29 Agosto 2022
"Kirill é prisioneiro do 'empréstimo' da ideologia do 'espaço russo' oferecido a Putin, mas não o contrário. Para o 'czar' o chamado à fé é instrumental. Pode passar rapidamente da idolatria à guerra patriótica contra o nazismo à nostalgia do império soviético, dos valores morais da tradição à ideologia russa, da civilização da língua à afirmação da 'terceira Roma', até a projeto euroasiático", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 27-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 24 de agosto, o Metropolita Antonij de Volokolamsk, presidente do departamento de relações exteriores do patriarcado de Moscou, anunciou que o Patriarca Kirill não irá ao sétimo congresso dos líderes das religiões mundiais (13-15 setembro) em Nun-Sultan (Cazaquistão) e não se encontrará com o Papa Francisco.
A decisão surpreendeu porque sua presença havia sido assegurada ao embaixador em 1º de maio e ao presidente do país, Kassym-Zhomart Tokayev, em 16 de agosto.
As razões alegadas pelo metropolita: pouca preparação, ausência de um texto compartilhado, ocasião inadequada. A narrativa da recusa é curiosa. Confirma a importância do congresso do qual Kirill participou em 2012 (mas que resulta não adequado para o evento), menciona-se a surpresa da rejeição unilateral do encontro pelo papa em junho passado (enquanto Francisco havia dito que havia sido cancelado "de comum acordo"), fala de uma falta de pedido formal posterior do Vaticano e da ausência de um documento prévio (difícil imaginar um acordo sobre a emergência ucraniana). A conclusão quase parece ser: estão tentando se agarrar em espelhos.
Justamente por isso a pergunta é lícita: a decisão está realmente nas mãos de Kirill?
O patriarca tem todo o interesse no diálogo com os muçulmanos que representam 7-8% da população da Rússia. Ele sempre enfatizou a vantagem de manter contato com os líderes religiosos das Igrejas ocidentais (ele repetiu isso aos seus bispos após as videoconferências com o papa e Welby). A presença o teria investido como o "único" representante ortodoxo, na ausência de Bartolomeu.
É difícil pensar na recusa como resultado da irritação da qualificação de "coroinha de Putin", considerando que indicações muito mais pesadas vieram dos principais expoentes do cristianismo (herege, servo do poder, manipulador do Evangelho e da tradição).
A recusa certamente não é atribuível a seus colaboradores. O metropolita Antonij, descrito como honesto e transparente por quem o conhece pessoalmente, se encontrou com o papa em 5 de agosto sem anunciar nada a respeito. Nem é atribuível ao sínodo da Igreja Russa que se reuniu no dia seguinte (25 de agosto).
Nos 91 pontos da agenda não há menção à viagem cancelada. Alguns sinais de incômodo com a guerra vêm das periferias do império. D. Onufrio, chefe da Igreja Ortodoxa Ucraniana pró-Rússia, encontrou alguns prisioneiros russos em 18 de agosto e os convidou a dizer: "não queremos a guerra atual na Ucrânia". “Devemos encontrar palavras de amor para silenciar as armas e parar os mísseis. Nós queremos a paz". “Vocês não precisam se matar entre si, a morte não é boa para ninguém. É a tristeza de cada lar”.
Na fronteira norte, na Lituânia, onde opera uma Igreja pró-Rússia, um de seus bispos, Ambrósio de Trakai, lembrou o diálogo direto com Kirill. Depois de frisar sua própria condenação da guerra, “eu disse ao patriarca que algumas de suas afirmações foram mal recebidas na Lituânia. E com razão”.
Ao entrevistador que pergunta “E o que ele lhe respondeu?”, o bispo diz: “Ele me disse que nas suas declarações não há apoio flagrante à guerra. Estou citando ele. Obviamente, é seu direito afirmá-lo. Aceitei sua resposta e a repasso”.
É mais razoável supor que o não ao encontro tenha origem do lado político do Kremlin. A surpresa seria mais justificada. Após o atentado a Alexander Dugin e a morte de sua filha enquanto a guerra na Ucrânia se emperra sem a esperada vitória, o “czar” não pode tolerar o menor desvio de suas indicações, a menor abertura ao diálogo.
Kirill é prisioneiro do "empréstimo" da ideologia do "espaço russo" oferecido a Putin, mas não o contrário. Para o "czar" o chamado à fé é instrumental. Pode passar rapidamente da idolatria à guerra patriótica contra o nazismo à nostalgia do império soviético, dos valores morais da tradição à ideologia russa, da civilização da língua à afirmação da "terceira Roma", até a projeto euroasiático.
Suas referências culturais, de Ivan Iluyne a Constantin Leontiev e Alexander Dugin, são intercambiáveis. Religiões e referências culturais implodem no imperialismo realista da ideologia militar soviética.
Se fosse esse o caso, o não de Kirill ao papa indicaria a vontade de Putin de não aceitar a mediação na guerra e não prejudicaria um possível interesse renovado de Kirill em se encontrar com o Papa Francisco no futuro.
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Kirill ao papa: o ‘não’ é seu? Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU