26 Julho 2011
Três livros recentes abordam o tema político da "animalidade". Uma filosofia fundada no direito à vida, à expressão e à morte dos seres vivos.
A análise é do escritor e filósofo italiano Felice Cimatti, professor da Universidade da Calábria, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 13-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O problema do animalismo é que a questão da animalidade, na realidade, não se refere aos animais. Ou melhor, não se refere só aos animais (não humanos). Com efeito, o limite de grande parte do animalismo é o de acreditar que podemos nos ocupar do bem-estar animal sem nos ocuparmos também do bem-estar dos animais humanos. Há uma única lógica que liga os horrores do matadouro com os da exploração dos trabalhadores, da expropriação dos bens comuns, da transformação da própria vida humana em mercadoria.
Para isso, como escreve Leonardo Caffo em Soltanto per loro. Un manifesto per l`animalità attraverso la politica e la filosofia [Apenas para eles. Um manifesto pela animalidade através da política e da filosofia] (Ed. Aracne, 136 páginas), "deve ficar claro desde já que ser animalista, em sentido forte, significa fazer uma escolha política". O animalismo ou está do lado de uma mudança radical da ordem social existente, ou se condena sozinho à irrelevância. Enquanto a única lógica admitida for a da valorização do capital, não será possível salvar a pele nem de uma vaca nem de um mineiro.
O problema não é o de se preocupar de fazer com que um porco morra de um modo não tão cruel (embora seja um problema urgente e importante), mas sim o de tentar imaginar uma organização social não baseada na exploração e na expropriação da vida: "O que parece necessário é tornar coletiva uma escolha não violenta, mas não se pode fazer isso esperando, `simplesmente`, que um dia os supermercados substituam a prateleira da carne e do queijo respectivamente pelas de seitan e tofu. O que parece necessário é pôr em discussão a própria estrutura do supermercado e dos sistemas afins que fornecem uma suposta liberdade de escolha entre aquilo que já foi escolhido na origem".
Para salvar a galinha é preciso entender como funciona a economia política, antes ainda de tentar estabelecer se uma galinha tem ou não uma vida mental. Até porque – ainda é Caffo que nos alerta – é forte o risco, caso contrário, de cair no antropomorfismo, um risco em que muitos animalistas continuam caindo. Por exemplo, é uma estranha forma de amar os animais a de quem diz que o seu cachorro (que estranheza, ser dono de uma vida) só falta falar: isto é, que esse cão deve ser amado não porque é um cão, mas sim porque é quase um ser humano.
A questão do animalismo é, portanto, a de uma política e de uma filosofia que põem no centro das atenções o "direito à vida, à expressão, à morte" dos seres vivos. Como nos lembra Darwin, a partir da infinita diversidade das formas de vida.
Aqui vale a pena mencionar o livro de Massimo Filippi, Ai confini dell`umano. Gli animali e la morte [Nas fronteiras do humano. Os animais e a morte] (Ed. Ombre Corte, 95 páginas), que aborda o tema da "máquina antropológica", isto é, da operação mediante a qual a filosofia (assim como a religião) reafirma a separação do humano e do animal. Uma separação que chega, com Heidegger, a defender que os animais, na realidade, não morrem, porque eles só podem perecer, enquanto a morte é uma prerrogativa exclusivamente humana. Mas o que significa que os animais não morrem? Que o humano é, portanto, algo radicalmente diferente do resto dos seres vivos. Ora, já no próprio absurdo de falar do animal no singular, da animalidade em geral, está implícita uma separação que, quanto mais é falsa, mais ela deve ser reiterada sempre de novo.
Filippi reconstrói o aparato conceitual que permite essa operação, não para mostrar que o ser humano nada mais é do que um animal (movimento especular ao do especismo separatista), mas para colocar o ser humano entre os outros animais. E ele destaca o paradoxo do antiespecismo, que na pressa de igualar o animal ao humano continua "ignorando o verso do animal, cuja morte tornou possível o direito do homem". Não é possível defender os direitos dos animais a partir dos direitos dos humanos, dado que estes existem apenas enquanto baseados na exclusão da animalidade (o homem é aquilo que não é animal).
Uma base comum para repensar a questão animal pode ser, então, justamente a da mortalidade que une os seres vivos: "Essa `possibilidade da impossibilidade` une humanos e animais não porque eles morrem do mesmo modo (o que pode significar uma frase desse tipo?), mas porque ambos com-padecem, detêm-se pacientes em uma exposição sem garantias".
A despeito de Heidegger, humanos e vírus morrem, assim como todos os outros seres vivos. Não há um único modo de viver, assim como não só há um único modo de morrer: "Cruzar a fronteira da morte significa cruzar a fronteira entre nós e o animal, distender as malhas do `paradigma fronteira` até transgredi-lo, até violar a sua natureza de propriedade privada, transformando-o em território".
A política da animalidade
E assim de novo voltamos ao tema político da animalidade, o de uma vida não mercantilizada. No centro deste projeto está, de novo e de novo, o corpo, que "é o eminentemente vulnerável que compartilhamos com todo o ser vivo", aquele ser vivo que "é justamente a aceitação de tal vulnerabilidade que permeia a experiência afetiva, potencialmente compassiva, hospitaleira e cordial para com os outros corpos".
A questão da animalidade, portanto, "constitui o impensado da nossa civilização", como escrevem Massimo Filippi e Filippo Trasatti na introdução à coletânea de ensaios L`albergo di Adamo. Gli animali, la questione animale e la filosofia [O abrigo de Adão. Os animais, a questão animal e a filosofia] (Ed. Mimesis, 317 páginas): a exploração do animal é o paradigma e o modelo da exploração humana (a propósito, leia-se o tremendo livro de Charles Patterson, Un`eterna Treblinka. Il massacro degli animali e l`Olocausto, Ed. Riunuti, em que se mostra como a burocracia nazista se inspirou nos matadouros para organizar o extermínio de milhões de seres humanos).
Entre os inúmeros e interessantes ensaios desse livro, que pode ser lido como uma primeira aproximação aos animal studies, ainda pouco conhecidos na Itália, assinalamos os de Marco Maurizi, que aborda a difícil questão da relação entre marxismo e mundo da natureza. Que posto atribuir aos animais em uma sociedade sem classes? "O animal, seja ele reduzido a mercadoria ou assujeitado como meio de produção, é uma engrenagem da sociedade de classes que espera, como outros, a sua própria redefinição em uma sociedade socialista".
A libertação do animal não poderá ocorrer sem uma paralela libertação do humano, "porque o que a sua domestiação produziu de essencial para nós não é a carne bovina ou o marfim, mas sim o domínio que, através destes, se exercita sobre o homem. O assujeitamento do animal não faz parte da história da liberdade do homem, mas sim da história da sua própria escravidão".
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A falsa separação entre a nossa espécie e as outras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU