21 Agosto 2018
Uma “cultura dos cuidados paliativos” pode combater fortemente toda forma de narcisismo individualista, trazendo novamente para o centro do interesse a dignidade de cada pessoa humana em todo o curso da sua existência e fazendo com que a medicina redescubra a sua vocação humanista original.
A opinião é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Rocca, n. 8, 15-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A recente aprovação da lei sobre o fim da vida [na Itália], que definiu com precisão as condições para o exercício do consentimento informado e introduziu o testamento biológico (ou as Disposições Antecipadas de Tratamento), levantou (e não podia deixar de levantar) uma série de reações contrastantes, que provocaram o nascimento de muitas intervenções de reflexão e de iniciativas voltadas a identificar as possíveis formas de sensibilização e de ação.
A Pontifícia Academia para a Vida também se moveu nessa direção, promovendo, no início de março, um importante congresso de estudo, com a participação de profissionais de todo o mundo pertencentes a diversas confissões religiosas.
O tema escolhido foi, nesse caso, o dos “cuidados paliativos”, um importante tipo de tratamento, que pode ser o caminho para evitar, por um lado, a obstinação terapêutica e para criar, por outro, as condições para redimensionar a demanda do recurso à eutanásia.
A crescente demanda de legalização desta última, de fato, se deve, para além das experiências cada vez mais frequentes de formas de prolongamento artificial da vida, que a destituem da sua dignidade, também do abandono do doente incurável, que, por sua vez, precisa de um forma de acompanhamento que o ajude a enfrentar uma situação particularmente difícil – a mais difícil da vida –, aquela que o leva à última meta.
Os “cuidados paliativos” destinam-se a esse propósito; eles são uma modalidade de “cuidar” do doente até o seu fim natural. Combatendo os medos da solidão e da morte mediante formas de comunicação autêntica e anulando ou aliviando a dor, eles tornam mais aceitáveis os estados de grave sofrimento, vivenciados por um número de doentes terminais em constante crescimento – calcula-se que são cerca de 40 milhões em todo o mundo aquelas pessoas que precisariam de tais cuidados – por causa da elevação da idade média da população e do crescimento paralelo de doenças crônicas e neurovegetativas.
Para compreender a importância dessa tipologia de intervenção que – como observava oportunamente o cardeal Pietro Parolin na mensagem enviada ao congresso da Santa Sé – é “uma redescoberta da vocação mais profunda da medicina”, é necessário se concentrar em dois aspectos da questão que merecem ser considerados.
O primeiro põe em causa a estruturação da intervenção, que pressupõe, acima de tudo, como fator fundamental, o envolvimento da rede familiar e, por isso, torna necessária o fornecimento de um apoio qualificado e ampliado. Essa é a razão da presença – dentro da equipe que presta o serviço – do médico, do psicólogo, do assistente social, das enfermeiras, dos voluntários etc.; todas figuras que têm a função de garantir uma assistência ao doente, como pessoa que precisa não só de um suporte físico, mas também de ser ajudado – é importante, a esse respeito, a contribuição do psicólogo e do voluntário – a elaborar a própria condição de sofrimento; e a de fornecer, ao mesmo tempo, uma série de serviços voltados a apoiar todo o círculo familiar, particularmente provado pela presença de um ente querido que vive na expectativa da morte.
O segundo aspecto consiste na terapia da dor, que, nas últimas décadas, fez progressos notáveis, contribuindo para humanizar consistentemente o status dos doentes com a restituição de uma qualidade de vida aceitável. Derrotar (ou pelo menos aliviar) o sofrimento é um dos objetivos principais do exercício da atividade médica; por isso, o uso dos analgésicos não é apenas eticamente legítimo, mas também é necessário e é o momento mais significativo dos cuidados paliativos. É importante a capacidade de dosar adequadamente as intervenções (não excluindo aquelas que agem sobre o estado de consciência como a sedação profunda), proporcionando-as às exigências da situação e levando em séria consideração a sensibilidade diversificada dos pacientes.
Os benefícios de tal atividade curativa podem ser resumidos na restituição da dignidade à pessoa do doente. O conceito que está na base das intervenções preparadas para esse tipo de cuidado é – como se mencionou – o da proporcionalidade.
Ele implica tanto a superação da recusa de tratar, considerando o doente com mau prognóstico (portanto, incurável) como incurável – tal identificação perigosa não é incomum também no âmbito médico – assim como, ao contrário, a implementação de intervenções que não têm outro efeito senão o de prolongar a agonia inutilmente.
A adoção desse caminho está ligada ao reconhecimento dos limites tanto da natureza humana quanto da medicina. O domínio que o ser humano adquiriu sobre o mundo muitas vezes o leva a presumir a própria onipotência, perdendo, de fato, o contato com a realidade.
Isso também se verifica no campo médico, em que as conquistas científicas e tecnológicas, às vezes, alimentam uma forma de prometeísmo que leva a perseguir obstinadamente resultados cada vez mais avançados, transformando o paciente em uma cobaia para o uso da própria pesquisa ou da satisfação do próprio desejo narcisista.
Os cuidados paliativos, portanto, têm consequências positivas também no campo de gestão da atividade médica, em que eles se revestem de uma importante função pedagógica; isto é, eles ajudam a redimensionar os objetivos autorreferenciais e a fazer as contas realisticamente com a realidade, atribuindo o primado ao bem do doente e vencendo a tentação de dar vazão a tratamentos destinados a provocar sofrimentos inúteis nele.
Infelizmente, apesar do amplo reconhecimento recebido no plano científico, os cuidados paliativos ainda são um fenômeno elitista: em cerca de 100 milhões de pessoas que precisariam se submeter a eles, apenas uma mínima parte – estimada em torno de 2% – tem hoje a possibilidade de fazê-los.
Em muitos Estados do Sul do mundo, esses tratamentos estão bem longe de serem praticados. Então, é importante se esforçar para que toda a população mundial tenha essa oportunidade garantida, derrubando as desigualdades existentes entre as classes sociais e entre os povos.
Mas isso não é suficiente. Ao mesmo tempo, é necessário desenvolver uma ampla consciência do significado dessas práticas. Trata-se de dar vida, em outras palavras, a uma “cultura dos cuidados paliativos”, que envolva toda a cidadania, ainda que em níveis diferentes, de acordo com as competências e os compromissos de cada um. Uma cultura que combata fortemente toda forma de narcisismo individualista, trazendo novamente para o centro do interesse a dignidade de cada pessoa humana em todo o curso da sua existência e fazendo com que a medicina redescubra a sua vocação humanista original.
A busca deste último objetivo também implica – este é um aspecto nada secundário – que se deve oferecer uma formação específica ao pessoal médico e às outras profissões da saúde – recentemente, a Conferência Permanente dos presidentes do Conselho dos cursos de graduação em Medicina tornou obrigatórios, na Itália, os estágios nas estruturas que praticam os cuidados paliativos. Mas também implica que se forneça uma preparação adequada às outras figuras profissionais envolvidas e ao próprio associacionismo.
E exige, por fim, que se proceda a uma sensibilização cada vez mais intensa dos vários atores sociais e políticos, para que se comprometam a criar estruturas de saúde que garantam um serviço – o dos cuidados paliativos – que representa um fator importante de crescimento civil.
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Cuidados paliativos: para além da eutanásia e da obstinação terapêutica. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU