"Só quem pode nos salvar somos nós mesmos. Ilude-se quem acha que a tecnologia ou os deuses nos salvarão de forma milagrosa".
O artigo é de Demilson Figueiró Fortes, ecologista, engenheiro agrônomo formado pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel, especialista em Direito Ambiental e Urbanístico pela Escola de Direito da Fundação do Ministério Público – FMP, Conselheiro da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – Agapan, em artigo publicado por Sul21, 19-09-2022 e enviado pelo autor para o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou. O que está acontecendo?”, diz a canção de Nando Reis que explodiu na voz de Cássia Eller. O que está acontecendo? Essa pode ser a interrogação inicial para uma reflexão sobre clima, meio ambiente e eleições.
Estamos em setembro e a fumaça das queimadas da Amazônia invade os céus do Sudeste e do Sul do Brasil, indicando que Norte e Sul estão mais conectados do que se imagina. Há muita coisa acontecendo. O clima do mundo parece mesmo estar ao contrário. Mas, nessas eleições de 2022, quem reparou?
Este artigo está sendo escrito sob uma perspectiva nacional e, mais especificamente, do Sul do país. Mas é importante olhar atentamente para outras regiões do planeta e observar o que vem ocorrendo. Vive-se uma emergência climática no mundo. Segundo a Comissão Europeia, aquele continente passa pela pior seca em 500 anos. Florestas em chamas, solos rachados, racionamento de água e calor insuportável marcaram o verão europeu deste ano, com um clima quente e seco. Trilhos de trem empenaram devido às altas temperaturas, asfaltos racharam, aeroportos pararam, escolas suspenderam atividades.
Os rios europeus se encontram em níveis muito baixos. As imagens impressionam. Os principais rios agonizam. A geração de energia e o transporte fluvial foram afetados, assim como a pesca. Em alguns rios são visíveis os peixes mortos. Uma desolação.
O calor insuportável é sentido pela população, que demanda mais energia. Ocorre que a geração foi prejudicada pela seca, seja nas hidrelétricas, pelo baixo nível dos reservatórios, ou das nucleares, que precisam de água para resfriar os reatores.
O rio Danúbio, segundo maior do continente e que corta a Alemanha, cruzando dez países da Europa, chegou a níveis baixíssimos, os menores em quase um século. Assim como o Rio Reno, importante para a logística daquele país, pois, além de outros aspectos, é por ele que se transportam muitos produtos. Na Itália, o Rio Pó, um dos mais importantes do país, está praticamente sem água. A seca e o calor intenso e com menos gelo nas montanhas colocam em risco sua própria existência.
O Rio Loire, no Vale homônimo, importante região turística da França, está em um nível muito baixo nesta que é considerada a pior seca em décadas no país, e que afetou o abastecimento de água potável nas cidades, bem como a produção agrícola.
Reportagem do DW, de 17 de agosto deste ano, mostrou no leito seco do Rio Elba rochas que, antes submersas, agora estão visíveis. Em uma delas, que tem junto marcado o ano de 1616, está escrito: “Se você me vir, chore”. Em outra pedra, a gravura aponta: “Quem me viu, chorou. Quem me vê agora, vai chorar”. Essas datas talhadas nas rochas são denominadas de “pedras da fome”. Marcam anos de grandes secas. Sim, as pessoas aprenderam na dor que depois da seca sempre vinha algo terrível: a escassez do alimento.
Hoje, o que vemos são incêndios causando a devastação na vegetação na Espanha, onde comunidades inteiras foram desalojadas. Embora incêndios e calor tenham existido em outros tempos, os atuais eventos já representam uma dimensão histórica. Apesar do pior já ter passado, estão vivos na memória dos europeus os dias asfixiantes de calor e fumaça. Na definição de um jornal, “viveram um autêntico inferno”. E as imagens não deixam dúvidas disso.
A produção de azeite europeia foi prejudica. A Espanha, maior produtor de azeite no mundo, passa por severa seca e terá a produção reduzida, o que impactará o preço do produto no mercado internacional. Segundo alguns, seria a pior seca em 1.200 anos nessa região da Península Ibérica. Fala-se no ano mais seco da histórica meteorológica de Portugal.
Discute-se agora o novo mapa do vinho. Regiões tradicionalmente produtoras, caso da França, sentem a mudança da temperatura que ameaça a produção. Outros países como a Dinamarca começam a produzir vinho porque as temperaturas e mais dias de sol agora proporcionam as condições climáticas para se produzir vinho. Na safra deste ano, devido à seca, a colheita foi antecipada em países europeus produtores de vinho. Há incerteza como será a produção e qualidade dos vinhos diante da mudança de temperatura e a disponibilidade hídrica.
A seca e o calor extremo afetam não somente a sociedade e a economia, mas também a biodiversidade. A reprodução de aves pode ser afetada devido aos pássaros não migrarem. A vegetação seca ou foi devastada por incêndios. O fogo atinge flora e fauna.
A Europa que enfrenta atualmente a seca, também, vive uma crise energética. O paradoxo é que para combater o aquecimento global é necessário reduzir os combustíveis fósseis e acelerar a adoção de matriz renovável. Entretanto, a transição energética fica prejudica devido à impossibilidade de geração de energia hidráulica. Na Inglaterra, por exemplo, aumenta o consumo de energia para manter aparelhos de ar-condicionado, que agora começam a ser incorporados às residências dos ingleses.
Regiões dos Estados Unidos também passaram por secas severas, com diminuição das reservas de água e racionamento. A produção agrícola foi afetada. O Rio Colorado, que abastece milhões de pessoas, está com o nível baixo em razão da seca histórica, obrigando o governo a estabelecer restrição no consumo em vários estados. O Texas sofreu com a estiagem severa e perda de plantações e criações de animais. Após a seca, a região foi impactada por intensas chuvas e tempestades, foi da seca à inundação.
No outro lado do mundo, a China passa por um período de temperaturas extremas e falta de chuva. A temperatura em Chongqing chegou a atingir 45 graus. Trata-se da onda de calor mais longa e intensa em 60 anos, período em que o país registra mapas do clima de forma regular. A temperatura extrema fez com que muitas pessoas buscassem abrigo em estações de metrô de Chongqing.
A seca que assola a China fez os níveis de rios e reservatórios caírem muito, afetando o abastecimento de água à população, a produção agrícola, o turismo, o comércio, o funcionamento de indústrias e a geração de energia elétrica. Segundo o historiador meteorológico Maximiliano Herrera, citado em matéria publicada pela MetSul, em 28 de agosto deste ano, trata-se da onda de calor mais severa registrada no mundo pela duração e intensidade. Não há nada comparável. Há registro de incêndios, fábricas paradas e cidades sem iluminação para economizar energia. O país, considerado o motor da economia mundial, primeiramente foi paralisado por um vírus e, agora, pelo clima.
A Somália passa por estiagem de dois anos e uma grande seca há meses. Segundo a Agência ONU para Refugiados, a falta de água obrigou cerca de um milhão de pessoas a se deslocarem pelo país. A maior seca em quatro décadas faz com que famílias deixem tudo para traz e fujam da fome e da falta de água. Estima-se que sete milhões de pessoas estão desnutridas, parte delas próxima da fome absoluta. Somados os países Somália, Etiópia e Quênia, são cerca de 20 milhões de pessoas em insegurança alimentar, que esperam por ajuda humanitária. Nestes países, o cenário de seca somado à inflação dos alimentos e conflitos, impede a população de ter acesso à comida. Uma tragédia.
Já no Paquistão o problema tem sido o excesso de chuva. Inundações históricas deixaram boa parte do país submerso, abrindo uma crise social e ambiental de grandes proporções. Estima-se que um terço do Paquistão foi afetado com as inundações. Deslocamento e morte de pessoas, perdas agrícolas, doenças, erosão de solos e fome têm sido as consequências.
Acontecimentos como esses ocorrem em diferentes países como Espanha, Portugal, Inglaterra, Alemanha, Paquistão, China, Estados Unidos, Índia, Brasil e outros. Os eventos climáticos extremos têm atingido todas as regiões do mundo, nenhum lugar está imune. Trata-se de um fenômeno global: o padrão climático que vigora do mundo está não só se alterando, mas saindo do controle.
Eventos climáticos assim repercutem na economia, na saúde pública e na vida diária das pessoas. E, vale destacar, os mesmos lugares podem sofrer com seca e logo adiante com excesso de chuvas. O extremo é a característica que marca os tempos atuais das mudanças climáticas. E a fome que assola países da África alerta para algo mais amplo: a possibilidade real de recorrente crise alimentar global, na qual os pobres sempre serão os mais prejudicados.
Esse é um resumo do quadro climático. Não estamos falando de previsão, de hipóteses, mas de realidade. Muito embora já se tinha previsão pela ciência, esses eventos extremos em vários lugares do Planeta, quase ao mesmo tempo, adquirem contornos de tragédia geral.
Diante disso, além da solidariedade que deve ser revigorada, evidencia que deve preocupar a profundamente a sociedade brasileira, levar à reflexão, mas sobretudo promover a ação, a consciência ambiental e o debate político.
Tocou o alerta de que as mudanças climáticas se constituem em uma realidade. Os sinais são evidentes. Em meio a isso, há quem já coloque a questão: se as temperaturas saírem de controle e levarem ecossistemas ao colapso, não seria a extinção da civilização humana? O risco existe foi o que alertou recentemente um grupo de cientistas.
O recente calor extremo na Europa causou problemas de saúde, sociais, econômicos e ambientais. São hospitais lotados, escolas fechadas, aeroportos e ferrovias paradas, gerando transtornos, danos e prejuízos na vida da sociedade como um todo, afetando o modo de vida das pessoas. Essa realidade, portanto, reforça o que a ciência identificou e tem evidenciado com estudos e dados: o nosso planeta passa por transformações sem precedentes e de forma acelerada com eventos extremos mais frequentes e com mais intensidade.
Tudo que parecia sólido dá sinais de ser frágil, a ponto de desmoronar. O mundo do progresso e da tecnologia mostra-se incapaz de enfrentar um clima desgovernado. Isso tudo está a mostrar a nossa vulnerabilidade. A sociedade consumista, arrogante e tecnocrática, que parecia uma rocha, está a ruir. Iludimo-nos achando que temos grandes poderes, mas a realidade diante de nós mostra a nossa fragilidade.
E, no cenário local, em breve o Brasil terá um processo eleitoral com eleição do presidente da República, governadores, senadores, deputados federais e deputados estaduais. O pleito representa, mais do que nunca, a renovação da esperança, a possibilidade de que a vida possa ser melhor. Mas, a deste ano será a mais importantes deste a redemocratização. Muita coisa estará em disputa, especialmente se o Brasil continuará sendo uma democracia, com o fortalecimento ou a derrocada das instituições da República. Está em disputa, portanto, o futuro do país, o que vamos projetar para período vindouro, para os próximos anos e talvez décadas.
Não há dúvida que esta será uma eleição crucial. Provavelmente, estamos a decidir que sociedade as próximas gerações – nossos filhos e netos – hão de viver. Se a saúde e a educação permanecerão como direito social universal e de compromisso do Estado ou passarão a ser apenas mercadoria para quem tem dinheiro para comprar. Se os pobres estarão no orçamento público e na universidade. Se como nação nos conformaremos com o desemprego e fome de tantas pessoas. Se a qualidade de vida, a garantia de água e segurança alimentar importam ou não.
Mas o que tem a ver a eleição brasileira com o aquecimento global? Esse compromisso com a democracia e da esperança de um país mais justo, que acolha a todos, conecta-se à ideia de futuro. A preservação do meio ambiente e o uso sustentável dos recursos naturais estão implicitamente vinculados a ideia do direito ao futuro, especialmente, em relação às próximas gerações.
E aí um ponto fundamental. No processo eleitoral se fala em crise na educação, na saúde e outras áreas, mas a crise climática parece não ser percebida, como se fosse menor. Entretanto, a ciência nos dá elementos consistentes que estamos navegando rumo à catástrofe ambiental. O que nos dizem os candidatos? O que isto tem a ver com as eleições e com a democracia? O fato é que os candidatos pouco expressaram sobre o tema, que deveria estar na centralidade do debate. Para alguns deve haver um negacionismo velado, para outros, existem problemas parecem ser mais importantes. Ainda não há a percepção da gravidade do tema.
Desta forma, cabe a pergunta: será que os candidatos estão conscientes da importância e da urgência do assunto? Qual será o lugar do meio ambiente no programa e entre as prioridades dos futuros deputados, senadores governadores e do presidente? Essa é uma questão para ser questionada pelos eleitores e pela juventude e mesmo pelas crianças, pois trata-se do futuro. Fazer o debate é questão de cidadania. Vou expor aqui, alguns elementos para esse debate, o qual considero fundamental.
Em primeiro lugar, é necessário colocar que quando nos referimos a meio ambiente não falamos de plantas e animais somente, apartados da sociedade humana, como queiram ou entendam alguns.
Não falamos unicamente de plantio de árvores e de reciclar latinhas e papel, embora isso, obviamente, seja importante e façam parte do todo. Falamos, sim, das condições ecológicas fundamentais as quais permitem a vida existir na diversidade de espécies e dos ecossistemas e da capacidade de resistir as adversidades. Falamos das condições vitais e dos recursos que permitem à espécie humana continuar existindo com razoável qualidade de vida e satisfação das necessidades básicas. Falamos das condições do planeta em que a vida humana seja possível ou suportável.
Talvez seja necessário também ficar bem entendido: sem nós – os humanos – o planeta físico continuará e outras espécies estarão a povoar a Terra. Isso já aconteceu, muitas espécies desapareceram. Nos referimos, pois, da viabilidade da vida do homo sapiens e das sociedades que estes constituíram. Embora falamos pelo conjunto das espécies, no limite, advogados em causa própria.
A questão ecológica de que tratamos, portanto, é sobre a vida como um todo, mas com destaque para os passageiros mais ilustres, que há alguns milhares de anos se destacaram do conjunto. O meio ambiente somos nós, o Planeta Terra, nossa casa comum. E a ele nosso futuro como espécie vinculado. Só seremos capazes de sobreviver se nossa casa estiver em condições de nos abrigar e prover.
Assim, o debate é sobre se haverá água e alimentos em quantidade e qualidade suficientes para as populações; se teremos capacidade de suportar eventos climáticos extremos; se será possível a manutenção de ecossistemas funcionando, evitando a possibilidade de extinção em massa de espécies. E tantas outras questões fundamentais para as bases da vida existirem.
A política no período recente, mas devastador, no governo Bolsonaro foi de gigantes retrocessos sociais e ambientais. A nossa democracia e nossas instituições retrocederam enormemente. O Congresso Nacional, de maioria conservadora e oportunista, aprovou, legitimou e silenciou sobre os retrocessos. Recente matéria do Repórter Brasil apontou que 68% da Câmara dos Deputados vota contra o meio ambiente, indígenas e trabalhadores rurais. Nos estados não é diferente. Essa é a triste realidade. A maioria defende interesses setoriais, empresariais, regionais, cartoriais, sempre contra a vida e as lideranças, ativistas e populações que a defendem.
Mas, o que pensam eleitores no Brasil? O meio ambiente está entre as questões que as pessoas percebem como importante e pode influenciar a posição delas quanto aos candidatos? A resposta é sim! Foi isso que mostrou a pesquisa “Mudanças Climáticas na percepção dos brasileiros”, realizada em 2020 e em 2021, a partir do Programa de Comunicação da Universidade de Yale (EUA) para Mudança do Clima, que divulgou estudo realizado no âmbito internacional com as percepções das pessoas sobre a crise climática em vários países, entre eles, o Brasil.
No Brasil a pesquisa, de responsabilidade do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio), foi realizada pelo Ibope, com entrevistados em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal. Buscou-se analisar a opinião dos entrevistados sobre a mudança do clima.
A pesquisa detectou entre as pessoas, conforme segue: “Acham muito importante a questão do aquecimento global”: 78% em 2020, 81% em 2021; “Estão muito preocupadas com o meio ambiente”: 61% em 2020; 61% em 2021. O levantamento aponta ainda que as mulheres e as pessoas de esquerda têm mais sensibilidade ao tema ambiental.
Os dados apontaram que a maioria dos participantes se mostrou preocupada com o meio ambiente e com o aquecimento global. Em 2021, 96% das pessoas acreditava que o aquecimento global está acontecendo, contra 92% em 2020. E, para 77%, o aquecimento global é causado pela ação humana.
Para 77% das pessoas pesquisadas, é importante proteger o meio ambiente mesmo que signifique menor crescimento econômico e menos empregos. Somente 13% consideram que se deve promover o crescimento econômico e a geração de empregos mesmo que isso prejudique o meio ambiente.
A pesquisa de 2021 apontou que 90% da população (absoluta maioria) acredita que o aquecimento global pode prejudicar muito as próximas gerações. Apenas 1% disse que não prejudicaria em nada o futuro. Um total de 75% dos pesquisados acredita que o aquecimento global pode lhes prejudicar muito e prejudicar muito suas famílias (72% em 2020).
A pesquisa buscou captar as opiniões diferenças entre estados da Federação, classes sociais e posicionamentos políticos. Em termos sociais, as classes mais pobres (C1, C2 e DE) registraram níveis de sensibilidade mais significativos do que aquelas mais ricas (A, B1 e B2). Nesse ponto, o posicionamento político-partidário interfere na percepção do brasileiro: pessoas que se autodeclararam à esquerda são mais sensíveis do que as que se declararam à direita ou centro.
No mesmo sentido, pesquisa realizada pelo PoderData para o Instituto Clima e Sociedade (ICS), realizada no final de julho (publicada em agosto de 2022) mostrou que 81% dos eleitores brasileiros avaliam que ações de proteção da Floresta Amazônica devem estar entre as prioridades dos candidatos à Presidência da República nesta eleição. Para 65% dos entrevistados, o governo federal é negligente e ineficaz em medidas para combater os crimes na Amazônia, como desmatamento, grilagem de terras, garimpo ilegal e tráfico de drogas.
Assim, sendo importante para a população e os cientistas alertando para a gravidade, deve-se questionar como está sendo abordado pelos candidatos a presidente da República e a governador do Rio Grande do Sul. Para a sociedade interessa saber se o meio ambiente e a emergência climática estarão na agenda do próximo presidente e do governador. E, caso os candidatos tenham alguma dúvida ou relutem a voltar seu olhar para o tema, cabe à sociedade civil organizada – um dos pilares da democracia – colocar na pauta. É compreensível que saúde, educação, segurança pública, fome e desemprego estejam no debate, pois são percebidos pela população que sofre com a ausência dos serviços públicos e sofre pela desigualdade social que exclui e oprime milhões em nosso país. Mas, quem se propõe a estar no Legislativo ou do Executivo tem o dever de pensar estrategicamente o Estado ou o País, por tudo que já foi dito aqui.
No âmbito federal, Lula é quem mais tem abordado o tema das mudanças do clima com preocupação e prioridade na proteção da floresta Amazônica, assumindo compromisso concreto de frear o desmatamento e construir caminhos de aproveitar a biodiversidade para gerar desenvolvimento, emprego e renda. Lula reconhece a questão climática como prioritária e urgente. Coloca-a como uma questão de Estado e que no governo deve ser transversal.
No Rio Grande do Sul, o primeiro debate entre os candidatos a governador, realizado pela emissora Band, mostrou uma triste repetição e foi decepcionante. Outros debates reafirmaram o primeiro: as mudanças climáticas e a qualidade ambiental parecem distantes do cenário eleitoral. Desta forma, os poucos que abordaram a temática o fizeram para criticar os órgãos ambientais. Não há preocupação nem compromissos consistentes. Isso deve sim preocupar a sociedade, pois as eleições seriam uma excelente oportunidade para debater o assunto, mas os candidatos e até mesmo os eleitores, que pouco questionam, estão perdendo a oportunidade.
Infelizmente, a pauta ainda não está colocada, mesmo que, recentemente, o Rio Grande do Sul passou pela pior seca em sete décadas. Até março de 2022, dados da Defesa Civil do Rio Grande do Sul mostram que 426 municípios gaúchos decretaram Situação de Emergência por conta da estiagem. Segundo a Emater, 257 mil propriedades rurais e centenas de comunidades rurais foram afetadas pela falta de água, que frustrou colheitas e afetou a produção animal. Muitas pessoas ficaram sem alimentação e sem dinheiro para comprar.
Assim como a seca, o excesso de água devido a chuvas torrenciais em um curto espaço de tempo deixa rastros devastadores. Na perspectiva de que os eventos extremos estão a aumentar, é determinante pensar a cidade e o campo de forma sistêmica e articulada regionalmente, de forma que possam suportar e se preparar para as adversidades. No litoral, os ciclones tendem a ser mais presentes. Tudo isso num contexto em que o estado brasileiro ainda tem um enorme passivo com a população em relação a habitação, saneamento, resíduos sólidos, geração de energia limpa, água potável, mobilidade de qualidade, áreas verdes etc. Isso depende de políticas públicas potentes, continuadas e de Estado. Até agora, a preocupação dos candidatos com o clima está com foco apenas na ampliação da área de irrigação, um grande equívoco.
Desde a Conferência de Estocolmo, que ocorreu há 50 anos, ou da Conferência do Rio de Janeiro, realizada há 30 anos, muito se debateu e muito foi produzido em conhecimento sobre os impactos do modo de vida dos países. Há evidências inquestionáveis dos problemas, dos limites planetários e da urgência. Mas, paradoxalmente, não nos afastamos do risco, mesmo com a verdade sendo divulgada diariamente na internet, nos jornais e na TV.
Diante dos eventos climáticos adversos, extremos e até devastadores, quem mais sofre são as populações pobres. Algo perceptível nas cidades, mas que foi reforçado pelo estudo do Instituto Pólis, Racismo Ambiental e Justiça Socioambiental nas Cidades, de julho 2022, o qual mostrou que a intensificação de tais eventos ambientais no nosso país reforça ainda mais a injustiça social. Ou seja, acaba por afetar grupos sociais mais vulneráveis como moradores de bairros periféricos, população de baixa renda, pessoas que, sem moradias, foram morar em áreas de risco nas cidades, indígenas e quilombolas. As mães pobres são profundamente afetadas. A injustiça ambiental está vinculada à injustiça social.
Segundo o Instituto Pólis, as enchentes e deslizamentos de solo em algumas capitais mostra padrões que se repetem no país das pessoas impactadas. Os mais pobres, além de já sofrerem devido à sua condição, também são prejudicados diante da ocorrência de eventos climáticos. Em síntese, os ricos em relação aos pobres são afetados de forma diferente e desproporcional. Há aí uma injustiça socioambiental.
Salvaguardar o meio ambiente, portanto, é proteger os ecossistemas e a diversidade das espécies que formam e ao mesmo tempo constituem o suporte ao conjunto da vida. Falar de meio ambiente é abordar a falta de água e tratamento de esgoto, mas também lembrar da água com agrotóxicos e microplástico que adoecem, silenciosamente, milhares de pessoas e animais. É perceber a mudança do clima em âmbito global.
Considerando esse cenário, o silêncio e a falta de ação também são formas de ser cúmplice. Há os que sabem do problema, mas não agem. Não negam, porém, não fazem o debate público nem assumem compromissos concretos. Ainda existem muitos que buscam contornar a realidade. Há um desprezo pelas evidências científicas, subestimando o risco. Na prática, não deixa de ser um certo negacionismo.
Diante disso, coloca-se como necessária a ação da sociedade organizada, da cidadania, de mães e pais e de famílias que se interessam pelo futuro de seus filhos. As gerações futuras, que habitarão os próximos séculos dependem da empatia e da solidariedade das gerações atuais e decisões urgentes.
Um exemplo em que a realidade comprovou o que estudos indicavam que a infraestrutura será afetada pelas temperaturas extremas. Na Europa, estradas projetadas para clima frio foram submetidas a altas temperaturas. O excesso de chuva, o calor extremo e os ventos afetam, deformando ou acabando com a infraestrutura. Atualmente, os governos gastam bilhões para consertar os estragos e a conta vai aumentar nas próximas décadas.
No processo eleitoral, como de praxe, coloca-se o debate sobre desenvolvimento, mas com prioridades para temas da economia. Entretanto, além desse aspecto, deveria aprofundado a discussão sobre o modelo de desenvolvimento, pois o mundo em que 1% das pessoas controle metade da renda e da riqueza está inviabilizando a civilização humana.
Assim, ao se colocar o meio ambiente, as mudanças climáticas no debate político sobre o presente e o futuro, poder-se-ia discutir as formas de geração e trabalho e renda em outras bases. Os empregos em sintonia com os desafios do nosso tempo. É um equívoco continuar a pensar em geração de trabalho com atividades que destruam as bases da vida, que causem poluição e riscos para a saúde e levem à insegurança climática. A economia deve ser conectada à ecologia porque os recursos naturais não são inesgotáveis e o padrão de desenvolvimento pode alterar o clima, a qualidade de vida dos trabalhadores, o padrão do ar e da água e a paisagem.
Defender o meio ambiente é falar da economia de gastos em saúde pública se reduzir a poluição atmosférica nas cidades, é falar que os agrotóxicos impactam a saúde humana e causam externalidade negativas ao sistema de saúde e a sociedade que paga a conta dos monocultivos agrícolas. Assim, temos de ter outro padrão de mobilidade urbana e de transportes para ter o ar mais limpo, temos de ter outro padrão de agricultura para ter saúde à mesa da população. Meio ambiente é energia renovável e descentralizada, é superar as energias fósseis causadoras dos gases que causam o aquecimento global. Meio ambiente é uma estratégia alimentar segura, soberana e diversificada, para evitar e eliminar o risco da nossa população passar fome num futuro próximo. Meio ambiente é agua para todos, saneamento e gestão de resíduos sólidos.
Há confiança no aparato tecnológico. Como se alguma tecnologia fosse capaz de consertar o sistema climático global. Há aí, além de uma visão simplificadora das coisas, uma enorme dificuldade para perceber a realidade que se apresenta diante de nós. Mas, a história mostra que muitas sociedades e civilizações já foram grandiosas e entraram em decadência e desapareceram. Em todas elas, houve um esgotamento dos recursos naturais. A escassez de alimento e água estiveram no centro das crises, porque sem esses dois recursos a vida se torna inviável. Há fortes evidências científicas que mostram que humanidade de hoje caminha para um colapso.
Quando olhamos para os rios que agonizam ao redor do mundo, as florestas em chamas, as lavouras secas, além dos problemas já mencionados, há uma estética sombria, da morte, da paisagem sem vida. As cidades com seus arranha-céus parecem ficar sem graça sem os rios que os rodeiam, lembram as imagens dos livros de história ou da ficção científica do colapso de civilizações. Essas imagens assustadoras deveriam levar da perplexidade à ação.
A realidade está anos mostrar que somos vulneráveis e não há milagres, nem céu ou naves para nos salvar das consequências das mudanças climáticas. Só quem pode nos salvar somos nós mesmos. Ilude-se que acha que a tecnologia ou os deuses nos salvarão de forma milagrosa.
Iludimo-nos, o tempo todo, de que somos fortes, imbatíveis e capazes de dominar a natureza. Entretanto, a pandemia da Covid-19 mostrou, recentemente, o quanto somos frágeis. Um vírus forçou o mundo desacelerar, cidades e países pararam. Como se o Planeta chegasse a uma exaustão. A pandemia, por caminhos tortos, sinalizou sobre o que vale a pena na vida, sobre a importância de políticas públicas, de ter um Estado e instituições que amparem os mais frágeis em situações de crises.
Neste debate das mudanças do clima, cabe mencionar aqui que o Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 1° de julho deste ano, concluiu o julgamento da ADPF 708 sobre o Fundo Clima. Na decisão dos ministros do STF por maioria (10 votos a 1) decidiu-se pela procedência da ação. De forma resumida, o STF decidiu que o Poder Executivo tem o dever de fazer a gestão de modo a promover a disponibilidade dos recursos do Fundo para os propósitos que foi criado, por ser constitucional a proteção do meio ambiente e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, caso do Acordo de Paris. Assim, o contingenciamento do recurso seria vedado.
Mas, para além do caso concreto, o julgamento da ADPF 708 pelo STF colocou o debate do clima em outro patamar, elevando o status constitucional do direito à segurança climática. Segundo o relator, os acordos ambientais assumidos pelo país estão no mesmo patamar dos tratados de direitos humanos de status supranacional e supralegal, ou seja, deve prevalecer sobre legislação nacional que não esteja em consonância. A decisão reporta ao Art. 225 da Constituição, que estabelece o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, assim, garantir a segurança climática deve ser objeto de ação do Estado brasileiro que tem a responsabilidade de promovê-lo. O governo, portanto, deve agir, não há espaço para negacionismo climático. Assim, deve-se pressupor que quem é candidato ao governo ou a parlamentar deve também assumir compromissos com a proteção climática.
É necessário, portanto, de forma urgente, colocar o meio ambiente e as mudanças climáticas na pauta das eleições. Mesmo que a maioria dos candidatos ainda não entendam a importância e os que percebem ainda não expressam. Os que defendem a democracia e a igualdade devem assumir a pauta climática como emergencial e central para pensar outro mundo possível e outro modo de vida.
No filme Não Olhe Para Cima, que satiriza o negacionismo, uns negavam, outros duvidavam ou ignoravam. Mas, negar não eliminou o problema, as evidências existiam, e o desastre estava logo ali.
Tem uma questão ética colocada em relação as futuras gerações, além da dívida com os pobres e as populações das periferias que sofrem muito mais com os problemas climáticos e ambientais de maneira geral.
Somente a política é capaz de criar soluções efetivas. E, se a democracia fracassar os fundamentalismos e os totalitarismos estarão se apresentando, como nos ensinam as experiências históricas.
Portanto, somos nós e nossas decisões coletivas que moldam o mundo e o futuro. E quem apoia e defende candidatos que não assumem compromissos em combater as mudanças climáticas, mesmo que não queiram, estão junto com eles, condenando as crianças a vier num mundo onde as condições de vida poderão ser insuportáveis. Por via do voto, mesmo sem real consciência, pode se praticar o bem ou o mal. Nossa decisão pode fortalecer a esperança ou subtrair o futuro.
Se o meio ambiente e a emergência climática não forem colocados como prioridade dos governos já é possível imaginar como serão as condições de vida no futuro. E as próximas gerações hão de responsabilizar as atuais e se perguntar: se sabiam porque não agiram?