04 Julho 2018
As maras geram violência estrutural em três países centro-americanos e as autoridades são incapazes de frear e facilitar proteção efetiva a suas vítimas. Diretrizes da ONU e sentenças da Audiência Nacional espanhola reconhecem que devem ter garantido um direito de asilo que a Espanha está rejeitando por considerá-las “crime comum”.
A análise é da Comissão Espanhola de Ajuda ao Refugiado – CEAR, publicada por CPAL Social, 02-07-2018. A tradução é do Cepat.
As maras são um tipo de gangues organizadas, muito violentas, que perpetram atividades criminosas. Possuem sua origem no contexto das gangues californianas. São particularmente poderosas e violentas, e operam essencialmente em três países centro-americanos: El Salvador, Honduras e Guatemala, onde podem chegar a gerar uma situação de perigo generalizada. As maras perseguem jovens e lhes ameaçam para que se integrem nelas, extorquem as pessoas que consideram que têm dinheiro e punem duramente – até a morte – aquelas que se negam a colaborar e resistem a sua autoridade, e a seus familiares. Costumam contar com o auxílio de colaboradores anônimos, voluntários e involuntários, nos territórios onde operam. Sofrer violações e cometer homicídios fazem parte dos ritos de iniciação dos membros das gangues.
As maras costumam se organizar ao redor de grandes estruturas, como podem ser as maras Salvatrucha e Barrio 18, presentes nos três países centro-americanos. Múltiplas gangues locais ou “clicas” são afiliadas a uma destas duas maras. São financiadas principalmente com a extorsão econômica de suas vítimas, inclusive ordenada por telefone por membros das maras encarcerados, mas também com o roubo, o sequestro, o tráfico de pessoas, o narcotráfico, o homicídio e a venda e distribuição de armas. Exercem, além disso, altíssimos níveis de controle social sobre a população de seus territórios mediante ameaças e violência e possuem capacidade para influenciar a vida política.
Muitas vezes, as maras ou facções se enfrentam entre elas para exercer o controle exclusivo de seus territórios de origem, também com as forças de segurança, criando situações próximas ao de conflito interno nos países onde operam.
De modo geral, as vítimas não costumam denunciar os crimes das maras à polícia por medo das represálias e porque não confiam nas autoridades cuja proteção é ineficaz. As maras escapam do controle das forças de segurança (Polícia e Exército) e do sistema judiciário. Tanto El Salvador como Honduras e Guatemala apresentam um elevadíssimo índice de impunidade dos crimes. A causa principal é o nível de corrupção existente nas diferentes Forças do Estado e a influência que o crime organizado conseguiu ter em esferas da sociedade, tendo se estendido inclusive em setores da polícia e no poder judiciário.
O que é a condição de pessoa refugiada, também chamada proteção internacional?
Consiste na proteção oferecida por um Estado a determinadas pessoas cujos direitos fundamentais se encontram ameaçados por atos de perseguição ou violência em seu país de origem. O direito destas pessoas a buscar proteção em outro país constitui um direito humano fundamental, presente na Declaração Universal de Direitos Humanos, na Convenção de Genebra de 1951, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e na Constituição Espanhola, entre outros.
Quais pessoas e em que circunstâncias podem se considerar merecedoras de proteção internacional?
A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, adotada em Genebra em 1951, garante um estatuto pessoal específico na Lei do país de refúgio (também chamado “proteção internacional”) àquelas pessoas que sofrem fundamentados temores de serem perseguidas por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertença a determinado grupo social ou opiniões políticas e não queiram ou não podem se abrigar na proteção de seu país de origem.
Esta proteção internacional deve lhes garantir no país de refúgio o exercício mais amplo dos direitos e liberdades fundamentais que lhes permita viver em condições dignas, com a finalidade de evitar que sejam expulsas àquele país onde sua vida ou sua liberdade estariam ameaçadas.
Para poder obter a condição de refugiadas, as pessoas solicitantes de proteção internacional deverão estabelecer que foram pessoalmente vítimas de perseguições contempladas na Convenção de Genebra e que possui temores fundamentados de voltar a sofrer perseguições, caso regresse a seu país de origem. Quando a origem das perseguições radica em agentes ou organizações não estatais, a proteção internacional pode ser concedida, caso se estabeleça que as autoridades estatais não querem ou não podem proporcionar uma proteção eficaz aos indivíduos frente às atuações criminosas destes agentes ou organizações, tal e como acontece no caso das maras.
As autoridades espanholas, em termos gerais, consideram que a perseguição exercida pelas maras não constitui uma perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertença a determinado grupo social ou opiniões políticas, mas entram no que se denomina “crime comum”, alegando que a finalidade do asilo não é outorgar proteção diante de fenômenos de insegurança cidadã.
Não consideram acreditado que as autoridades do país de origem não possam e nem queiram proteger as vítimas das maras, estimando que as autoridades dos países centro-americanos demonstram uma constante preocupação e adotam medidas alternativas para diminuir a violência e o crime. Portanto, segundo as autoridades espanholas, as vítimas das maras não podem desfrutar da proteção internacional.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) tem definido e desenvolvido as condições que regem a concessão da condição de refugiado, tanto em documentos de caráter geral, como o Manual de Procedimentos, como em diretrizes focadas nas vítimas de gangues organizadas, em particular das maras em países centro-americanos.
Em sua Nota de orientação relativa a gangues organizadas, o ACNUR esclarece a interpretação da definição de refugiado contida na Convenção de Genebra em relação a tais gangues. Especifica que “a elegibilidade para a proteção internacional de pessoas que fogem da violência relacionada às gangues dependerá de uma série de fatores que incluem os riscos enfrentados pela pessoa solicitante; a gravidade e a natureza da violência ou as violações dos direitos humanos que sofreu ou que teme; o nexo causal com um dos motivos enumerados na definição de refugiado da Convenção de 1951 (tal como “a pertença a um determinado grupo social”); sua participação nas atividades da gangue, assim como o grau de proteção do Estado disponível no país de que se trate”. O ACNUR define um determinado grupo social como “um grupo de pessoas que compartilha uma característica comum, distinta ao fato de serem perseguidas ou que são percebidas muitas vezes como grupo pela sociedade. A característica será inata e imutável, ou fundamental da identidade, a consciência ou o exercício dos direitos humanos”.
Em relação às maras e as necessidades de proteção internacional, as diretrizes publicadas recentemente pelo ACNUR analisam a situação em três países: El Salvador, Honduras e Guatemala. Nestas Diretrizes, identificam-se várias categorias de pessoas que, dependendo das circunstâncias particulares do caso, podem necessitar de proteção internacional por motivos de sua opinião política (imputada), pertença a um determinado grupo social ou devido a outros dos motivos enumerados na Convenção de Genebra.
Famílias deslocadas por gangues do lugarejo El Castaño, El Salvador. Retornaram para suas moradias após permanecer 19 dias no refúgio instalado no município. Este foi o primeiro refúgio por violência em tempos de paz. CEAR/Victor Peña. El Faro
A posição da Audiência Nacional (AN) a respeito das solicitações de proteção internacional por parte das vítimas das maras conheceu um ponto de inflexão com a sentença do dia 8 de setembro de 2017. A AN que, até então, não considerava justificado conceder a proteção internacional a vítimas de perseguições das maras, reconhece pela primeira vez que sua posição sobre a necessidade de proteção internacional das vítimas das maras de El Salvador deve ser revisada em vista das Diretrizes publicadas pelo ACNUR a respeito das atuações das maras em tal país.
A AN conclui que a violência em El Salvador reveste tal intensidade que a situação que se vive no país pode ser qualificada como de conflito interno e que o Estado não se encontra em condições de fornecer proteção à população, tanto pela força das maras, como pela insuficiência de efetivos policiais e a ineficiência do sistema judiciário penal. A sentença reconhece que a pessoa solicitante de proteção internacional se encontra em necessidade de proteção internacional já que, tanto pela situação de El Salvador como por sua situação pessoal, sua vida e integridade física corre um grave risco. A AN manteve esta mesma posição em sentenças posteriores relativas a vítimas das maras em El Salvador.
A posição da AN em relação às vítimas das maras em Honduras conhece a mesma evolução. No dia 20 de novembro de 2017, a AN dita uma sentença na qual, baseando-se nas Diretrizes publicadas pelo ACNUR a respeito deste país, reconhece que a situação em que se encontra Honduras é gravíssima pela intensa penetração do crime organizado em diferentes esferas da sociedade, incluindo setores da polícia, política e poder judiciário, e o alarmante aumento da violência no país. Os esforços do governo de Honduras para enfrentar as maras não têm eficácia e não permitem proporcionar uma proteção efetiva a seus cidadãos frente à ação criminosa das mesmas. Além disso, o sistema judiciário é particularmente ineficiente e sujeito à intimidação, corrupção, clientelismo e interferência política, o que contribui para os altos níveis de impunidade da criminalidade em Honduras, razão pela qual se lhe concede a proteção internacional. Esta sentença foi seguida por outras quatro, datada em 22 de novembro de 2017 e em uma última, datada em 9 de fevereiro de 2018, todas relacionadas com as maras operando em Honduras, que reconhecem aos recorrentes, vítimas de tais maras, o direito à proteção internacional.
A violência se intensificou notoriamente nos países de procedência, de tal maneira que as vítimas veem violentados seus direitos humanos mais elementares, inclusive o direito à vida, e correm o risco de sofrer atos de perseguição. Qualquer pessoa pode ser vítima da violência das gangues por residir em um bairro determinado controlado por elas, extorquidas em seus pequenos negócios e, inclusive, assassinadas em caso de resistência. Muitas mulheres são utilizadas como escravas sexuais.
A CEAR considera que as vítimas das maras são objeto de atos de perseguição legalmente estabelecidos na Lei 12/2009, reguladora do direito de asilo, por ser suficientemente graves por sua natureza ou caráter reiterado, como por constituir uma violação grave dos direitos fundamentais, ou então um acúmulo suficientemente grave de várias medidas, incluídas as violações de direitos humanos. Após uma avaliação individual, é preciso levar em conta todos os fatos relativos ao país de origem no momento de resolver sobre a solicitação de proteção internacional.
Os agentes de proteção estatais não proporcionam nestes casos proteção efetiva à perseguição, em razão da ausência de medidas para impedir a perseguição ou o padecimento de danos graves. Resulta ineficaz o sistema jurídico que não permite a investigação, o processamento e a sanção de ações constitutivas de perseguição. Por conseguinte, nestes casos, estão presentes todas as condições necessárias para o reconhecimento do direito de asilo.
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El Salvador, Honduras, Guatemala. As vítimas de perseguição pelas maras e o direito de asilo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU