20 Julho 2022
Implementar hoje as "quaestiones disputatae" da memória medieval e aplicá-las à os temas mais candentes da ética da vida? É o trabalho dos doze capítulos do livro Etica teologica della vita. Scrittura, tradizione, sfide pratiche (Ética teológica da vida. Escrita, tradição, desafios práticos, em tradução livre) publicado pela Livraria Editora Vaticana (527 páginas, 30 euros).
A reportagem é de Fabrizio Mastrofini, publicada por Settimana News, 15-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Capa do livro "Etica teologica della vita".
Foto: Divulgação
O volume publica as Atas de um seminário de estudos realizado pela Pontifícia Academia para a Vida, que reuniu um grupo de teólogas e teólogos que, em um primeiro momento, elaboraram um "texto básico" amplo e documentado sobre as principais questões relativas à vida humana a partir de visão da ética teológica. O "texto básico" foi então objeto de diálogo e discussão em um seminário de estudos.
Na introdução à obra, assinada por D. Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, destaca-se que “a iniciativa nasceu de uma Pontifícia Academia, instituição que faz parte da Santa Sé; porém nossa reflexão não se limita a explicar textos do Magistério. Nossa intenção foi colocar em diálogo distintas opiniões até sobre temas controversos, propondo muitos pontos de discussão. Portanto, a perspectiva é a de prestar um serviço ao Magistério, abrindo um espaço para a palavra que torne possível e estimule a pesquisa. É assim que interpretamos o papel da Academia, que o próprio Francisco quis também nas questões de fronteira em chave transdisciplinar”.
Cada capítulo examina temas retirados do “texto de base”, seguindo-se as intervenções dos oradores do seminário de estudos, chamados a comentar, inclusive criticamente, vários aspectos.
Doze capítulos: o ponto de partida é uma síntese dos pontos mais relevantes dos discursos e documentos do Papa Francisco. A partir disso, passa-se a examinar o ensinamento sobre a vida na Bíblia à luz do evento cristológico.
Depois um capítulo que interpreta os principais elementos da cultura do mundo em que nos encontramos hoje, o capítulo seguinte aborda criticamente a leitura da tradição magisterial e teológica a respeito do quinto mandamento: não matar. Depois são aprofundados os temas da consciência, da norma e do discernimento moral.
Nesse amplo quadro, situam-se questões relacionadas à origem da vida e ao papel da sexualidade, o sofrimento, a morte, o cuidado com a pessoa prestes a morrer.
Alguns temas específicos, como aqueles do ambiente e da vida (inclusive animal) no planeta, da geração e procriação responsáveis, do cuidado com a pessoa prestes a morrer e das novas tecnologias são abordadas como bancos de ensaio da abordagem geral exposta nos capítulos anteriores.
No final do volume é delineado o horizonte escatológico fundamental revelado pela revelação, indispensável para uma adequada compreensão da vida humana e do seu significado, e infelizmente pouco presente hoje na pregação cristã.
O livro foi apresentado pela Civiltà Cattolica na edição de 2 de julho, com um amplo artigo assinado pelo Pe. Jorge José Ferrer (que também é Acadêmico da Pontifícia Academia para a Vida) que pode ser lido na íntegra no site da revista.
O Pe. Ferrer aprecia em seu conjunto a tentativa de abrir o diálogo entre teologia e ciências e destaca o método de trabalho que remete a um esquema consolidado, na esteira - diz ele - da "mais genuína tradição" das "quaestiones disputatae", para mostrar como hoje é possível uma renovação radical na abordagem das discussões. Nesse sentido, é particularmente interessante a maneira como o padre Ferrer resume os capítulos sobre os temas mais difíceis e controversos da ética teológica da vida, ou seja, a aplicação prática e concreta sobre as questões relativas à consciência e ao respeito pela lei moral. Algumas passagens ilustram tal complexidade.
"Se nos atermos à concepção ‘personalista’ do ser humano, que encontramos nos documentos do Concílio Vaticano II e no magistério pós-conciliar, a vida moral não pode ser entendida como o cumprimento dos deveres impostos por uma ordem impessoal e pré-estabelecida, segundo o paradigma naturalista”. Portanto, “para além das questões terminológicas, é fundamental a consideração de que a autonomia cristã não se identifica com a autonomia individualista da cultura liberal. É uma autonomia-em-relação, porque a pessoa não se realiza num isolamento egocêntrico”. E “a resposta ao chamado de Cristo exige um compromisso que não pode ser plenamente implementado na esfera individual. Vivemos em comunidade, seguimos o caminho junto com os outros, com um empenho comunitário e intersubjetivo. Isso não significa que a verdade do bem moral seja um mero fruto do consenso. E, no entanto, não pode ser negligenciada a dimensão social e histórica em que são articuladas as normas morais”.
A relação entre consciência e lei é importante e delicada. Justamente o padre Ferrer observa que "muitas transformações culturais recentes nesse campo estão em aberta contraposição com as ideias cristãs sobre casamento, família, paternidade e sexualidade".
Nessa perspectiva antropológica, por exemplo, discute-se no livro o impacto na vida dos casais e no plano ético, das diferentes técnicas de fecundação: heteróloga e homóloga, ambas expressamente proibidas pelo recente magistério.
Mas, se a avaliação ética negativa da heteróloga está claramente afirmada no texto base que serve de fio condutor para a discussão, talvez o juízo sobre a homóloga possa ser articulado de outra forma, pelo menos "no ‘caso simples’, que não prevê a formação de embriões supranumerários. Nesse procedimento, a geração não é separada artificialmente da relação sexual, por ser esta, em si, infértil. Pelo contrário, a técnica disponibiliza uma intervenção que permite remediar a infertilidade, sem suplantar a relação, mas sim possibilitando a geração. Não se pode rejeitar a priori a técnica em medicina: deve ser objeto de discernimento, para constatar se cumpre a função de uma forma de cuidado da pessoa”.
Essa “avaliação possibilista da PMA - destaca o padre Ferrer - inscreve-se numa interpretação antropológica mais ampla da relação entre sexualidade, esponsalidade e geração. O argumento apresentado é interessante, pois entende a intervenção médica como ‘terapêutica’, permitindo que a relação conjugal de cônjuges inférteis alcance a plena realização como responsável doadora de uma nova vida, abrindo seu amor à geração de um terceiro. É um raciocínio que, sem dúvida, dará origem a muitas discussões”.
Em todo o caso, argumenta o padre Ferrer, “mesmo sem necessariamente subscrever as posições concretas, consideramos lícito que essa interpretação inovadora surja no contexto da quaestio disputata que, como já foi referido, envolve esse livro. É imprescindível que sejam propostos temas inovadores e ainda debatidos, se quisermos fazer avançar a teologia, e em particular a bioética teológica, que deve estar sempre em diálogo com as realidades mutáveis da vida humana. A quaestio disputata não pretende suplantar o magistério autêntico, mas abrir novos horizontes, que permanecem sempre sujeitos ao juízo final dos pastores, em particular ao magistério do Romano Pontífice”.
Nesse sentido, como D. Paglia ressalta na Introdução, o Papa Francisco foi informado de cada passo do projeto que agora está publicado e acessível.
Ainda no plano das observações críticas, o padre Ferrer assinala que o volume é afetado pela referência a vozes demasiado ocidentais, conclui que é em todo caso "um bom pré-texto para continuar o debate e aprofundamento da teologia ética da vida, que não pode permanecer agarrada ao passado. O Magistério da Igreja e a teologia moral, que mantêm entre si um círculo virtuoso, têm o dever de aprofundar a mensagem evangélica e a sua inesgotável novidade, para responder aos desafios de cada momento histórico ao serviço do Povo de Deus e da missão evangelizadora da igreja".
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Ética teológica da vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU