismo natureza-cultura não oferece muitos insights concretos, dada a urgência da crise ecológica e a extensão dos danos, ou mesmo que contribuiria para despolitizar o tema. E que, se considerarmos o capitalismo como o primeiro fator responsável pela crise ecológica, então é a ele que devemos atacar prioritariamente. É essencialmente o que defende, por exemplo, um pensador como Frédéric Lordon. Como você responde a isso?
Que é obviamente necessário lutar contra as instituições que propagam e possibilitam a acumulação capitalista, isso é óbvio. Eu nunca escondi minhas opiniões sobre isso. Mas o que significa, hoje, ser anticapitalista? Que forma assume? É a “Grande Noite”, queremos fazer a revolução e enforcar todos os patrões no poste? Há um erro profundo no estado da situação histórica, que não se presta a isso. Já era assim quando eu era ativista da Liga Comunista Revolucionária (ancestral do NPA, nota do editor) na minha juventude, e foi exatamente por isso que saí. Nossa esperança, completamente louca, era nos tornarmos a vanguarda do proletariado, mas não percebemos que o proletariado, como o concebíamos, estava em processo de desaparecimento, já que a própria classe operária estava desaparecendo…
Hoje, vejo nas lutas ecológicas uma capacidade de mobilização absolutamente extraordinária que não encontro nas lutas anticapitalistas tradicionais, cujos modos de ação não progrediram muito em 50 anos e que consistem essencialmente na distribuição de panfletos à saída das fábricas. Pessoalmente, fiquei muito desapontado com a tendência leninista dessa militância, que leva a um impasse. E, de modo geral, é sempre perigoso priorizar e considerar tudo o mais apenas como “contradições secundárias”.
Pelo contrário, devemos fazer tudo ao mesmo tempo, lutando contra as instituições do capitalismo, mas também produzindo alternativas concretas – não é um ou outro. E é também por isso que Notre-Dame-des-Landes é um caso tão interessante: além de seu valor exemplar, também ofereceu um importante ponto de apoio para continuar as lutas institucionais. É tangível. Caso contrário, a luta anticapitalista permanece apenas encantadora, e raramente é satisfatória...
Você visitou a ZAD de Notre-Dame-des-Landes várias vezes nos últimos anos: o que o fascina tanto nesta experiência?
O projeto político que ali se defende, e que ainda é muito mal compreendido em outros lugares – basta ver os políticos de direita falando sobre isso para medir sua ignorância e seu grau de desprezo. A ZAD tem um projeto de vida comunitária, em que a terra, assim como o trabalho, é em comum. Em que não há uma lógica de mercado por trás do ato de produzir, mas sim uma forma de entreajuda, de solidariedade. Em que as decisões políticas, ou seja, as que dizem respeito à vida coletiva, são tomadas coletivamente – trata-se, portanto, de uma democracia participativa e não representativa. O que é ao mesmo tempo extraordinário, com forte efeito exemplar, mas também muito trabalhoso, pois exige a constante busca e obtenção de consensos. E também deste ponto de vista, pensamos que pode ser muito preocupante para os políticos que consideram que uma vez que o cidadão votou, já não tem o direito à palavra!
Basicamente, a ZAD oferece uma narrativa alternativa portadora de entusiasmo. Não é à toa que é criada em quase todos os lugares: contra os reservatórios de água para a neve artificial como em La Clusaz, contra as megabacias na agricultura, contra os projetos de desenvolvimento urbano, como os Lentillères em Dijon… É uma forma de ocupação do território que está se espalhando. No início, é sempre uma mobilização contra um projeto e depois essa mobilização se estabiliza em um modo de vida particular.
Fiquei muito impressionado quando estive lá em julho passado para o festival “Zadenvies”: todos esses jovens estão lá em busca de uma alteridade possível, de outra forma de ver e estar juntos. É isso que é excitante, esses modos de ação geram modos de vida. E alegria também; é preciso ver o entusiasmo de compartilhar essas lutas. Tanto melhor, porque a militância não deve ser um martírio!
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“Uma pequena parcela da humanidade, pela sua gula, compromete a possibilidade da habitabilidade na Terra”. Entrevista com Philippe Descola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU