Como Bolsonaro desmontou a fiscalização ambiental

Foto: Victor Moriyama | Greenpeace

14 Setembro 2022

 

Desde que ele assumiu a Presidência, o trabalho de agentes públicos que atuam na defesa da Amazônia é prejudicado por ordens superiores e alguns deles acusam perseguição, conforme denúncia da Associação Nacional dos Servidores Ambientais.

 

A reportagem é de Cristina Ávila, publicado por Amazônia Real, 12-09-2022.

 

Era uma vez um ousado projeto para criar um mosaico de 11 Unidades de Conservação (UCs) que seria exemplo de gestão conjunta. A chamada Terra do Meio, no Pará, foi criada para preservar 10 milhões de hectares de florestas bem conservadas, vizinhas a territórios de povos indígenas. Na última semana de agosto, agentes de fiscalização ambiental estavam perplexos diante de grileiros que agiam livremente, postando vídeos em churrasco com centenas de homens pobres arregimentados em comunidades próximas, para fundar uma vila. A vila em questão fica na Terra Indígena Ituna-Itatá, dos “isolados do igarapé Ipiaçava”, onde um trator já estava abrindo ruas. “A situação é crítica. Como o território ainda não é homologado, a pressão é para descaracterizá-lo como terra indígena”, conta um dos servidores ouvidos pela Amazônia Real.

 

Por telefone, os servidores descreveram que se sentem de mãos atadas para combater a invasão na região da Terra do Meio, cuja maior parte do território está no município de Altamira. Um dos agentes de fiscalização ambiental já foi agredido fisicamente por um madeireiro em outra região, o que o faz temer entrar em choque com os invasores da TI Ituna-Itatá. Como procedimento de segurança, quando estão em ação nas florestas as equipes dos órgãos ambientais trabalham em rodízio com integrantes de vários Estados. Isso evita que sejam “marcados para morrer”. Mas algo mais grave tem sido relatado, que é a falta de apoio dos próprios órgãos ambientais, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o próprio Ministério do Meio Ambiente (MMA).

 

Um relatório lançado em janeiro pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e pela Organização dos Povos Isolados (OPI), com base em dados do Inpe, mostra que dos 22 mil hectares desmatados ilegalmente na Ituna-Itatá, 18,6 mil (84,55%) ocorreram nos últimos três anos. Entre as queixas de agentes ouvidos pela Amazônia Real, um deles afirma que se sente cerceado para combater crimes como esses, inclusive por causa da Portaria 491, editada pelo Ibama em 2021, que prevê jornada de 40 horas semanais e estabelece condições de horas extras (e exceções, mas com autorização “pela autoridade máxima”, diz o texto). Porém, as ordens não se adaptam às tarefas de campo. “Querem nos impor horário de escritório na selva, facilitando a atuação de bandidos fora do nosso expediente”, ressalta a fonte. “Se for feita uma apreensão e aplicada multa fora do horário, corremos o risco de sofrer um processo administrativo.”

 

Em unidades urbanas do Ibama e ICMBio, os servidores ambientais vêm sofrendo punições, advertências e chegam a ser ameaçados de transferência de cidade por causa de um parecer que seja contrário aos interesses das chefias e coordenações. Funcionários passaram a responder a inquéritos policiais. “Se você tem tarefa de sucesso, é exonerado. Foi o que aconteceu com o Bruno (Pereira)“, diz o servidor se referindo ao ex-funcionário de carreira da Fundação Nacional do Índio (Funai) assassinado em junho, na TI Vale do Javari, no Amazonas. O indigenista havia sido exonerado em 2019, 15 dias depois de ter destruído balsas de mineração que invadiam o território tradicional. No mês do assassinato, a entidade Indigenistas Associados (INA) lançou dossiê com 172 páginas sobre o “clima de terror” por causa da militarização e perseguições na Funai.

 

“Desastre anunciado”

 

O presidente da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), Denis Rivas (Foto: Mídia Ninja)

 

Situação semelhante, denunciam os servidores, está ocorrendo com o MMA, o Ibama e o ICMbio. “Atualmente, temos órgãos ambientais totalmente desmontados. A fiscalização ambiental vem sendo ocupada por pessoas sem experiência e sem compromisso”, relata o presidente da Ascema, Denis Riva. Desde 2019, a instituição denuncia casos de assédio coletivo sofrido por servidores desses órgãos ambientais, publicadas ao longo do governo Bolsonaro no dossiê “Cronologia de um desastre anunciado”, que em dois volumes elenca o desmonte da fiscalização até o ano de 2021, em um total de 49 páginas.

 

O analista ambiental Denis Rivas é a única fonte que terá seu nome publicado nesta reportagem. Ele está relativamente bem resguardado pelo cargo que ocupa e também por não estar em campo. Mas outros servidores foram ouvidos pela Amazônia Real e relataram apreensão com represálias, além do clima tenso para trabalhar.

 

Os atuais crimes na Amazônia não são casos isolados. “Os criminosos conhecem muito bem a estrutura dos órgãos ambientais. Sabem quem são as pessoas, as peças-chave, conversam entre eles. São quadrilhas”, afirma um outro servidor. “Antes tínhamos capacidade de atacar financeiramente a cadeia ilegal do comércio com estratégias de inteligência. Não é um posseiro ou pescador artesanal que tem capacidade de interferir nas decisões de Brasília. Eles mudam as coordenações para não deixar que a gente vá a campo. As quadrilhas têm braços políticos.”

 

Agentes públicos comprometidos com o combate à destruição da Amazônia são apoiados por decisões do Ministério Público Federal, numa rede de solidariedade que inclui ainda os povos da floresta e do meio ambiente. Mas sob Bolsonaro ocorreu a infiltração de antiambientalistas no ICMBio, no Ibama e no próprio MMA, ao qual os dois órgãos estão submetidos. Ações contra desmatamentos agora têm de ser planejadas com cuidado extremo para que não vazem, inclusive internamente, e caiam em redes de comunicação de criminosos.

 

Um caso notório ocorreu em maio de 2021, quando dirigentes do ICMBio desmobilizaram as equipes de campo para que uma ação de fiscalização contra um contumaz invasor de uma Unidade de Conservação (UC) não ocorresse. Tudo havia sido planejado durante um ano, mas, em cima da hora, agentes de fiscalização do ICMBio receberam ordens superiores para mudar o foco da operação que tinha como alvo um fazendeiro que já havia recebido 17 autos de infração, totalizando 59 milhões de reais em multas.

 

Antes de realizar a operação, os agentes do ICMBio haviam feito um trabalho de georreferenciamento e estratégias de inteligência para, enfim, sair a campo para uma abordagem na maior fazenda desmatada da região de Altamira. A propriedade fica dentro da Reserva Biológica Nascentes do Rio Cachimbo, que é uma UC de proteção integral na bacia do Xingu e Tapajós. O MPF havia recomendado a desocupação. Em comentário no site do Projeto Colabora, uma pessoa que se identifica como Edner Aparecido Ferri afirma que é o dono da propriedade, mas que nunca derrubou “uma árvore” e pode comprovar que a apreensão de gado ocorreu na fazenda vizinha.

 

A ordem superior para desviar a apreensão do gado partiu de quatro diretores do ICMBio. Na prática, significaria, no máximo, aplicar uma ineficaz 18ª multa ambiental ao fazendeiro. “Os servidores tinham montado logística para apreensão e doação de gado. Isso desmobilizou o planejamento prévio, e eles se recusaram a ir a campo sem objetivo claro. Nosso trabalho é baseado na ciência e na legislação, não em ordens superiores”, reclama o presidente da Ascema. Em maio deste ano, uma operação na região foi realizada e mais de mil cabeças de gado foram apreendidas. Na reserva biológica, segundo os servidores do ICMBio, há cerca de 200 invasores.

 

Multas prescritas

 

Brigadistas do PrevFogo do Ibama checam área de floresta derrubada e queimada em Apuí, Amazonas (Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)

 

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o Ibama, apresentada em sessão plenária de 24 de agosto, mostra a extensão do desmonte ambiental do governo Bolsonaro, uma bomba atômica jogada no colo do próximo presidente da República. Nos próximos dois anos, 54 mil multas ambientais correm risco de prescrever em todo o País. Na prática, significa que destruidores da natureza podem sair impunes e sem precisar desembolsar um centavo. Pode-se culpar a burocracia, mas o desmonte dos órgãos ambientais indica que o problema se tornou uma política de governo de Bolsonaro.

 

A auditoria sobre o Ibama, aprovada no acórdão (decisão) 1973 do TCU, conclui que o atual desmonte aumenta o risco de impunidade a crimes ambientais (processo TC 038.685/2021-3). Isso porque os processos administrativos levam muito tempo para serem concluídos, o que por sua vez atrasam o sistema de notificação de multas. Isso gera um descompasso entre o número de autuações de novos processos e o ritmo de julgamentos em primeira instância do órgão. A estimativa é de que 4.728 vão ser prescritos neste ano de 2022; 16.705, em 2023; e 37.204, em 2024.

 

Segundo informações colhidas pelo TCU na Superintendência de Infrações Ambientais do Ibama, seriam necessários 300 servidores em regime de dedicação exclusiva para dar conta do fluxo anual de processos e do passivo em três anos. “Atualmente são 111 membros ativos, sendo apenas 22 com dedicação exclusiva na instrução processual”, sublinha o relatório do ministro Marcos Bemquerer.

 

O Tribunal fez recomendações ao MMA e ao Ibama, concedendo ao órgão ambiental 60 dias para elaborar um plano de ações, incluindo cronograma, definição dos responsáveis, prazos e atividades acerca das medidas a serem adotadas com vistas a superar os problemas encontrados.

 

Militarização das chefias ambientais

 

Invasão na TI Apyterewa em São Félix do Xingu em 2020 (Foto: Reprodução redes sociais)

 

“O próximo mandato na Presidência da República será desafiador para o futuro das terras indígenas, unidades de conservação e do bioma. É necessária uma reestruturação administrativa profunda nos órgãos ambientais federais e a retomada de coordenações por técnicos de carreira, além de articulação entre Estados, municípios e movimentos sociais comprometidos com o meio ambiente”, afirma Rivas.

 

O pleito de Rivas vai de encontro a um outro tipo de desmonte, desta vez necessário. Sob Bolsonaro, ocorreu uma militarização de coordenações e chefias dos órgãos ambientais, sobretudo nos anos de 2019 e 2020. “A estratégia denominada Garantia da Lei e da Ordem (Decreto nº 10.730, de 2021) consumiu 60 milhões de reais por mês, que somados são equivalentes a quase o orçamento de um ano do Ibama. E o resultado foi o desmatamento descontrolado”, diz o presidente da Ascema.

 

Rivas ressalta a importância da parceria da Polícia Militar e da Polícia Federal, inclusive responsável por investigações. Mas frisa que a atribuição de fiscalização, apreensões e multas por crimes ambientais é exclusiva dos servidores ambientais – do Ibama em qualquer território, inclusive indígenas, e do ICMBio em unidades de conservação ou também em TIs quando essas são sobrepostas a UCs. Ele cita um exemplo de equívoco nos investimentos:

 

“Na Terra Indígena (TI) Apyterewa (São Felix do Xingu, no Pará) existem dois postos da Força Nacional com recursos da Funai cercados em uma das bases por grileiros e na outra por um garimpo ilegal. Com policiais recebendo diárias. As duas dentro da terra indígena, a mais desmatada do Brasil”, diz Rivas. Ele se refere à informação do Inpe, de agosto de 2020 a julho de 2021. Neste 1º de setembro, foi publicada no Diário Oficial da União, a Portaria 168 do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que autorizou um novo apoio da Força Nacional à Funai por 90 dias, no período de 2 de setembro a 30 de novembro.

 

Proteção aos invasores

 

Jair Bolsonaro, desde que assumiu o cargo de presidente da República, não esconde que pretende acabar com a “indústria de multas” relacionadas a crimes ambientais. “Essa festa vai acabar”, advertiu em dezembro de 2018, logo após ser eleito. Em seu mandato, a militarização dos órgãos ambientais, exonerando servidores comprometidos com a defesa ambiental, como o próprio indigenista Bruno Pereira, teve o efeito de confirmar um “sinal verde” para que grileiros, madeireiros, garimpeiros e outros destruidores da floresta continuem cientes de que são protegidos desde o Palácio do Planalto. O problema é que muitos agentes públicos defendem que a lei seja cumprida.

 

No dia 22 de agosto, em entrevista no Jornal Nacional, da TV Globo, Bolsonaro reclamou que há abuso do Ibama ao destruir equipamentos e maquinários usados em crimes ambientais na Amazônia. Durante a entrevista, o presidente afirmou que “o pessoal do Ibama toca fogo, mesmo podendo retirar o material”. A Ascema, sentindo-se desrespeitada, publicou uma nota de repúdio com o título “Bolsonaro mente no JN”. A associação lembra que a destruição desses equipamentos está prevista no artigo 111 do Decreto Federal n° 6.514/2008, que regulamenta a Lei de Crimes Ambientais. Na nota, a Ascema ressalta que a destruição, na prática, ocorre em menos de 2% das apreensões feitas, quando em locais isolados nas florestas e de materiais abandonados pelos criminosos com a chegada da fiscalização ambiental.

 

Todas essas atividades são documentadas e os donos até poderiam recorrer, mas “curiosamente, isso nunca ocorreu”. As retiradas de maquinários geralmente precisam ser feitas em até um ano após a fiscalização, por problemas como a navegabilidade dos rios em períodos de cheia: “Soma-se a isso o fato de que a retirada dessas máquinas colocaria em risco a vida dos agentes ao longo de todo o trajeto, assim como daqueles envolvidos nos crimes ambientais e a tentativa de recuperação do maquinário poderia se desdobrar em conflitos violentos”, alerta Rivas.

 

Menos fiscalização, mais desmatamento

 

Sobrevoo na região da Amacro (Amazonas, Acre e Rondônia), em uma área com cerca de 8.000 hectares de desmatamento - a maior em 2022 - que está queimando há dias (Foto: Nilmar Lage | Greenpeace)

 

As derrubadas durante o governo de Bolsonaro foram tão grandes que dentro das áreas desmatadas apenas em um ano no Pará daria para instalar quatro cidades de Belém. Foram 3.858 quilômetros quadrados o equivalente a 36% da destruição total de todo o bioma entre os meses de agosto de 2021 a julho de 2022, período em que foram perdidas áreas naturais em 10.781 quilômetros quadrados.

 

Esse dado representa um recorde dos últimos 15 anos, 3% maior do que o período anterior, quando foi feito o balanço pelo Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). É também a segunda vez consecutiva em que o desmatamento passou dos 10 mil quilômetros quadrados. Os meses de julho de um ano a agosto do anterior são padrões nas medições.

 

Segundo o Imazon, outros 36% da destruição nos últimos 12 meses ocorreram na região hoje conhecida como Amacro, onde se concentram 32 municípios entre Amazonas, Acre e Rondônia, em que o agronegócio derrubou 4 mil quilômetros quadrados de florestas entre agosto de 2021 e julho de 2022.

 

O Amazonas ficou em segundo lugar no páreo do desmatamento, com 2.738 quilômetros quadrados, o que representa 50% a mais do que no período anterior. Em terceiro está o Mato Grosso, onde foram desmatados 1.620 quilômetros quadrados, 5% a mais na comparação do que ocorreu no Estado também na fase de levantamento anterior. Seguiu-se Rondônia com 1.312 quilômetros quadrados e Acre com 865 quilômetros quadrados.

 

Agenda ambientalista

 

“É dever do próximo governo reestruturar os órgãos com a experiência dos técnicos e do movimento social comprometido com a agenda ambientalista”, acentua o presidente da Ascema. Na opinião de Denis Riva, é necessário o retorno de políticas públicas já utilizadas de maneira bem sucedida. “Destaco o PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal), que articulava governos estaduais e municipais e ministérios (17), não só para combater crimes ambientais, mas proporcionar alternativas de emprego e renda de maneira sustentável, que é o desejo de todos, mas mantendo fontes de água e equilíbrio climático.”

 

O PPCDAm foi criado em 2004, quando os cortes rasos de florestas chegaram a 27.772 quilômetros quadrados, com previsão de ordenamento fundiário e territorial, monitoramento e controle ambiental e fomento a atividades produtivas sustentáveis. Em dez anos, o desmatamento caiu 80%, para 5.012 quilômetros quadrados, conforme o Prodes, programa de monitoramento por satélites do Inpe. No mesmo ano de criação do plano, a fiscalização ambiental foi implementada com o sistema de Detecção de Desmatamento na Amazônia em Tempo Real (Deter), que passou a oferecer imagens de satélites mensais de áreas desmatadas no bioma.

 

Bolsonaro assumiu com a tarefa de desmantelar esse sistema de proteção ambiental. No primeiro dia sentado na cadeira de presidente, já estava publicada a Medida Provisória 870/2019 com a reforma ministerial. O MMA foi esvaziado e, segundo a Ascema, a nova estrutura revelava a perda de sua “capacidade em conduzir competências históricas e lógicas”.

 

Nessa reforma, foi extinta a Secretaria de Mudanças Climáticas, que havia sido a mais importante para as estratégias nos acordos internacionais que levaram o Brasil a ser protagonista na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, em 2015, em Paris. O Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e o Cadastro Ambiental Rural (CAR) foram transferidos para o Ministério da Agricultura. E a Funai foi para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

 

A Amazônia Real procurou, há duas semanas, a Presidência da República, o vice-presidente Hamilton Mourão, o Ibama, o ICMbio e o MMA para obter esclarecimentos. Até o fechamento desta reportagem, nenhum das autoridades ou dos órgãos se manifestou, mas a agência concederá espaço assim que isso ocorrer.

 

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