28 Abril 2021
“Nada melhor do que assustar a classe média com o perigo dos pobres de pele escura, para não notar que dois homens, Jeff Bezos e Elon Musk, já possuem mais riqueza do que 40% da população da superpotência [Estados Unidos], enquanto os sem-teto e a precarização do trabalho dos escravos assalariados continuam crescendo”, escreve Jorge Majfud, escritor uruguaio-estadunidense e professor na Jacksonville University, em artigo publicado por Página/12, 26-04-2021. A tradução é do Cepat.
As crises de refugiados na fronteira sul dos Estados Unidos não são consequência de qualquer invasão exterior que coloca em perigo a Segurança Nacional. Nem sequer são a consequência de “políticas brandas de Washington”, conforme repetem até o cansaço os políticos e os grandes meios de comunicação deste país. São consequência da intersecção de diferentes contradições do capitalismo hegemônico atual.
Por um lado, temos a lei da oferta e a demanda e, por outro, uma longa tradição de intervencionismos da superpotência que, desde o século XIX, sem trégua e em nome da luta contra a corrupção, promoveu a corrupção nas “caóticas repúblicas de negros”. Em nome da liberdade, da democracia, da paz e dos direitos humanos impôs uma prolífica lista de protetorados, de ditaduras cívico-militares, de terrorismo paramilitar e de esquadrões da morte até nas chamadas democracias.
A crise da fronteira, conforme a imprensa e os políticos repetem e ampliam, não é uma crise para os Estados Unidos. É uma crise apenas para os pobres e os deslocados pelo próprio sistema do capitalismo hegemônico que os demoniza.
Para resolver as contradições do capitalismo, os efeitos indesejáveis da venerada Lei da oferta e a demanda, existem as leis dos políticos a serviço das corporações e em nome da defesa de todo um país. Neste sentido, todas as leis são anticapitalistas, já que contradizem, limitam ou impedem a expressão imediata da oferta (o trabalho imigrante) e a demanda (o consumo nacional).
É aqui que aparece o imperialismo para tentar resolver as contradições de sua própria ideologia e, além de suas leis, surgem as narrativas de “nossas fronteiras”, que é necessário “defender da invasão” dos pobres, e a altruísta “luta desinteressada pela liberdade”, por meio de intervenções para além das fronteiras alheias.
Na fictícia liberdade do mercado, a liberdade só é aceita quando aqueles que têm poder impõem sua liberdade sobre os seus libertados. Por estas mesmas razões, em países como os Estados Unidos, há mais de um século as leis são escritas pelas corporações capitalistas, para se protegerem das consequências não desejadas da liberdade do livre mercado e, sobretudo, para se protegerem da liberdade dos de baixo, ou seja, dos pobres, das raças inferiores, dos países periféricos.
Encerrada a desculpa do comunismo (nenhum desses “países de merda” é comunista, mas mais capitalistas do que os Estados Unidos), retorna-se às desculpas raciais e culturais do século anterior à Guerra Fria. Em cada trabalhador de pele escura se vê um criminoso, um estuprador, não um ser humano, não uma oportunidade de desenvolvimento mútuo.
As próprias leis de imigração têm pânico diante dos trabalhadores pobres. Qualquer um que já solicitou um visto sabe que antes de se apresentar a uma embaixada dos Estados Unidos, em qualquer parte do mundo, deve eliminar a palavra trabalho do vocabulário pessoal. Você pode ser um perfeito imprestável com dinheiro, e se gabar disso, mas nunca um trabalhador pobre.
Enquanto nos Estados Unidos a Seguridade Social e a Saúde Pública continuam sob ataque midiático, sob o progressivo corte orçamentário dos governos com o objetivo de transferir seus recursos ao Pentágono e para promover a cobertura privada de saúde e de previdência, mais de 60.000 estadunidenses morrem, a cada ano, pelo vício em drogas, a maioria por prescrições médicas de opioide.
Em 2017, segundo o National Institute on Drug Abuse do Governo dos Estados Unidos, 47.000 pessoas morreram por overdose de opioides. A epidemia desta droga começou nos anos 1990, quando as poderosas farmacêuticas garantiram aos médicos que seu produto não produzia vício, apesar dos estudos contrariarem esta afirmação. A campanha de propaganda e manipulação dos médicos se pareceu muito à inventada por Edward Bernays, meio século antes, para vender cigarros, ovos, bacon e golpes de Estado.
Mas ninguém se lembra de nada. Só veem alguns milhares de pobres vagantes, ameaçando destruir com seus pênis e vaginas o país mais poderoso do mundo. Enquanto o negócio das prisões privadas (que recebe milhões de dólares do governo federal) floresce no extremo sul do país, a imigração ilegal e os refugiados legais são criminalizados por serem pobres e pelo pecado de não serem caucasianos.
O negócio, como qualquer outro, tem como único objetivo aumentar o número de clientes. O problema é que, aqui, os clientes são homens e mulheres pobres em busca de uma vida decente, em busca de um pouco de paz e de trabalho duro, que é a única coisa tão terrível que sabem fazer. Quando não são refugiados.
Como o desespero alheio e a indignação própria é um negócio, as empresas penitenciárias inflam os dias, as semanas, os meses e os candidatos a criminosos, mesmo que sejam crianças que precisam ficar detidos sem necessidade, contra as leis internacionais, mas em cumprimento das leis do país das leis.
Desde 1980, a emigração desesperada do Triângulo Norte se multiplicou por dez. Não porque as fronteiras tenham sido abertas ou porque as condições de viagem agora sejam melhores, já que os migrantes continuam utilizando suas pernas como principal meio de transporte e as fronteiras se militarizaram exponencialmente.
O terrorismo paramilitar financiado pelas corporações do norte, as guerras de Washington, nos anos 1980, e seus golpes de Estado 2.0, no novo século, produziram um efeito imediato e persistente. Em 2020, o fluxo de migrantes que tentam escapar da violência e a miséria dos neoprotetorados ultracapitalistas da América Central (Guatemala, El Salvador e Honduras) somará quase 90% do total.
Como não é possível culpar o comunismo (para piorar, apenas 7% dos migrantes provêm do “regime de Nicarágua”) e os neoprotetorados ultracapitalistas não são países bloqueados, culpa-se a sua cultura doente, quando não diretamente a raça maldita. Como resposta, Washington resiste a receber esses perigosos refugiados, sejam crianças ou mulheres pobres. Não por mero acidente, a superpotência dos compassivos cristãos recebe cem vezes menos refugiados por cada mil habitantes do que o Líbano e, inclusive, seis vezes menos que a empobrecida e bloqueada Venezuela.
Sem indicações de mudança, os políticos nos Estados Unidos continuam alertando sobre o perigo de terroristas entre os pobres que buscam asilo. Nada melhor do que assustar o povo com uma invasão inexistente, para não falar da violência e das históricas matanças do terrorismo dos supremacistas brancos. Nada melhor do que assustar a classe média com o perigo dos pobres de pele escura, para não notar que dois homens, Jeff Bezos e Elon Musk, já possuem mais riqueza do que 40% da população da superpotência, enquanto os sem-teto e a precarização do trabalho dos escravos assalariados continuam crescendo.
Tudo o que produz a defesa furiosa dos de baixo aos benfeitores de cima com clichês como: “os folgadões querem nos invadir para viver do governo”, “os pobres me roubam com os impostos” e “a solução não está em tirar dos ricos, mas em ajudá-los a prosperar”, como se os ricos não tivessem sequestrado o suficiente de todo o progresso da história e de todo o trabalho dos de baixo que os sustentam e defendem como se fossem deuses.
O racismo, o negócio de explorar os de baixo, não se cria, nem se destrói, apenas se transforma.
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O racismo e os refugiados do capitalismo hegemônico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU