01 Setembro 2022
Cada vez mais latino-americanos estão migrando dentro da região, expulsos de seus países de residência por problemas estruturais como a precarização trabalhista, a falta de oportunidades, o racismo e outras causas relacionadas à discriminação por gênero, idade e diversidade sexual. Esse fenômeno de entrada e saída em massa de pessoas entre os países da América Latina, detalha Pablo Ceriani Cernadas, especialista em assuntos migratórios, é uma das características mais marcantes dos últimos dez anos. “Não há precedentes na região de tantas pessoas que partem em tão poucos anos para outros países do continente”, explica.
O advogado, especialista do Comitê de Trabalhadores Migrantes da Organização das Nações Unidas e professor pesquisador da Especialização em Migração e Asilo na perspectiva dos Direitos Humanos, na Universidade Nacional de Lanús, explica também que os principais processos migratórios da região são o venezuelano, o haitiano e o que define como o Triângulo Norte da América Central. “O deslocamento venezuelano é quantitativamente muito importante”, ressalta o especialista. Entre os venezuelanos, disse, 80% se deslocam para outro país da América Latina.
Para Ceriani Cernadas existe outra mudança importante nos últimos anos: a degradação das condições em que a migração é gerada, com margens altíssimas de precariedade e irregularidade. Algo que a “cambalacho de políticas” e “as contradições dos discursos de maior controle migratório” acabam reforçando, ao invisibilizar o fenômeno. “Se a entrada de pessoas é restringida ou impedida em prol da segurança, imediatamente, o Estado perde o controle sobre essa realidade”, opina Ceriani Cernadas.
A entrevista é de Norman Flores, publicada por Página/12, 24-08-2022. A tradução é do Cepat.
Qual é a principal causa da crise migratória na América Latina?
É preciso ter cuidado ao pensar em uma única causa. Em geral, há uma complexidade, uma multiplicidade de causas onde se situam os problemas estruturais que a região tem em termos de precariedade trabalhista, falta de oportunidades de emprego e racismo e, depois, a forma como isso se relaciona com temas de gênero, idade e diversidade sexual. Aos poucos, as questões ambientais também aparecem.
Podemos falar, por exemplo, de condições estruturais de violência social e institucional em certos países da América Central, o que explicaria os deslocamentos nos últimos 20 anos de Guatemala, El Salvador e Honduras. Mas caso o foco seja colocado apenas ali, omite-se que há outra série de questões como a discriminação estrutural contra a população indígena e afro ou por razões de gênero.
Quais são os processos migratórios mais significativos que estão ocorrendo na América Latina?
Os três grandes desafios principais pela profundidade que têm, o número de pessoas que saem e as condições em que migram são o venezuelano, o haitiano e o que acontece no Triângulo Norte da América Central. O processo migratório colombiano também tem uma presença importante. A migração venezuelana e colombiana é mais diversa em termos de classes sociais que se deslocam. Por fim, de vez em quando, surge e desaparece a problemática nicaraguense de migração para a Costa Rica por questões de conflito político.
Ao longo dos últimos anos, como a migração e suas razões foram mudando?
Há momentos históricos de grande migração por razões de violência política, como nos anos 1970, na América do Sul, e nos anos 1980, na América Central, devido aos conflitos armados. Os anos 1990 estiveram muito relacionados à profunda deterioração das condições de vida, sendo o Equador e a Argentina os principais exemplos. A grande mudança dos últimos 10 ou 15 anos é que cada vez mais pessoas migram dentro da região.
Hoje, a grande maioria da migração sul-americana é para outro país da América do Sul. Em boa medida por causa do deslocamento venezuelano, porque quantitativamente é muito importante: 80% se deslocam para outro país sul-americano. Não há precedentes na região de tantas pessoas que partem em tão poucos anos para outros países da região. A outra grande mudança importante é que aumentou exponencialmente as condições de precariedade e irregularidade nas quais a migração é gerada.
O que produz essa precariedade e irregularidade que você menciona?
Um dos impactos imediatos do aumento da irregularidade migratória é a menor visibilidade sobre esse fenômeno. Essa é uma das clássicas contradições dos discursos de maior controle migratório. Se a entrada de pessoas é restringida ou impedida em prol da segurança, imediatamente, quando você tem uma realidade mais estrutural de pessoas que precisam atravessar, o Estado perde o controle sobre essa realidade. Você não sabe mais quem entra em seu país, nem para onde vai. Se permanece, se seguiu, se precisa de proteção ou se, eventualmente, em geral, as estatísticas não evidenciam a questão, fora uma ameaça potencial.
Em quais países a violência de gênero é uma razão para que meninas, mulheres e dissidências tenham que migrar?
Na região onde mais está documentada é no Triângulo Norte da América Central. Em dois sentidos: por um lado, há violência de gênero no âmbito familiar e, por outro, a violência de gênero dentro do que é a dinâmica das maras, com as mulheres quase como escravas sexuais de certos líderes maras. Isto é bastante quantificado nas estatísticas produzidas pelos Estados Unidos (Migrant Protection Protocols).
Em princípio, a maioria das pessoas que recebem alguma proteção e asilo são mulheres migrantes devido à violência de gênero. Na América do Sul, é menos registrada como causa, embora obviamente seja uma causa. O que há são indicadores de um crescimento da violência de gênero no percurso, como costuma acontecer toda vez que a rota migratória é invisibilizada e muitos atores começam a atuar, exercendo diferentes formas de violência.
Qual é a sua opinião acerca das políticas migratórias dos países da região? Quais são mais permeáveis para que haja mais ou menos migração ilegal?
É um cambalacho de políticas que vão de um extremo ao outro. O México tem as principais estatísticas em nível mundial de detenção migratória, lutando cara a cara com os Estados Unidos. Têm mais de 100.000 pessoas detidas por ano. Inclusive, dezenas de milhares de crianças privadas de sua liberdade por razões administrativas. No outro extremo, estão aqueles que reconhecem que migrar é um direito humano. A única região onde se reconhece que migrar é um direito humano é a América Latina.
O primeiro país do mundo a fazer isso foi a Argentina. Depois, Uruguai, Bolívia, Guatemala e Equador. Em dezembro de 2002, aprovou-se o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, que foi e continua sendo uma ferramenta fundamental para facilitar a residência de pessoas sul-americanas em países da América do Sul, independente que tenha um alcance diferente em cada país.
O que significou o decreto que Mauricio Macri assinou, em 2017, sobre a lei migratória?
Foi a reforma mais antidemocrática da história argentina nesta matéria. Reformar uma lei sem passar pelo Congresso, sem qualquer diálogo político, nem social. Mais do que a Lei de Residência de 1902, que ao menos saiu do Congresso.
Considera que o DNU evidenciou a xenofobia e o racismo cristalizados em alguns discursos políticos? Como esses discursos operam na região?
Por um lado, existe o racismo e, por outro, as formas de discriminação estruturais como causa da mobilidade. Nesse sentido, a xenofobia não só é pensada como o fato de que os migrantes são maus, são um perigo, mas também em termos de discursos de meritocracia nacionalista, de que os nacionais supostamente têm mais direitos do que aqueles que nasceram em outro lugar.
Esse discurso da legitimação da desigualdade por nacionalidade ou por ter ou não um documento vai muito mais fundo por raça, classe e gênero. É aí que há uma combinação bastante complexa que tenta legitimar não apenas o processo de desigualdade, de restrição ao direito, mas inclusive de legitimação de múltiplas formas de violência contra esses atores.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Crise migratória na América Latina: um fenômeno que expõe a população mais vulnerável - Instituto Humanitas Unisinos - IHU