04 Fevereiro 2021
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, criou um grupo de trabalho que discute com quase nenhuma transparência a extinção do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). É o que mostram as atas das oito primeiras reuniões desse GT obtidas por ((o))eco por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Elas resumem-se a listar os presentes nas reuniões e tópicos genéricos de pauta, sem apresentar uma síntese do que foi discutido e eventuais encaminhamentos. Clique nos seguintes links para conhecer o teor das atas das reuniões realizadas em 8, 16, 23 e 29 de outubro e 5, 12, 19 e 27 de novembro de 2020.
A reportagem é de José Alberto Gonçalves Pereira, publicada por ((o))eco, 28-01-2021.
Sem especialistas em conservação e composto por seis oficiais da Polícia Militar (PM) de São Paulo e um civil, o grupo foi criado pela Portaria nº 524/2020 para estudar a proposta de fusão entre o ICMBio e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), reunindo-se semanalmente desde 8 de outubro de 2020. O grupo responsável pela área ambiental na equipe de transição do presidente eleito Jair Bolsonaro, que se reuniu em novembro e dezembro de 2018, incluiu entre suas principais propostas a criação de um órgão que assumiria as funções do Ibama e do ICMBio. O grupo foi coordenado pelo agrônomo Evaristo de Miranda, chefe geral da Embrapa Territorial, em Campinas (SP).
A falta de transparência do GT da fusão entre Ibama e ICMBio será tema de um dos painéis da audiência pública virtual convocada para o próximo dia 1º de fevereiro, segunda-feira, pelo Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM) para discutir a proposta do ministro Salles para incorporar no Ibama as atribuições do ICMBio.
Assinam o edital que convocou a audiência os procuradores da República Ana Carolina Haliuc Bragança, Rafael da Silva Rocha e José Gladston Viana Correia. A audiência é parte do inquérito civil público que investiga o possível desmonte estrutural do ICMBio e o impacto potencial da eventual fusão do órgão com o Ibama, sobretudo nas atividades desenvolvidas pelo primeiro na Amazônia.
Para os procuradores, as atas das reuniões do GT “não evidenciam a participação ou consulta a especialistas ou outros servidores dos respectivos órgãos”. Segundo eles, é “dever do Estado Brasileiro assegurar que qualquer decisão administrativa tomada comprovadamente não implique retrocesso ambiental, sobretudo sobre a Amazônia, e seja pautada em paradigmas de transparência e participação”.
A audiência terá início às 9h da manhã e será transmitida ao vivo pelo canal do MPF-AM no Youtube. Para usar a palavra no evento, o interessado pode se inscrever até às 18h de amanhã, sexta-feira, enviando e-mail para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. com o seguinte assunto: “Audiência Pública Fusão IBAMA e ICMBio – Painel X”.
A procuradora Ana Carolina Haliuc Bragança, durante Seminário Jornalistas em Diálogo, evento organizado pelo ((o))eco em parceria com o Imazon, realizado em setembro.
(Foto: Reprodução/YT)
“Tanto quanto o mérito de eventual decisão pela fusão ou não das instituições, o procedimento de tomada de decisão importa, e eventuais inconsistências procedimentais relacionadas à transparência e amplitude do debate devem ser esclarecidas e, se for o caso, corrigidas”, disse ao ((o))eco a procuradora Ana Carolina. Ela espera que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) envie representantes à audiência para esclarecer o que está sendo discutido nos encontros do GT, a motivação da proposta de fusão e a ausência de consulta sobre o assunto a especialistas das áreas de atuação dos dois institutos e representantes de entidades da sociedade civil relacionadas de alguma forma às ações do ICMBio.
“A despeito de o Estado contar com discricionariedade administrativa para organizar a prestação de serviços públicos sob formas diversas, ele está adstrito a obrigações de transparência e de garantia de participação pública, em especial em relação a medidas capazes de produzir efeitos sobre a robustez do arcabouço de proteção ao meio ambiente no Brasil”, adverte a procuradora.
O GT deverá apresentar seu relatório final provavelmente na segunda semana de fevereiro, uma vez que o prazo de seu funcionamento é de 120 dias a partir da primeira reunião. Mas a portaria que o criou admite que o GT possa continuar ativo por mais 120 dias, após a conclusão de seu prazo inicial
Preocupa os ambientalistas a proximidade entre o fim dos trabalhos do GT e a eleição das mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, previstas também para a próxima segunda-feira, 1º de fevereiro. Acreditam que uma vitória do deputado Arthur Lira (PP-AL), candidato apoiado pelo presidente Bolsonaro na eleição da mesa da Câmara, poderia facilitar a tramitação no Congresso de eventual Medida Provisória (MP) ou projeto de lei (PL) extinguindo o ICMBio, que foi estabelecido pela Lei 11.516/2007, e adicionando atribuições do Instituto Chico Mendes no Ibama, criado pela Lei 7.735/1989.
“Portanto, alterações em suas finalidades e outros aspectos constituintes só podem acontecer por meio de outra lei, não por ato infralegal. É provável que uma eventual fusão ocorra por meio de Medida Provisória, que, para virar lei, necessitará ser aprovada no Congresso”, pondera análise sobre o GT da fusão publicada no fim de novembro passado pelo projeto Política por Inteiro.
((o))eco procurou por e-mail e telefone a assessoria de comunicação do MMA na última quinta-feira (21) com dúvidas e questões a respeito das reuniões do GT, mas não houve retorno da pasta até o fechamento desta reportagem. A Ascom/MMA confirmou o recebimento do e-mail, mas não soube informar se o setor responsável enviaria esclarecimentos.
Fonte: ICMBio
Compõem o GT o secretário executivo do MMA, Luís Carlos Biagioni, os presidentes do Ibama, Eduardo Bim, e do ICMBio, Fernando Cesar Lorencini, dois diretores do Ibama, Luis Carlos Hiromi Nagao (planejamento) e Olímpio Ferreira Magalhães (proteção ambiental), e dois diretores do ICMBio, Ronei Fonseca (planejamento) e Marco Aurélio Venâncio (pesquisa, avaliação e monitoramento da biodiversidade). Exceto Bim, que é procurador de carreira da Advocacia Geral da União (AGU), os demais são militares – cinco oficiais da ativa e da reserva da Polícia Militar (PM) do estado de São Paulo e um oficial da reserva do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal (DF).
Também participaram de algumas reuniões servidores do MMA, do Ibama e do ICMBio que não integram o GT oficialmente, como no primeiro encontro, que contou com a presença de oito pessoas, incluindo o ministro Salles. Entre membros do grupo e convidados, 14 servidores participaram de pelo menos uma das oito reuniões iniciais do GT. Destes, nove são militares – oito coronéis ou tenentes-coronéis da ativa ou da reserva da PM paulista e o bombeiro militar da reserva Ronei Fonseca.
Três pontos de pauta destacam-se no mar de generalidades expostas pelas atas. Um dos tópicos da segunda reunião, ocorrida em 16 de outubro, foi a inclusão no GT de Marcos de Castro Simanovic, coronel da reserva da PM paulista e diretor de criação e manejo de unidades de conservação (UCs) do ICMBio. Ele já havia participado da reunião inaugural do grupo, em 8 de outubro, e, também, esteve no segundo encontro, mas não apareceu nas seis reuniões seguintes. É um dos oficiais da PM paulista com maior experiência no trabalho com UCs, comandando uma diretoria nevrálgica no Instituto Chico Mendes. Em tese, ele ou um técnico dessa diretoria deveriam ser presenças obrigatórias em um grupo de trabalho que avalia a transferência da atribuição de criação e manejo de UCs federais para o Ibama.
Na quinta reunião do GT, realizada em 5 de novembro, um dos três pontos de pauta era a apresentação de dados do ICMBio. Contudo, só três membros do grupo participaram do encontro – Biagioni, Lorencini e Fonseca. Supõe-se que uma proposta de fusão entre os dois institutos deveria ser avaliada por representantes de ambos os órgãos. Justamente no encontro que tinha como tema uma apresentação sobre o ICMBio, nenhum representante do Ibama se fez presente. A rigor, o encontro nem poderia ter sido realizado, uma vez que o artigo 4º da Portaria 524/2020 prevê que as reuniões podem ser realizadas desde que contem com a presença mínima de quatro integrantes do GT.
Ainda assim, a apresentação do ICMBio poderia ter sido incluída na reunião seguinte, a sexta do GT, realizada em 12 de novembro, que teve o quórum mínimo de quatro membros, incluindo dois representantes do Ibama. Houve, contudo, somente dois assuntos na pauta da sexta reunião do grupo: regimentos internos/decretos de estruturas e a inclusão no grupo do secretário adjunto de Biodiversidade do MMA, o major da PM paulista Olivaldi Azevedo, que fora exonerado em abril de 2020 do cargo de diretor de proteção ambiental do Ibama. Não se sabe se a inclusão de Azevedo foi aprovada na reunião. Se o foi, não há notícia de ato oficial do ministro incluindo o secretário adjunto de Biodiversidade no GT. No entanto, Olivaldi não esteve presente nem na sexta, nem na sétima e tampouco no oitavo encontro do grupo.
A saída de Azevedo do Ibama ocorreu dois dias após a veiculação de uma reportagem do Fantástico pela TV Globo em abril de 2020 que acompanhou uma megaoperação do instituto para retirar madeireiros e garimpeiros ilegais de três terras indígenas no sul do Pará. Segundo funcionários do Ibama, Azevedo foi desligado do Ibama por não ter freado o setor de fiscalização do órgão. No entanto, foi recontratado por Salles em 1º de outubro como adjunto de Maria Beatriz Palatinus Milliet, secretária de Biodiversidade do MMA.
“O GT tinha que necessariamente, e segundo o princípio constitucional da publicidade na Administração Pública, ter suas análises, agendas e atas publicadas permanentemente no site do Ministério do Meio Ambiente, da mesma forma como funcionavam outros grupos e colegiados criados até 2018”, observa o advogado Fábio Ishisaki, analista do projeto Política por Inteiro.
Tópicos das oito reuniões iniciais do GT da fusão
Recursos Humanos; Recursos Materiais/Logística/Telemática; Orçamento/Financeiro/Outras fontes de recursos; Dados especializados/Geográficos; Estrutura de Gestão/Governança; Planilhamento dos dados; Padronização de planilhas; Apresentação dos dados IBAMA; Ajustes dos dados e planilhas; Ajustes dos dados geográficos; Dados espaciais/geográficos; Legenda para os dados geográficos; Inclusão de dados em representação gráfica; Regimentos internos/Decretos de Estruturas; Proposta para planilhas/Forma de dados/Abrangência de dados; Apresentação de dados por meio de planilha “Excel”; Inserção até nível de coordenadorias; e Auxílio do DGE/Secex/MMA.
* Foram removidos tópicos repetidos e os mencionados no texto principal da reportagem
A reportagem conversou sobre as atas das reuniões do GT que discute a fusão com dois ex-presidentes do ICMBio – Cláudio Maretti e João Paulo Capobianco –, uma ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, e o presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema Nacional), Denis Rivas.
“Além de reuniões praticamente vazias de conteúdo, surpreendem a irregularidade da participação do ICMBio e a pouca participação das diretorias que têm mais relação com as áreas protegidas, a Diman e a Disat”, critica Cláudio Maretti, ex-presidente do instituto (2015-2016) e vice-presidente da Comissão Mundial de Áreas Protegidas para a América do Sul da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
Maretti refere-se às diretorias de Criação e Manejo de UCs (Diman) e Ações Socioambientais e Consolidação Territorial em UCs (Disat), que oficialmente não possuem representação no GT. O diretor da Diman, Marcos de Castro Simanovic, participou somente das duas primeiras reuniões do GT, na condição de convidado. Chefia a Disat no momento Nolita Almeida Cortizo como diretora substituta, que não participou nem como convidada das oito reuniões ocorridas em outubro e novembro.
“Todos os indicadores mostram melhora na gestão das unidades de conservação depois da criação do ICMBio”, assinala Maretti, citando temas estratégicos na política de conservação da biodiversidade, como planos de manejo, colaboração com pesquisas, integração com as concessões do Serviço Florestal Brasileiro e atividades de integração, apoio e respeito às comunidades tradicionais extrativistas.
Primeiro presidente do ICMBio (2007-2008), o biólogo e ambientalista João Paulo Capobianco, concorda com os argumentos de Maretti e adiciona que “esse tipo de GT na administração pública é usualmente uma instância técnica que faz recomendações à direção do MMA. Esta é quem tem a incumbência de acatar ou não essas recomendações. Não faz sentido colocar o alto escalão no GT. Isto inibe a discussão técnica.”
Para ele, a fusão reduziria drasticamente a capacidade de atuação do sistema federal de meio ambiente. “Os efeitos seriam devastadores. A existência de órgãos públicos especializados [na gestão de áreas protegidas] é uma prática internacional, não é uma fabricação brasileira”, lembra Capobianco, vice-presidente do conselho diretor do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). Entre os países que mantêm instituições públicas dedicadas exclusivamente à gestão das unidades de conservação, destacam-se Argentina, África do Sul, Austrália, Canadá, Colômbia, Costa Rica e Estados Unidos.
“Há evidências claras de que o processo de discussão sobre a fusão entre Ibama e ICMBio é um teatro e a decisão política já está tomada. Cabe aos técnicos que atuam em conservação da biodiversidade e à sociedade civil lutarem para que isso não ocorra”, diz Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima (OC) e ex-presidente do Ibama (2016-2019). “O ICMBio não cabe mais dentro do Ibama, é uma organização com missão consolidada e cultura própria.”
Para ela, ninguém ganhará com essa fusão, nem se economizarão recursos públicos. “Não há duplicidade de atribuições entre Ibama e ICMBio para que essa economia possa ocorrer. Na verdade, vão reduzir os recursos já muito escassos disponíveis para a conservação da biodiversidade. ”Suely chama a atenção para o corte de 61,5% nos recursos previstos no Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2021 (PLOA 2021) para apoio à criação, gestão e implementação das unidades de conservação, a principal atividade do instituto, na comparação com o orçamento autorizado em 2018. “Destinar menos de R$ 75 milhões para essa ação é matar o ICMBio por inanição”, conclui a ex-presidente do Ibama.
No fim de janeiro, o OC publicou o relatório Passando a boiada, que analisa o aprofundamento do retrocesso na política ambiental do governo Bolsonaro em 2020 e a forte redução no orçamento proposto para 2021 pela gestão Salles para o MMA e autarquias vinculadas. A PLOA 2021 prevê R$ 1,72 bilhão para as despesas totais do MMA Ibama e ICMBio, o menor orçamento para a área desde 2000.
“Estamos preocupados com um apagão na gestão ambiental caso o ICMBio seja extinto. A exemplo da paralisação do julgamento dos autos de infração ocasionada pelos [núcleos de conciliação ambiental], a criação de um novo órgão de gestão ambiental paralisaria todas as ações hoje em curso [no Ibama e no ICMBio]”, declara Dênis Rivas, presidente da Ascema Nacional, referindo-se a rumores de que o ministro Salles pretende mudar o nome do Ibama, após a incorporação das atividades do ICMBio, caso este seja fechado.
“Esperamos que essa audiência do Ministério Público Federal consiga reunir os elementos para impedir que a gestão ambiental federal sofra esse golpe de misericórdia e que os responsáveis pelo desmonte, por essa tentativa de ‘passar a boiada’ de crimes contra o meio ambiente, sejam responsabilizados”, assinala Rivas.
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MPF investiga reuniões “secretas” do MMA que discutem extinção do ICMBio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU