28 Setembro 2022
"É cretinice alardear “Deus acima de tudo, família acima de todos”, mas fomentar o armamentismo, a devastação ambiental, a perseguição aos povos indígenas, quilombolas, LGBTQIA+, reforçar a cultura machista e patriarcal e amputar cada vez mais o braço social do Estado. Dizer de forma abstrata que defende a família e na prática amputar direitos trabalhistas, previdenciários, retirar dinheiro do SUS e da farmácia popular é na prática pôr no corredor da morte milhões de famílias empurrando-as para a fome, a doença e a morte lenta", afirma Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG); licenciado e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); bacharel em Teologia pelo Instituto Teológico São Paulo (ITESP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da Comissão Pastoral da Terra/MG (CPT), assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) e das Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica (SAB), em Belo Horizonte, MG; colunista de vários sites; e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
As eleições no Brasil em outubro de 2022 coincidem com os 100 anos da irrupção do fascismo no mundo, especialmente na Itália, iniciado com a Marcha sobre Roma, dia 28 de outubro de 1922, sob a liderança do ditador fascista Benito Mussolini (1883-1945). Nos últimos 100 anos, como um vulcão em erupção, o fascismo tem cuspido injustiças, discriminações, violências, ditaduras e reprimido com requintes de crueldade milhões de pessoas em muitos países, em nome de “Deus, Pátria e Família”. O livro "O Papa e Mussolini: a conexão secreta entre Pio XI e a ascensão do fascismo na Europa", do historiador estadunidense David I. Kertzer, conta como o papa Pio XI colaborou com o tirano Mussolini para a ascensão do fascismo em troca de privilégios para a Igreja Católica. Após ser eleito pelo povo, com discurso religioso e ufanista, em seu discurso de posse como primeiro-ministro, em outubro de 1922, Mussolini invocou a ajuda de Deus, mesmo sendo ateu, fez discurso religioso afirmando que “Roma era o lar espiritual dos católicos de todo o mundo e que o fascismo ajudaria a promover os valores cristãos na sociedade italiana – um Estado católico para uma nação católica”, tudo o que o papa Pio XI e os católicos tradicionais gostariam de ouvir.
Kertzer afirma: “O papa Pio XI sabia que Mussolini era antirreligioso até o último fio de cabelo, mas viu nele a oportunidade de alcançar um acordo que restaurasse privilégios que a Igreja Católica gozava antes da unificação italiana até 1870.” Ignorando os verdadeiros motivos que levaram à realização da Revolução Russa em 1917 – luta pela superação da tirania czarista do Czar Nicolau II e a superexploração do povo - e fortalecendo o capitalismo de forma não confessada, o papa Pio XI uniu sua cruz ao porrete dos fascistas para combater o comunismo. Mussolini levou ainda todo o seu gabinete para rezar de joelhos no Vaticano. Em 1924, quando fascistas assassinaram o socialista Giacomo Matteotti por denunciar a fraude eleitoral de Mussolini, o papa Pio XI repreendeu os parlamentares católicos e manteve o apoio a Mussolini, ajudando-o a superar a crise e consolidar seu poder ditatorial. Mussolini mandou colocar crucifixos nos tribunais, no Parlamento, nas escolas e em todas as repartições do Estado italiano. Incorporou feriados religiosos ao calendário e capelães católicos às Forças Armadas. Introduziu o ensino da religião católica no currículo escolar e patrocinou a restauração de muitas igrejas católicas. Em 11 de fevereiro de 1929, Mussolini assina o Tratado de Latrão, reconhecendo a soberania política e territorial do Vaticano.
Entretanto, o papa percebeu que tinha chocado ovo de serpente quando Mussolini se aliou a Hitler, que estava perseguindo inclusive os católicos na Alemanha. O fascista Mussolini adotou na Itália também as leis antissemitas que perseguiam os judeus. Quando planejava denunciar a aliança macabra de Mussolini e Hitler e pedir perdão pelo erro histórico que foi apoiar o fascismo italiano, em 1939, o papa Pio XI morreu. Mussolini ordenou que todas as cópias do sermão-denúncia do papa Pio XI fossem destruídas e foi atendido pelo cardeal Eugenio Pacelli, futuro papa Pio XII, sobre quem pesam acusações de cumplicidade silenciosa com o nazifascismo. Entretanto, nosso querido papa Francisco tem denunciado com veemência a tirania do sistema econômico capitalista – “economia de morte” - e junto com Movimentos Sociais Populares tem apontado que o caminho a seguir inclui construir uma sociedade do bem viver e conviver, o que exige superar as relações sociais escravocratas e construirmos relações sociais socialistas.
Com o slogan “Deus, Pátria e Família”, o fascismo se espalhou também para a Espanha com o Franquismo, que foi o regime ditatorial do general Francisco Franco (1892-1975). Já sabemos as brutalidades, injustiças e violências perpetradas pelos nazifascistas na Itália, na Espanha e, de forma extremada, na Alemanha sob o nazismo: milhões de pessoas assassinadas – mais de 6 milhões de judeus, ciganos, camponeses, homossexuais etc., - em nome de “raça pura”, pensamento único, uniformização da sociedade a partir dos que estão no poder tiranizando a maioria do povo e tecendo relações sociais escravocratas. Ultimamente vimos as atrocidades que o fascista Trump causou nos Estados Unidos e em muitos outros países do mundo. Alguns países atualmente padecem as agruras do fascismo, entre eles a Turquia e o Brasil. A grave crise pela qual passa a Itália levou à ascensão do neofascismo no parlamento italiano com as mesmas hipócritas bandeiras de Deus, Pátria, Família, bons costumes, nacionalismo xenófobo, meritocracia, privatização de bens e serviços públicos até ao absurdo de afirmar que vai fechar o país e não permitirá a entrada de imigrantes.
Importa ressaltar que onde há capitalismo há potencial para descambar para o horror que é fascismo. Quem não consegue denunciar as brutalidades do capitalismo não tem moral para denunciar o fascismo, pois capitalismo é o celeiro onde se gera o fascismo. Logo, para impedirmos ou interrompermos projeto de poder fascista precisamos superar as relações sociais capitalistas que são em última análise as geradoras do fascismo.
Temos quer recordar para não repetir. Política com P maiúsculo é arte e ciência de luta pelo bem comum, luta por direitos em uma sociedade capitalista escravocrata. O sentido mais profundo de Religião é nos religar com Deus, o mistério de infinito amor que nos envolve, nos religa com o próximo e com todas as criaturas que compõem a comunidade de vida na nossa única casa comum, o Planeta Terra. Nesse sentido, nosso Deus não é um Deus neutro, omisso e nem cúmplice diante das injustiças. A Bíblia respira profecia, de ponta a ponta, do Gênesis ao Apocalipse. Na experiência fundante dos povos da Bíblia escravizados estão as parteiras no Egito fazendo rebelião, desobediência civil, política e religiosa diante de um decreto lei do faraó que mandava fazer controle de natalidade matando ao nascer as crianças do sexo masculino. Diante de uma política de morte as parteiras se rebelaram e o Deus solidário e libertador ficou feliz com a posição das parteiras. Assim iniciou o processo de libertação dos povos escravizados debaixo do imperialismo dos faraós no Egito. Os quatro evangelhos da Bíblia narram Jesus expulsando os vendilhões do templo. Foi com rebelião religiosa, política e econômica que se iniciaram os processos de libertação dos povos da Bíblia. As pessoas religiosas são convidadas a serem luz nas trevas, fermento na massa e sal na comida para construirmos uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, sustentável ecologicamente e respeitosa diante da imensa diversidade cultural e religiosa. Portanto, usar a religião para se promover politicamente e para se enriquecer não é justo, é traição à aliança com o Deus da vida e negação do Evangelho de Jesus Cristo.
Lamentavelmente existe no Brasil atualmente muitos políticos, padres, pastores, líderes religiosos enfim, que usam e abusam do nome de Deus, citando fora de contexto versículos bíblicos e usando a fé das pessoas para se beneficiar politicamente e enriquecer-se. Isso não é justo, não é ético, é idolatria. Ultimamente, eleição após eleição, está crescendo o número de pastores eleitos para cargos políticos. Isto não tem melhorado a vida do povo. Aliás, tem piorado muito, pois assistimos a um predominante abuso do nome de Deus e da dimensão espiritual das pessoas, enquanto os religiosos eleitos apoiam políticas de morte como o agronegócio brutalmente devastador do meio ambiente e gerador de 33 milhões de famintos e a necropolítica do atual antipresidente.
Hoje muitos movimentos religiosos alimentam o fanatismo que se apoia no fundamentalismo, que leva as pessoas a assumirem posições moralistas, autoritárias e discriminatórias. Seja por ignorância, por mediocridade ou por propósitos não confessados, o que acontece atualmente em muitas igrejas é um descarado comércio, ou seja, uso e abuso do nome de Deus, invocado em vão, e a citação de versículos da Bíblia retirados dos seus contextos para justificar posturas discriminatórias, moralistas, absurdas e cumprir um objetivo não confessado, que é ajuntar e acumular cada vez mais dízimo, ofertas, muitas vezes induzindo as pessoas simples e humildes a doarem o pouco que tem em busca de bênção, cura e conforto. É cretinice alardear “Deus acima de tudo, família acima de todos”, mas fomentar o armamentismo, a devastação ambiental, a perseguição aos povos indígenas, quilombolas, LGBTQIA+, reforçar a cultura machista e patriarcal e amputar cada vez mais o braço social do Estado. Dizer de forma abstrata que defende a família e na prática amputar direitos trabalhistas, previdenciários, retirar dinheiro do SUS e da farmácia popular é na prática pôr no corredor da morte milhões de famílias empurrando-as para a fome, a doença e a morte lenta. A teologia que liberta busca construir relações humanas e sociais de amor, de justiça, de ética, de solidariedade, de ajuda mútua e de responsabilidade social, ambiental e geracional e jamais alimentar ódio, intolerância e discriminações.
Essa postura de centenas de líderes religiosos que se servem do poder religioso para angariar poder político e acumular riqueza é totalmente contraditória com o Evangelho de Jesus Cristo, que pede para sermos bons pastores, ou seja, cuidarmos de todo o rebanho e principalmente das ovelhas machucadas e enfrentar os lobos muitas vezes travestidos de bons samaritanos. Injustamente, há falsos pastores e falsos sacerdotes se aliando a lobos ao apoiar armamentismo, devastação ambiental, amputação de políticas públicas que geram vida para o povo.
O abuso do nome de Deus e da fé das pessoas também precisa ser considerado crime eleitoral e levar à cassação do/a candidato/a ou do eleito/a que se aproveitou da dimensão de fé das pessoas iludindo-as. A palavra/princípio básico do Decálogo Bíblico é: “Não matarás!” (Êxodo 20,3). Não merece o voto de uma pessoa que busca ser humana - respeitosa, justa e solidária - um candidato/a que faz propaganda, fazendo alusão ao uso de armas e coloca um fuzil nas mãos de uma criança, dizendo que é melhor do que feijão. Esse candidato, de fato, pisoteia na fina flor da Bíblia que nos exorta a construirmos uma sociedade com Justiça e Paz, com vida em abundância para todos/as (Jo 10,10). Priorizemos eleger mulheres de luta pelo bem comum, negros que lutam pela superação do racismo e indígenas que estão comprometidos com as lutas pelo resgate dos territórios indígenas e pela abolição da famigerada tese do marco temporal.
Enfim, aprendamos com a história do fascismo que nos dias que muitos ditadores e tiranos foram eleitos usando e abusando do nome de Deus e acenando de forma hipócrita para as pessoas religiosas. Fascismo é ovo de serpente e não deve ser chocado.
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Uso abusivo da religião nas eleições. Artigo de Frei Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU