20 Novembro 2012
O francês Philippe Descola, de 64 anos, é parte de um grupo de antropólogos contemporâneos - ao lado do também francês Bruno Latour e do brasileiro Eduardo Viveiros de Castro - que propõe embaçar a distinção natureza/cultura, durante muito tempo orientadora do pensamento sobre o humano.
O ponto de partida de sua obra foi uma longa convivência, nos anos 1970, com a tribo achuar, indígenas da Amazônia equatoriana, sobre os quais publicou no Brasil "As Lanças do Crepúsculo" (Cosac Naify). Antes de se formar em antropologia sob a orientação de Claude Lévi-Strauss, estudou filosofia com Michel Foucault e Gilles Deleuze, pensadores que também o influenciaram.
Descola, que esteve no Brasil no mês passado para série de conferências no Rio, em Brasília e no Recife, hoje se interessa pelo que chama de "ontologia das imagens", mais uma estratégia de questionar o naturalismo e a ideia de que os humanos possuem uma interioridade distinta que os separa dos outros existentes.
A entrevista é de Carla Rodrigues e publicada pelo jornal Valor, 20-11-2012.
Nesta entrevista, ele fala dos desdobramentos desse tipo de pensamento, acusado muitas vezes de relativista, para o ambiente, a defesa dos animais e a forma de fazer antropologia, dentro do que chama de "uma teoria geral sobre a continuidade e a descontinuidade entre humanos e não humanos".
Eis a entrevista.
Sua obra começa com uma etnologia na Amazônia, nos anos 1970. O senhor acompanha o debate sobre a questão indígena na Amazônia hoje?
É um debate relativamente simples. De um lado, a espoliação territorial das terras indígenas - que é muito grave e diferente nos diversos países que compõem a Amazônia -, a destruição da floresta e do modo de vida de populações que vivem dela, como seringueiros. São problemas muito graves e cada país o encara de maneira diversa. Mesmo assim, a situação do extermínio da população ameríndia já foi pior. Quando comecei a fazer etnologia na Amazônia, os ameríndios não eram representados na cena pública. Os etnólogos ocupavam um papel importante como porta-vozes, para fazer eco a situações que eram dramáticas. A grande mudança atual é que os ameríndios ocupam uma posição de interlocução, o que no Brasil é particularmente notável. Sem intermediários, são capazes de se fazer entender por eles mesmos, o que é muito positivo.
A partir desse trabalho, o senhor começou a pensar as relações entre humanos e não humanos. Quais são as consequências desse tipo de pensamento?
Toda a tradição do pensamento humanista consiste, de forma um tanto paradoxal, em pôr os humanos no centro e, ao mesmo tempo, de tirá-los do centro do mundo. É uma espécie de contradição permanente do pensamento. O que tento fazer - inspirado por Lévi-Strauss - é "desantropocentralizar" a antropologia, uma disciplina que nasceu, no âmbito das ciências sociais, como resultado da vontade de ter uma atitude reflexiva sobre as nossas experiências coletivas, na Europa e no mundo ocidental. Sociedade, natureza, cultura, história e razão são conceitos que nos permitiram nos objetivar a nós mesmos, mas são extremamente inadaptados para a análise e a descrição de realidades diferentes. O que tento fazer é compreender como em outros sistemas culturais, aqui, por exemplo, na Amazônia, existem espécies animais, vegetais, espíritos que formam certa espécie de sociedade. São sociedades coextensivas aos cosmos que nos impedem de distinguir a cultura de um lado, a natureza de outro.
Trata-se de repensar os objetivos da antropologia?
A antropologia nasce na segunda metade do século XIX na Europa para questionar sobre como viviam as sociedades que não estabeleciam a distinção natureza/cultura, justamente no momento em que o pensamento europeu estava se estabelecendo a partir dessa distinção. Era a partir dessa distinção que os departamentos das universidades começaram a se organizar, separando as ciências da natureza das ciências humanas. Nesse mesmo momento havia a descoberta de que havia sociedades que não consideravam essa distinção. De certa forma, a antropologia surge como uma ciência que busca entender esse "escândalo lógico". Essa distinção que hoje nos parece superada tem uma história, que eu retracei no livro "Par-delà Nature et Culture" (Gallimard), que começa com os gregos, passa pelo cristianismo, mas começou a emergir entre o século XV e o XVII.
Qual é a importância desse tipo de pensamento para a defesa do ambiente?
O fato de distinguir de um lado a vida social, de outro a natureza, favoreceu a percepção de que a natureza é alguma coisa exterior ao homem e pode ser transformada em um recurso passível de ser destruído em nome da vida social. Chamar a atenção sobre outras formas de concepção da relação entre humano e não humano - que se dá não apenas nos ameríndios, mas no budismo e em outras formas de organização -, é mostrar que os humanos são uma prolongação do ambiente e as perturbações que produzem nele não apenas são dramáticas para todos os seres, mas também para nós. Há cada vez mais pessoas convencidas de que a distinção natureza/cultura não tem nenhum sentido, porque fenômenos como aquecimento global e efeito estufa são naturais, mas também culturais. O que se vê é a irrupção do social dentro do natural e do natural dentro do social, o que terá efeitos políticos importantes que, esperamos, não seja tarde demais.
O crescente movimento de defesa dos animais também pode ser considerado um desdobramento desse tipo de pensamento?
Faço distinção entre duas formas de defender os direitos dos não humanos. Há uma versão, individualista, que inclui nomes muito conhecidos, como Peter Singer, que tem por objetivo estender aos não humanos certos direitos que são dos humanos. O que pode ser muito positivo, mas é um tipo de discurso a partir de uma visão muito ocidental da questão. Há outro tipo de defesa dos animais, que chamo de ecocentrada, defensora da biodiversidade. Em tudo, nas espécies, na cultura, vale mais a diversidade do que a monotonia.
O senhor e o brasileiro Viveiros de Castro compartilham muitas ideias a respeito da necessidade de superação da distinção natureza/cultura. O que há de proximidade e de distância no pensamento dos senhores?
Ao longo do tempo desenvolvemos nosso pensamento por meio de um diálogo permanente, que começou há 30 anos e perseverou na França e no Brasil. Somos muito influenciados por Lévi-Strauss, o que já é um ponto de partida importante. Também somos ambos especializados nas sociedades amazônicas e contribuímos para transformar a visão sobre esses grupos ao aportar a percepção de que parte importante da vida dessas sociedades se passa não com os humanos, mas com os não humanos. Para compreender essas sociedades, pensar a relação com a natureza foi muito importante. Nós dois sublinhamos que essa relação com a natureza se traduz numa forma de existência e organização social muito particular, ao incluir os não humanos na vida social. Não podemos compreender essas sociedades se não compreendermos isso.
No entanto, a diferença que se estabelece entre nós ao longo do tempo é que eu desenvolvi um pensamento que visa tomar as sociedades amazônicas e particularmente sua concepção de relação entre humanos e não humanos como um tipo entre outros, dentro de uma teoria geral sobre a continuidade e a descontinuidade entre humanos e não humanos. Já Viveiros de Castro se engajou em um trabalho filosófico sobre o pensamento ameríndio como um tipo de pensamento alternativo ao pensamento ocidental.
Nossas divergências hoje vêm do fato de que eu sempre estive engajado em um projeto geral de antropologia, do qual as sociedades amazônicas fazem parte, entre outras, enquanto Viveiros de Castro, principalmente no seu último livro, publicado na França ("Métaphysiques Cannibales. Lignes d'Anthropologie post-Structurale", PUF, 2009, sem edição brasileira), expõe um projeto inspirado pela filosofia de Gilles Deleuze, de desenvolver o que poderia ser chamado de uma filosofia indígena, que se propõe a ser um contraponto à filosofia ocidental.
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Em busca de um novo lugar para o homem e a natureza. Entrevista com Philippe Descola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU