26 Agosto 2022
Seu livro, publicado por Neri Pozza, na Itália recebeu o título: L’ideia russa. O original é Nós e Eles. Ambos os títulos traçam a linha de seu texto: a lacuna histórica e ideológica entre a Rússia e o Ocidente.
(Foto: Divulgação)
A entrevista com Bengt Jangfeldt é de Francesca Mannocchi, publicada por La Stampa, 25-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eu começaria a partir daqui, perguntando o que é a Rússia hoje e o que quer?
A Rússia de hoje é um país que gostaria de realizar a ‘ideia russa’, ou seja, gostaria de recriar a grandeza de um país que desapareceu com o colapso do império soviético. Em certo sentido, a Rússia de hoje é o que a Rússia sempre foi. Para entender isso, devemos recorrer à história. ‘A Ideia russa’ foi formulada durante as discussões filosóficas na Rússia em meados do século XIX sobre as relações entre a Rússia e a Europa e os europeus.
Essas discussões levaram a uma profunda divisão entre aqueles que viam o único caminho a seguir numa reaproximação com o Ocidente e aqueles que enfatizavam a singularidade histórica da Rússia, considerando-a um país moralmente superior. É a mesma divisão que vemos na Rússia de hoje, onde as pessoas que olham para a Europa têm pouca ou nenhuma influência.
No livro, você descreve o modo ondulatório de repressão e degelo, censura e abertura da Rússia em relação ao Ocidente. Descreve a relação entre Ortodoxia, Autocracia, Povo e ressalta a centralidade da palavra russa "narodnost", povo. Por que essa ideia de povo é tão importante para entender a Rússia de ontem e aquela de hoje?
Narodnost é a terceira parte do programa da época do czar Nicolau I, a ideologia do Estado desenvolvida pela tríade ‘Ortodoxia, Autocracia, Povo’. Nicolau I queria reivindicar a distância da cultura russa da Europa e o faz em torno dessas palavras, a resposta russa ao slogan "Liberdade, igualdade e fraternidade" da Revolução Francesa.
Não é por acaso que a Ortodoxia seja mencionada primeiro. Na história da Rússia, a Igreja sempre ocupou uma posição dominante e pregou o autossacrifício e a submissão a Deus e ao poder político.
A segunda palavra, Autocracia, é ‘a principal condição da vida política na Rússia’, a base sobre a qual o gigante russo repousa sua grandeza. O autocrata é o representante de Deus na terra e os indivíduos estão sujeitos a um czar que, como um pater familias, cuida apenas dos interesses dos indivíduos.
E então chegamos à terceira palavra narodnost, povo, um conceito baseado nas ideias românticas alemãs sobre o espírito da nação, a autoestima nacional, o patriotismo. Narodnost representa a aliança especial entre o povo e o governo em que o czar é o garantidor final de sua prosperidade. E se olharmos para o consenso em torno de Putin hoje, podemos ver que esse vínculo quase místico, que une soberano, Igreja e povo, é também a base da Rússia de hoje.
Explicando a evolução da filosofia e dos intelectuais russos, você cita escritores e ideólogos como Alexander Dugin, que foi o centro das atenções internacionais pelo atentado que matou sua filha Darya alguns dias atrás. Em primeiro lugar, gostaria de lhe pedir que resumisse por que a figura de Dugin e as teorias eurasianas são tão importantes para entender a Rússia de hoje?
Após o colapso do comunismo na Rússia, criou-se um vazio ideológico, tudo o que se acreditou por 70 anos foi declarado sem valor, quando o império caiu houve a necessidade de uma nova ideologia e as teorias eurasianas tentaram preencher esse vazio. A União Soviética tinha sido um estado missionário e a Rússia precisava de uma nova missão.
Dugin leva adiante ideias que floresceram desde a época de Pedro, o Grande, no século 17 da pátria-mãe russa como um contrapeso a um mundo ocidental decadente, promove o nacionalismo, ‘a ousadia espiritual, a justiça social e nacional’ e ‘valores tradicionais’ russos. As teorias de Dugin eram perfeitas para preencher o vazio pós-soviético, pois são tão nacionalistas e expansionistas quanto o era o imperialismo russo e soviético.
De fato, você lembra em seu livro que em 1996 Boris Yeltsin encarregou sua equipe de entender qual fosse "a ideia nacional, a ideologia mais importante para a Rússia" e que a resposta veio de Alexander Dugin, e de seu livro Fundamentos da geopolítica, inspirado nos nacionalistas de direita ocidentais e nos pensadores pan-eslavistas russos, publicado em 1997. O estado ideal de Dugin não é democrático, mas ideocrático, a guia do estado é a Igreja Ortodoxa, imagem dos valores da Rússia.
Acredito que o texto de Dugin teve mais influência nos desenvolvimentos da Rússia nas últimas décadas do que qualquer outro texto político dos tempos modernos. Dugin imagina um império eurasiano, seus inimigos ainda são os Estados Unidos, sua estratégia é ‘semear o caos geopolítico na política interna estadunidense, incentivar todas as formas de separatismo e conflitos étnicos, sociais e raciais, apoiar ativamente os movimentos dissidentes, os grupos extremistas, racistas e sectários’. Dugin argumenta que uma Rússia sem um império não é nada, e os sonhos de um império russo milenar começaram a se espalhar na esteira de suas teorias. O resultado foi uma mistura de ideias que influenciaram uma fase da vida política de Vladimir Putin.
Lembro-me de dois discursos, um em 2012 e outro em 2013 que você menciona, nos quais Putin falou do projeto de uma União Eurasiática, em explícita oposição à União Europeia. A questão é o quanto as ideias de Alexander Dugin ainda o influenciam, muitos descrevem Dugin como o ideólogo de Putin, mas as diferenças entre os dois são evidentes e seu relacionamento não foi desprovido de atritos quando Dugin criticou Putin por ser indeciso, perdeu sua cátedra na Universidade de Moscou.
É verdade, mas a pessoa Dugin é menos importante do que a difusão de suas ideias. Ele é o expoente de pensamentos tão difundidos na Rússia que se pode falar de ‘duginismo’ como uma ideologia que tem uma profunda influência na política do Kremlin e nos companheiros de armas de Vladimir Putin.
Você tem alguma suposição sobre o atentado que matou Darya Dugina?
A pista ucraniana poderia ser verdadeira, claro. Mas vamos tentar ler o cenário interno russo: há milhões de pessoas na Rússia que são contra a guerra, e entre elas certamente há pessoas que gostariam de se livrar de Dugin, que era o alvo do ataque. No entanto, também há muitos russos que apoiam a guerra, mas pensam que Putin não seja suficientemente resoluto, que tende a contemporizar demais. Uma coisa é certa: Dugin tem muitos inimigos, devemos tentar decodificar qual foi o inimigo que quis puni-lo.
Na sua opinião, é possível imaginar uma mudança política na Rússia determinada por fatores externos, ou uma revolta interna?
Qualquer mudança na Rússia deve vir de dentro, caso contrário está fadada ao fracasso a longo prazo. O que acontecerá, depois, com as mudanças, é difícil prever. Na Rússia, o futuro é tão imprevisível quanto o passado, como dizia um mote soviético. De qualquer forma, seria ingênuo pensar que a remoção de Putin poderia levar automaticamente a uma Rússia democrática. Não podemos cometer o mesmo erro que cometemos após a queda da União Soviética, ou seja, analisar o percurso histórico da Rússia com os mesmos instrumentos da história dos países europeus.
É por isso que é importante entender a Ideia Russa. No livro, você cita o poeta Fyodor Tyutchev, que escreveu: "A Rússia não pode ser medida com um metro padrão." E ainda Fëdor Dostoevskij que diz: “Pois nós podemos te entender, enquanto tu jamais nos entenderás.” O que é que o Ocidente insiste em não entender sobre a Rússia?
Vê as contradições. Por um lado, afirma-se que a Rússia é incompreensível para os próprios russos, por outro lado, o Ocidente é acusado de não os entender ... Penso que a resposta à sua pergunta é que a Rússia, a ideologia russa de hoje tem raízes profundas e antigas. Se não adquirirmos conhecimento de como os russos veem a si mesmos e ao mundo exterior, nunca teremos condições de lidar com tal diversidade nem de entender a situação atual. Se não a tínhamos entendido antes, o 24 de fevereiro está nos obrigando a fazê-lo.
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“Dugin preencheu um vazio ideológico, mas o regime de Putin tem raízes profundas.” Entrevista com Bengt Jangfeldt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU