05 Mai 2020
"Se é um deus que guia a geopolítica atual brasileira, que tipo de deus estamos nos referindo? Para ser mais claro: que deus está ao lado e guiando os passos de Bolsonaro, atual presidente eleito pelo 'povo' e pelos seus desejos particulares do mercado financeiro, de grupos de mineradores, exploradores e conservadores religiosos?", escreve Claudinei Reis Pereira, professor, doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI, especialista em Lógica e Ciências Cognitivas pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA, especialista em Ética e Política pelo Instituto de Estudos Superiores do Maranhão – IESMA e graduado em filosofia também pelo Instituto de Estudos Superiores do Maranhão – IESMA.
Diante dos fatos da política brasileira, que vem se misturando entre divergências e convergências, de esquerdistas e direitistas, além do jogo de caça aos “ratos”, dos inimigos da nação e de sua locação avermelhada, venho fazer uma provocação aos leitores diante de uma ideia que se propaga ideologicamente como fonte de sentido e fundamento de uma possível vitória e condução presidencial: “A justificativa que Deus é nosso guia”. A leitura não será agradável, mas sim provocativa. Não se trata de uma visão de um não-cristão, mas de um análise de uma filosofia da suspeita, isto é, “quem tem ouvido para ouvir, ouça, mas os espíritos livres”.
No dia 01 de janeiro de 2019 tivemos a posse do atual presidente Jair M. Bolsonaro, uma espécie de “posse da espetacularização”. Nesta breve análise, não pretendo me deter em todos os detalhes, mas apenas no aspecto ideológico cristianizado. O próprio sobrenome “Messias” traz um tom apaziguador: “Messias” termo hebraico que designa “masiah”, isto é, “o ungido.” Cristo por sua vez, na narrativa bíblica se origina do termo hebraico “jeschuang” (salvador). Assim sendo, Messias, Cristo e Jesus designam o Enviado de Deus, o Salvador dos homens, o Mediador prometido. A configuração bíblica para os seguidores do evangelho parece que se configura ao “novo eleito” entre os homens, a figura de salvação entre Deus e os homens. Aqui me refiro ao atual presidente, que, a saber, não é um deus, mas se coloca como alguém que fala diretamente com Ele e sendo porta voz de sua Verdade. Esta é figura emblemática que fez milhares de pessoas irem as ruas em seu favor e “derrotarem” os principais inimigos da nação: “os vermelhos petistas e comunistas”. A dualidade que vem deste Platão (mundo sensível e mundo inteligível) continua no jogo político. Nós (o espírito-razão) “Temos que vencer aquilo que nos prende (corpo) Mal”.
Minha proposta não é identificar o vetor do Mal, mas sim saber (provocar) se àqueles que se colocam com o “vetor do Bem”, é de fato o “Bem”. Na espetacularização da posse ouvimos várias frases como:
“[...] Isso só está sendo possível porque Deus preservou minha vida e vocês acreditaram em mim”
“Respeitando o Estado democrático de Direito, guiados por nossa Constituição e com Deus no coração, [...] vamos promover as transformações de que o país precisa”
“Agradeço a Deus por estar vivo e a vocês que oram por mim e por minha saúde nos momentos mais difíceis”
“Peço ao bom Deus que nos dê sabedoria para conduzir a nação”
“Que Deus abençoe esta grande nação. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”
Ora, frases que comovem a mente humana, pois o fundamento que os guia é “inquestionável”. Não é por caso, que suas ideias tornaram-se atrativas entre grupos conservadores católicos e protestantes, que, a saber, um de seus maiores apoiadores. Vale ressaltar que a espiritualidade é uma questão subjetiva, ou seja, parte da relação intima do indivíduo com o absoluto. Porém, a questão não seria esta, mas sim saber se as características cristológicas e divinas estão de fato presente juntamente com o novo governo ou se ainda se encontra na velha política do “vermelho-comunista”. Aqui vem a análise mais dura que só os espíritos livres podem entender.
Que deus Bolsonaro se refere? Como saber se existe um deus que de fato está com ele e o guiará durante seu período mandatário? Se se refere ao Deus da tradição judaico-cristã, será que este ainda é possível? Se este for o Deus que o guia e guiará a nação, temos que anunciar que este Deus da Cristandade parece não mais ser possível guiar à vida dos homens.
De acordo com Vito Mancuso (2014), em sua obra Eu e Deus: um guia para os perplexos, este Deus que clamamos não nos parece mais com o Deus dos pobres e humilhados, isto é, Aquele que esteve ao lado dos que não aparecem na contabilidade capitalista nacional e mundial, mas trata-se “ao que parece, nesses casos [...] o Deus humano, demasiado humano, que é apenas uma invenção do homem, um bom rótulo social, funcional ao poder da política”.
Tivemos uma evidência sociológica de um crescimento explosivo da religião na contemporaneidade descrito por vários autores. Norberto Bobbio em sua autobiografia afirmara um relato descrito nas paredes do metrô de Nova York: “God is the answer” (Deus é a resposta). Esta descrição evidencia não só que “Deus seja a resposta” para o mundo, mas que o mesmo se proliferou em sua volta em maior grau no “discurso público e no espaço político, confinado a uma dimensão privada.” Nem mesmo o “novo ateísmo” moderno descrito e publicado por especialistas pela revista concilium (ateístas de qual Deus?) como Solange Lefebvre, André Torres Queiruga e Maria Clara L. Bingemer “que a religião é descrita como intrínseca e caracteristicamente perigosa, venenosa e má”, criticada violentamente pelos “quatros cavaleiros do apocalipse”: Richard Dawkins, Sam Harris, Daniel Dennett e Christopher Hitchens, extinguiu a necessidade de Deus no mundo.
Não obstante, as palavras do atual presidente Bolsonaro se aproximam claramente dos interesses americanos, não só do ponto de vista econômico e explorativo, mas do slogan também americano de “uma só nação sob Deus” e guiada Deus. Parece mais do que nunca que quanto mais se busca bombardear a religião, mas ela “cresce”. Como dizia Nietzsche, citado pelo romancista e ensaísta Pascal Bruckner em sua obra A tirania da penitência: ensaio sobre o masoquismo ocidental: “as ideologias laicas, em nome da humanidade, supercristianizaram o cristianismo e reforçaram sua mensagem”.
O filósofo Gianni Vattimo nos afirma que “Deus é de novo um termo central da nossa cultura”. Segundo o autor, três grandes fatores nos levaram a este fato, a saber: o cientificismo positivista, o historicismo hegeliano, e depois, o marxismo. A questão central dessa discursão é: Deus está de volta? Pelo menos para alguns sim, como nos afirma o livro de dois jornalistas do semanário The Economist Micklethwait e Adrian Wooldridge Gol is Back, “Deus voltou”, tendo como subtítulo: “Como o reavivamento global da fé mudará o mundo”. Bom, para os crentes sim, Deus voltou e configura-se em um novo personagem, para os mestres das suspeitas, é provável que não.
Onde estaria este Deus agora? Será que o mesmo pode ser visto juntamente com o atual presidente, ao lado de sua cadeira presidencial, junto “ao Cordeiro de Deus”? Ou será que se encontra acorrentado em uma cadeira da velha e saudosista política e utopias do passado, “avermelhados” esperando uma redenção divina e justa? Ademais, será que o Deus de Mateus capítulo 5 do sermão da montanha deixara de existir? O Deus da misericórdia e do amor fora substituído pelo deus do ódio, da vingança, do farisaísmo, da indiferença e desumanização? Todos foram abandonados ao critério do destino como os pobres de espíritos; os mansos; os aflitos; os que têm fome e sede de justiça; os misericordiosos; os puros de coração; os que promovem a paz; os perseguidos por causa da justiça? Onde está o “Reino de Deus”? Ao que parece, nem mais o Deus do sermão da montanha e nem o Deus de apocalipse capítulo 21, verso 5 “Eis que faço nova todas as coisas” é mais possível voltar! Conquanto, queremos, seja no âmbito humano ou político justificar irresponsabilidades e o inexplicável o fazê-lo um refugium theoloroum.
Não nos parece mais razoável em concordância com Vito Mancuso, a espera do Deus da tradição, isto é, sua volta não é mais possível. Como Mancuso (2014) nos alerta: O Deus que orientou a consciência ocidental por quase dois milênios, o Deus que guiava os exércitos e em cuja presença celebrava-se a missa com o triunfal Te Deum depois das vistorias militares, e Senhor da história que estava por trás de todo conhecimento, o Deus da Providência que escolhia os reis e os imperadores de acordo com a afirmação de São Paulo, em que “não há autoridade que não venha de Deus”, descrita em Romanos, 13, verso 1; o Deus da De civitate de Santo Agostinho, que guiava os destinos dos povos para a plena submissão à Igreja de Roma: esse Deus, segundo ele não pode mais voltar. Como se não bastasse, “depois dos milhões de inocentes massacrados na mais total indiferença celeste, é simplesmente impossível falar ainda de um Deus da Providência história”. Além disso, “somente pelo fato de um Auschwitz ter existido na afirmação do autor, ninguém deveria hoje em dia falar de Providência”.
Por fim, concluímos com questão provocativa inicial: Se é um deus que guia a geopolítica atual brasileira, que tipo de deus estamos nos referindo? Para ser mais claro: que deus está ao lado e guiando os passos de Bolsonaro, atual presidente eleito pelo “povo” e pelos seus desejos particulares do mercado financeiro, de grupos de mineradores, exploradores e conservadores religiosos? Se Vito Mancuso estiver correto em sua análise e intuição assim como àqueles que acreditam indubitavelmente que o presidente é um “eleito de Deus” como afirmara um dos seus “gurus espiritual” Silas Malafaia, então vejo que substituir o slogan “Deus acima de Todos” por um demiurgo qualquer não me seria tanto estranho assim. Ao que parece, trata-se mais do “Deus humano, demasiado humano.” Como diria Carlos Drummond de Andrade, em seu poema: “Deuses secretos passeiam no território dos homens. Tramam, destramam nossa realidade”. Contudo, afirma o poeta: “Sei que é um deus inominado, sei que passará, e vou respirar, aliviado”.
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Deus como vetor: a pseudopresença do “Deus acima de todos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU