11 Fevereiro 2020
“Nunca antes como agora na história do Brasil, o destino da democracia esteve tão unido ao do estado laico e ambos, por sua vez, à deriva do autoritarismo de escala global”, escreve Federico Neiburg, professor de Antropologia no Museu Nacional do Rio de Janeiro e membro da Escola de Ciências Sociais, Instituto de Estudos Avançados, Princeton, em artigo publicado por Letras Libres, 12-11-2019. A tradução é do Cepat.
Há algumas semanas, o espaço público brasileiro voltou a ser sacudido por mais uma série infinita e diária de eventos que impõem novas agendas e que parecem empurrar para o abismo a fronteira do dizível no país sul-americano. Em sua habitual transmissão ao vivo, às quintas-feiras, em seu canal no YouTube, o presidente Jair Messias Bolsonaro, ao lado de seu ministro da Educação e seu secretário especial da Cultura, anunciou (mais uma vez) o início de uma nova era. Finalmente, disse, o país voltará às suas verdadeiras raízes: Deus, a Pátria e a Família.
Minutos depois, o secretário especial da Cultura, o diretor de teatro Roberto Alvim, fez sua própria transmissão, na qual reproduziu pontualmente o cenário e os gestos de uma famosa aparição de Joseph Goebbels, em 1933, reforçada pela música de fundo, a abertura da ópera Lohengrin, de Richard Wagner. Após anunciar como eixo principal da nova política a criação de “prêmios nacionais de cultura” para obras orientadas por esses “valores fundamentais”, em uma lista de gêneros que começa pela ópera e a escultura, encerrou seu discurso com uma frase que evocava pontualmente seu modelo nazista: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, dotada de uma grande capacidade de envolvimento emocional, profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada”.
A reação do mundo da cultura foi imediata. Vários aliados de Bolsonaro (incluindo o embaixador israelense) pediram a cabeça de Alvim, que permaneceu poucas horas no cargo. O presidente o fez renunciar claramente a contragosto, e não demorou em nomear sua substituta, uma atriz de novelas notável por suas posições de ultradireita, que imediatamente reafirmou a continuidade da política de seu antecessor, incluindo os prêmios já anunciados e a “guerra cultural” promovida pelas facções mais radicais do atual governo.
Em paralelo, o presidente se preocupa com a sua reeleição, que poderá ocorrer em 2022. Por isso, rompeu com o partido no qual se filiou para as eleições de 2018 e propôs a fundação de um novo, a Aliança pelo Brasil, que tem como lema o de sua campanha eleitoral - “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos ”-, como número o 38 (calibre preferido do ex-capitão) e como escudo uma imagem fabricada com cartuchos de bala. Essa parece ser a proposta do presidente para um país que se consolida na liderança mundial de assassinatos por armas de fogo e no qual, em 2019, após o decreto de liberalização de porte de armas, promovido pelo novo governo, foram vendidas legalmente um milhão a mais de munições do que no ano anterior.
Apesar da criação de novos partidos exigir longos procedimentos legais, as autoridades eleitorais organizaram novas modalidades para abreviá-los, como a coleta de assinaturas digital. A ampla rede de pastores evangélicos pentecostais que continuam dando apoio fervoroso ao presidente parece estar se mobilizando não apenas para o registro da nova sigla, como também para as eleições municipais de outubro próximo, anunciando uma vitória talvez mais contundente do que a obtida nas eleições presidenciais de 2018. Uma vitória que não foi necessariamente de um partido, mas do movimento conservador e reacionário que se expressa por meio de Bolsonaro e que, dada a organização peculiar do sistema político brasileiro, se distribui em uma dezena de pequenas siglas e em correntes dentro dos partidos maiores.
A chamada “teologia do domínio”, um dos pilares da alt right, encontrou terreno fértil no Brasil. Em 2008, o pastor Edir Macedo, fundador da mais rica e influente igreja pentecostal do país (a Igreja Universal do Reino de Deus), lançou um livro cujo título não precisa de comentários: Plano de poder. O bloco evangélico no congresso nacional tem hoje mais de 200 deputados de um total de 513. É conhecido como o bloco da Bíblia e forma, juntamente com os deputados favoráveis às armas e latifundiários, o chamado “Bancada dos três Bs” (Bíblia, Bala e Boi), dando uma maioria transversal à atual agenda conservadora.
Batizado em 2016 no rio Jordão, em Israel, pelo pastor Everaldo da também influente igreja da Assembleia de Deus, Bolsonaro não parou de avançar com a agenda política cultural da “teologia de domínio”. Prometeu nomear como novo juiz da Suprema Corte um “evangélico fervoroso” e vários de seus ministros são pastores. Entre eles, destaca-se a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que toda semana insiste em fazer uma reviravolta nas políticas estaduais, cada vez mais afastadas do ideal do estado laico estabelecido pela Constituição. Acaba de anunciar, por exemplo, um novo programa de educação sexual para jovens baseado na abstinência, com o qual espera impedir que “as jovens se masturbem nas universidades utilizando crucifixos”.
Enquanto os progressistas brasileiros ficam indignados com suas barbáries recorrentes, a ministra parece estar cada vez mais confortável em sua posição, desfrutando de altos índices de popularidade, só comparáveis com os de seu colega e suposto guia na luta contra a corrupção, o ex-juiz e agora ministro da Justiça Sergio Moro.
A “guerra cultural” desencadeada pelos adeptos da teologia do domínio também tem como frente privilegiada o Ministério da Educação, a cargo de um bolsonarista radical, simpatizante do terraplanismo, que acaba de nomear como diretor do sistema nacional de pós-graduação um empresário, proprietário de universidades privadas e declarado promotor do criacionismo.
Ao mesmo tempo em que o desmatamento e a mineração avançam, Bolsonaro continua expressando seu desprezo pelas populações amazônicas (“O índio está evoluindo e se tornando cada vez mais um ser humano como nós”, disse há poucos dias) e nomeia como um dos principais diretores da Fundação Nacional de Proteção aos Índios (FUNAI) um notável missionário evangélico.
Estima-se que no Brasil, em duas décadas, a população evangélica poderá ser maior que a católica. Nas eleições presidenciais de 2018, dos 30 milhões de evangélicos que puderam votar, 20 milhões optaram por Bolsonaro, garantindo com isso, em boa medida, a vitória do ex-capitão (os 60 milhões de votos católicos se dividiram em partes iguais entre ele e seu adversário do Partido dos Trabalhadores).
No entanto, a deriva brasileira é claramente muito mais que um efeito eleitoral. Os especialistas demorarão para explicar as razões do movimento de camadas tectônicas, sociais e culturais que levaram o país sul-americano à atual encruzilhada. Trata-se de algo que vai muito além da própria figura de Bolsonaro e, também, dos erros da atual oposição ou dos governos social-democratas anteriores, tanto os do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como os de Luiz Inácio Lula da Silva e sua sucessora Dilma Rousseff, todos igualmente tratados como inimigos pelo atual regime.
Enquanto os progressistas ainda parecem desorientados diante da força da onda conservadora que arrasa o país e buscam encontrar formas de se reorganizar no novo cenário político e social que os transcende, a crise econômica aparece como a única esperança de desviar um caminho que aponta para o fim não apenas do estado laico, como também da própria ideia de “direito” consagrada na Constituição “Cidadã” de 1988.
As políticas radicalmente neoliberais do ministro Paulo Guedes, em vez de produzir crescimento econômico, produzem pobreza a ritmos nunca antes visto. As privatizações e a reforma do Estado avançam rapidamente, mas sempre de forma mais lenta do que a agenda política exige, ao passo que o tesouro nacional começa a queimar suas reservas.
Por outro lado, conta a favor do atual movimento reacionário e restaurador a força que seus aliados internacionais parecem ganhar, em particular após a derrota democrata na tentativa de impeachment do presidente Donald Trump, do monstruoso fiasco nas primárias de Iowa e da declaração cada vez mais clara e monolítica de parte da alt right e dos movimentos pentecostais norte-americanos em apoio a um de seus mais insignes representantes, o vice-presidente Mike Pence.
Nunca antes como agora na história do Brasil, o destino da democracia esteve tão unido ao do estado laico e ambos, por sua vez, à deriva do autoritarismo de escala global.
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“Brasil acima de tudo” esmaga o estado laico - e a democracia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU