31 Julho 2017
Leo Pessini, padre camiliano, analisa o caso dramático de Charlie Gard, bebê que acaba de falecer, em Londres. Trata-se de um caso complexo e inusitado do ponto de vista científico e da discordância de valores éticos e opções ético-legais.
Leo Pessini, brasileiro, atualmente reside em Roma e é o atual Superior Geral dos Camilianos. Pós-doutor em bioética pelo Instituto James Drane da Universidade de Pensilvânia (EUA). Autor de inúmeras publicações no âmbito da bioética, humanização dos cuidados da saúde, cuidados de final de vida, pastoral e espiritualidade em saúde.
O autor, depois de descrever a complexidade do caso, aponta sete questões éticas chaves.
Estamos diante de um caso dramático pela sua complexidade. Inusitado do ponto de vista científico, pela raridade da doença de origem genética, e pelo conflito e discordância de valores éticos e opções ético-legais a seguir nesta batalha judicial em que se transformou o caso, entre os pais de um bebê, Charlie, de um lado, e de outro lado o sistema médico-hospitalar e legal britânico, unidos numa outra direção.
Presenciamos uma comoção e repercussões midiáticas internacionais, sem precedentes e que provoca pronunciamentos de Presidentes de vários países, ministros de Estado, políticos e inclusive o Papa Francisco. Não bastasse isso nos noticiários internacionais e nas redes sociais, assistimos inúmeras manifestações pela Europa e em muitas outras partes do mundo ocidental de organizações que levantam sua voz, em favor de salvar a vida de um bebê.
Trata-se do menino inglês Charlie Gard, que nasceu em 4 de agosto de 2016, em Londres, e dois meses depois de seu nascimento foi internado num hospital com uma doença genética raríssima, com características de ser intratável e incurável. Neste momento em que relatamos os detalhes dos principais lances deste caso, Charlie acaba de morrer, em 28 de julho de 2017, por decisão da justiça britânica, numa clínica de cuidados paliativos em Londres. Até então ele estava internado no hospital pediátrico – Great Ormond Street Hospital – um centro renomado de excelência para estudos, pesquisas e cuidado de pacientes com doenças mitocondriais, que ganhou a causa judicial em todas as instâncias judiciais do Reino Unido e também na corte suprema Europeia, de desligar os aparelhos que mantêm o pequenino bebê em vida.
Seus pais, Chris Gard e Connie Yates, discordaram radicalmente desta decisão judicial e buscaram apoio para transferi-lo para outro hospital ou para casa, para que ele tivesse acesso a uma terapia “experimental” que estaria disponível nos Estados Unidos, ou mesmo aceitar a oferta e transferir o pequeno Charlie para o Hospital Bambino Jesu, na Itália, do Vaticano, que se dispôs a acolhê-lo.
O papa Francisco se manifestou via Twitter, afirmando que “Defender a vida humana, sobretudo quando é ferida pela doença, é um compromisso de amor que Deus confia a cada ser humano”. O presidente dos EUA também se pronuncia e afirma que "se pudermos ajudar o pequeno Charlie Gard, como nossos amigos no Reino Unido e o Papa, ficaríamos felizes de fazê-lo", escreveu Trump. A repercussão internacional do caso fez com que a premiê britânica, Theresa May, se manifestasse afirmando confiar que o hospital onde Charlie está internado "levará em consideração quaisquer ofertas ou novas informações" que possam beneficiar o bebê. Jornais europeus e italianos dedicam páginas inteiras ao caso, com fotos dos atores envolvidos, com entrevistas e artigos de especialistas em direito, medicina, bioética, filósofos e teólogos, entre outros profissionais. Na Itália, jornal da Conferência Episcopal Italiana “Avvenire” traz a seguinte manchete: “Charlie, símbolo da cultura do descarte” (06/07/2017).
No Brasil, lemos a repercussão na Folha de São Paulo (09/07/17), num artigo intitulado “Desolação”, de autoria de Hélio Schwartsman. O articulista não morre de amores pela bioética, definindo-a apressada e superficialmente como “a mais depressiva das especialidades filosóficas” visto que “seus manuais são uma coleção de situações médicas trágicas que geram dilemas sem solução”. E neste pessimismo refinado conclui que “o caso do bebê Charlie Gard ilustra isso com perfeição”. O articulista levanta três argumentos que não deixam de ser chaves no caso, qual seja, investir até quando, existe um limite? Não devemos insistir em tratamento fúteis, atenção aos custos e que a justiça não deveria invadir a intimidade familiar, assumindo a responsabilidade legal, que não deveria ser tolhida dos pais. Schwartsman conclui o seu pensamento, num exercício reflexivo em chave ideológica pessimista, mais que propriamente de bioética, prevendo que neste caso “não haverá final feliz” e lembrando-nos de “um princípio heurístico na sempre triste bioética, é o de que o respeito à autonomia do paciente e seus familiares é quase sempre a resposta menos ruim”.
Grupos de manifestantes diante do hospital e dos portões do palácio de Buckingham, em Londres, gritam “Salve Charlie Gard”, ao lado de uma bandeira em que estava escrito: “Assassinato!”. Enfim estamos diante de um circo trágico de fatos, e o bebê foi transformado praticamente em “prisioneiro” do hospital, em que os pais perdem o chamado “poder pátrio” de decidir a respeito de seu filho! Aprofundemos a seguir detalhes desta dramática situação.
Charlie tem uma doença genética e hereditária raríssima. Até o presente momento temos apenas 18 casos comprovados cientificamente no mundo, segundo a publicação científica "Neuropediatrics". Charlie é o 19º a ter esta doença, que se caracteriza por uma mutação nas duas cópias do gene RRM2B, situado no cromossomo 8, e, portanto, dentro do núcleo de cada célula de Charlie.
Este gene é responsável por produzir uma enzima cuja função principal é auxiliar no processo de duplicação de outro tipo de DNA que temos na célula, porém fora do núcleo, dentro das organelas chamadas mitocôndrias. Se RRM2B não produz esta enzima, o DNA mitocondrial não consegue se dividir. É o que os médicos chamam de Síndrome de Depleção (perdas) Mitocondrial.
As mitocôndrias são as fábricas de energia das células. Quando elas funcionam mal, o organismo todo sofre uma espécie de paralisia total, especialmente os tecidos que mais precisam de energia, o cérebro e os músculos. Importante ressaltar que a forma de Síndrome de Depleção Mitocondrial que Charlie tem, a Encefalomiopatia (encéfalo = dentro da cabeça; mio = músculos), de início precoce, é a mais grave de todas.
No caso da doença de Charlie, cérebro, músculo, assim como os rins, fígado e coração já estão profundamente comprometidos. Charlie já tem uma alteração muito grave nas células cerebrais e musculares. A alteração cerebral impede Charlie de se movimentar, de ouvir, de enxergar bem, de se alimentar espontaneamente e provoca graves e repetidas convulsões.
A alteração nos músculos o impede de fazer movimentos, não só nos braços, nas pernas, e nos músculos da face, mas também impede o músculo diafragma, responsável pela respiração, de funcionar sozinho. Charlie necessita, desde os dois meses de vida, de um aparelho para que possa respirar e outro para se alimentar. Se estes aparelhos forem desligados, ele morrerá em pouquíssimo tempo, questão de horas. Segundo informam os médicos, os outros dezoito pacientes que apresentaram a mesma doença de Charlie, ou morreram antes de completar seis meses de vida, ou foram mantidos vivos por mais um pouco de tempo, graças à utilização de aparelhos como aqueles a que o pequeno Charlie está conectado.
Infelizmente as notícias que temos neste momento histórico da ciência médica não são tão alvissareiras. Os médicos afirmam que não existe nenhum tratamento disponível atualmente para este tipo raro de doença genética hereditária. Para uma forma parecida da doença, mas que afeta somente os músculos e não o cérebro, existe um tratamento experimental, desenvolvido nos Estados Unidos, que aparentemente melhorou a qualidade de vida e sobrevida de alguns pacientes. Mas a forma da doença que Charlie tem, causada por mutação no gene RRM2B, é reconhecidamente muito mais grave do que a forma para qual este tratamento experimental já foi utilizado, em casos ocorridos por mutação no gene TK2.
Dos outros 18 pacientes que possuem doença idêntica à de Charlie, nenhum se submeteu a este tratamento. Consequentemente não existe nenhuma evidência científica de existir qualquer benefício: para a forma da doença específica de Charlie Gard, este medicamento não foi experimentado sequer em animais, portanto, estamos ainda numa fase bastante rudimentar e experimental, em que Charlie seria o primeiro experimento, em outras palavras, na verdade a primeira cobaia”, afirmam os entendidos da área. As possibilidades de que este medicamento possa aumentar a sobrevida ou trazer um benefício importante na qualidade de vida de Charlie seria praticamente nula, próxima de zero. O próprio médico estadunidense, estudioso desta terapia utilizada apenas para outras formas de Síndrome de Depleção Mitocondrial, afirmou que, no caso de Charlie, ela simplesmente seria inútil.
Infelizmente, o Brasil apresenta graves deficiências no âmbito dos serviços públicos de saúde. São 162 milhões de brasileiros que dependem do SUS, para seus cuidados básicos de saúde, e que funciona muito precariamente. Ainda estamos longe de termos uma Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas acometidas com Doenças Raras de origem genética. Um grande número destas crianças morre sem sequer ser diagnosticada. Isto se torna um obstáculo para que tenhamos serviços de Aconselhamento Genético aos familiares, vítimas deste tipo de enfermidade. Isto faz com que falte informação correta em termos de prevenção, e propicia a multiplicação de novos casos. Os pais de Charlie têm 25% de chance de vir a ter outro filho com a mesma doença, em cada gestação futura.
A avaliação dos médicos do pequeno Charlie é a de que “prolongar a vida do bebê somente provocaria mais sofrimento”, como vimos anteriormente. Por outro lado, os pais defendiam que o bebê não estava em sofrimento, e que ele deveria passar por tratamentos para melhorar a sua condição. Eles criaram uma campanha de financiamento coletivo no site GoFundMe e levantaram US 1,7 milhão de dólares (cerca de R$ 5,32 milhões de reais), de 85 mil doadores, para realizar a terapia experimental nos EUA.
— “Se eu pensasse por um momento que o Charlie estava sentindo dor ou em sofrimento, eu não lutaria para que sua vida fosse estendida” — disse Connie e solicitou que “confiem em nós, os pais, nós não deixaremos ele sofrer”. Segundo o seu relato, Charlie “responde” a estímulos, apesar de ter apenas 1% a 2% da musculatura normal. “Ele não tem boa qualidade de vida, mas ele precisa dessa chance, a chance de melhorar”, implorou a mãe.
No tribunal, o juiz Francis afirmou que tomou a decisão com “pesar no coração”, mas com “a convicção completa para os melhores interesses de Charlie” de que os médicos do hospital devem “retirar todos os tratamentos para a manutenção da vida e transferir (o bebê) para os cuidados paliativos que permitam a Charlie morrer com dignidade”.
Segundo o magistrado, o transporte de Charlie para os EUA “poderia ser problemático, mas possível”. Entretanto, a terapia experimental proposta seria “um território desconhecido”, já que ela ainda não foi testada nem mesmo em modelos animais.
“Se as funções cerebrais de Charlie não podem ser melhoradas, como todos concordam, então como ele pode ficar melhor do que está agora, que é uma condição que os próprios pais acreditam que não pode ser sustentada?”, questionou Francis. “Eu quero agradecer a equipe de especialistas pelo extraordinário cuidado que forneceram à família. Mais importante de tudo, eu quero agradecer aos pais do Charlie pela campanha corajosa e digna em seu nome, mas mais do que tudo pagar um tributo a dedicação absoluta ao seu menino maravilhoso, desde o dia em que ele nasceu”.
Na seção judicial do dia 10 de julho, no tribunal, o advogado da mãe de Charlie explica perante a corte que segundo um médico americano a Terapia experimental tem 10% de possibilidade de sucesso. E Connie – a mãe – se volta ao juiz em voz alta e diz. “É 10% - se fosse seu filho o senhor não tentaria?”. O Juiz responde que “não existe ninguém aqui nesta sala que não queira salvar Charlie” e conclui dizendo que a sua função neste caso é de “aplicar o que a lei prescreve”.
Levando-se em conta estes elementos contextuais ligados à doença de Charlie, vejamos agora os valores humanos e éticos que estão conflitando, neste drama nas fronteiras da vida e da morte deste bebê, que envolve a justiça, o Estado, médicos, Direção do Hospital e familiares, no caso os pais de Charlie. Os médicos pediatras do hospital londrino Great Ormond Street argumentam que “prolongar artificialmente a vida de Charlie só tem trazido sofrimento a todos e, em especial, ao pequeno Charlie”. Os pais argumentam que “enquanto há vida, há esperança e mesmo que esta seja mínima, nós continuaremos a lutar”.
Numa dramática batalha na justiça, durante os meses de abril a julho de 2017, os pais de Charlie, Chris Gard e Connie Yates, perderam a ação que tentava ganhar mais tempo para levar o menino aos EUA e, lá, submetê-lo a um possível tratamento experimental. As Justiças britânica e europeia (Suprema Corte Europeia de Direitos Humanos) decidiram que o hospital deveria suspender o tratamento que o mantinha vivo, uma vez que médicos asseguraram que a criança não tinha nenhuma chance de sobreviver e autorizaram o hospital Great Ormond Street for Children a encerrar o tratamento.
O hospital tinha planejado desligar os aparelhos de respiração e desconectar os tubos de alimentação que mantêm Charlie em vida, na data de 30 de junho. Devido à alta mobilização popular e intensa repercussão na mídia internacional em muitos países, decidiu adiar o procedimento, sem dar mais detalhes sobre quando isso ocorrerá. O porta voz do hospital laconicamente declara que: "Junto com os pais de Charlie continuaremos a dar os cuidados de que ele necessita para dar a ele mais tempo com a família".
Na véspera do dia 30 de junho, os pais de Charlie divulgaram um vídeo dizendo que os aparelhos seriam desligados naquele dia. "Ele tem lutado até o fim, mas nós não tivemos permissão para continuar a lutar por ele", disse Gard. "Nós não podemos sequer levar nosso filho para morrer em casa."
O casal afirmou que o hospital não queria "dar à família" mais tempo para dizer adeus. Nesta sexta-feira, Connie afirmou que o hospital concordou em dar esse tempo a eles. "Escolhemos levar Charlie para morrer em casa", disse sua mãe em um vídeo postado no YouTube. "E temos dito por meses que é o que queremos. Esse é nosso último desejo, se fosse para ser assim o jeito que ele iria embora. E nós prometemos ao nosso garotinho todos os dias que levaríamos ele para casa, porque pensamos que essa era uma promessa que poderíamos manter."
O pai de Charlie afirmou em outro vídeo que eles queriam levar o bebê para casa, dar um banho nele e colocá-lo para descansar em um berço no qual ele nunca dormiu. "Isso agora nos foi negado", disse Gard. O casal disse que a administração do hospital afirmou que não poderia providenciar o transporte de Charlie para casa, mas mesmo quando os pais se ofereceram para pagar por isso, eles foram informados que, na verdade, essa não era uma opção.
Ante a comoção e repercussão internacional do caso, o hospital adiou a data prevista para o desligamento dos aparelhos e solicitou à Suprema Corte a reabertura do caso "para avaliar novas evidências a respeito de um possível tratamento". Connie Yates, a angustiada mãe de Charlie, afirma: "Espero que eles possam ver que há mais chances [de salvamento] do que se pensava anteriormente e que eles confiem em nós enquanto pais e confiem nos outros médicos".
O fato mais inusitado neste caso é que, ao contrário da vontade dos próprios pais, o Estado inglês decidiu que não se deve mais prolongar a vida de Charlie. Teria o Estado Inglês o direito de tomar esta decisão acima da vontade dos próprios pais? A Suprema Corte inglesa decidiu contra a vontade dos pais, acreditando que o melhor interesse de Charlie é que ele possa morrer com dignidade, ao invés de se submeter à terapia experimental nos Estados Unidos. Uma decisão contra a vontade dos pais, isto não seria uma eutanásia de Estado?
A prática da ortotanásia ocorre quando o profissional médico deixa de intervir com o objetivo de encontrar a cura, uma vez que esta é impossível de obter, pois a pessoa se encontra em fase terminal e, consequentemente, somente espera a evolução natural dos fatos da enfermidade. Independente do termo legal a ser usado, no “caso Charlie Gard”, tendo a família a vontade de prolongar a vida, entendo que deva ser respeitada, pois são eles os detentores da vontade de Charlie, que não tem possibilidade de manifestar sua vontade. Desconectar os aparelhos que ajudam o pequenino Charlie a se manter vivo, que o auxiliam a respirar e se alimentar, segundo a nossa legislação brasileira e diretrizes de éticas dos médicos, não é permitido, pois se trataria de um caso de eutanásia.
Qual seria a alternativa que poderia trazer menos sofrimento e preservar a dignidade de vida deste pequenino ser humano? Desligar os aparelhos e manter apenas suporte paliativo, seria eutanásia ou o melhor interesse do paciente? Neste caso do pequeno Charlie Gard, o Estado tem o direito, através de decisão judicial, de decidir procedimentos, sem a autorização dos pais, ou melhor, não levando em conta, simplesmente ignorando, a vontade dos pais? O fato de que o hospital estaria proporcionando cuidados paliativos após desligar os aparelhos não configuraria uma eutanásia, mas sim o que se conhece na Medicina Legal como “ortotanásia”? A quem cabe o direito de decidir a respeito da vida e morte de alguém, especialmente quando se trata de um bebê?
Questões culturais também têm um papel importante neste caso. Nos países anglo-saxões, por exemplo, como no caso em discussão, o Estado é sempre mais invasivo frente às escolhas de vida. O ex-ministro da Saúde da Itália, Renato Balauzzi, afirma que o argumento fundamental neste caso é “agir no melhor interesse do bebê”. Se este caso tivesse acontecido na Itália, não teríamos chegado a esta batalha judicial. Teria sido mantida a ventilação artificial, e respeitada a vontade dos pais. Bem diferente do caso Englaro, em que a paciente tinha expressado em vida a sua vontade”.
Chega o momento do adeus de Charlie: a mensagem angustiada dos pais!
Depois de uma batalha judicial que provocou comoção e debate mundial sobre quem tem o direito moral de decidir o destino de uma criança doente, em fase terminal, em 28 de julho o pequeno Charlie Gard é transferido do hospital Great Ormond Street para uma unidade de cuidados paliativos e morre após ter os aparelhos de sustentação de vida desligados. O hospital onde se encontrava rejeitou a insistente solicitação de seus pais para transferir a criança para a sua casa, alegando que “não seria algo prático”, devido aos equipamentos necessários para o bebê.
"Nosso pequeno e lindo filho se foi. Estamos muito orgulhosos de você, Charlie", expressou-se num comunicado a mãe Connie Yates. Pouco antes, os pais se preparavam para passar os últimos momentos ao lado o filho. Os pais do bebê expressaram o desejo de que ele fosse mantido vivo até próximo do dia 4 de agosto, quando Charlie completaria seu primeiro aniversário. “O hospital rejeitou nosso último desejo”, disse Connie depois de o Tribunal Superior de Justiça rejeitar estender o prazo para o desligamento da assistência respiratória do bebê para ficar mais tempo com ele.
"Apesar de nós e nossa equipe jurídica trabalharmos incansavelmente para organizar esta tarefa quase impossível, o juiz ordenou contra o que decidimos e concordou com o que o hospital pediu. Isso, consequentemente, nos dá muito pouco tempo com nosso filho", falou a mãe de Charlie. Esperamos que a grande maioria das pessoas não passem pela experiência que nós passamos, sem ter nenhum controle sobre a vida e a morte do nosso filho”, disse a mãe de Charlie.
Um comunicado dos pais de Charlie afirma: “Queríamos somente estar em paz com nosso filho, sem hospital, sem advogado, sem imprensa. Apenas um momento privilegiado com Charlie, longe de todo o resto, para dizermos adeus com todo o amor possível".
O hospital afirmou que os médicos "tentaram absolutamente tudo" para responder aos pedidos dos pais, mas ressaltou que correr "o risco de fazer com que Charlie termine seus dias de maneira imprevista e caótica é impensável para todos os envolvidos e deixaria os pais sem os últimos instantes com ele".
O Papa Francisco ao receber a notícia da morte do pequenino bebê inglês, postou no Twitter uma mensagem, na qual diz: “confio o pequeno Charlie ao Pai e rezo por seus pais e por todos que o amaram”. O vice-presidente Norte-americano, Mike Pence, também se manifestou: “Entristecido por saber do falecimento de Charlie Gard”.
Pela lei britânica, quando a família e os médicos discordam dos rumos do tratamento, os tribunais devem prezar pelos direitos da criança, mesmo quando os pais têm outro ponto de vista, e neste caso nomeia-se um tutor legal para o doente (guardian). É o que ocorreu com Charlie. A interpretação do estado de saúde pela Corte suprema era de que Charlie não tinha chance de sobrevida com nenhum tratamento, a ordem foi de desligar os aparelhos de suspensão de vida, isto é, o respirador e interrupção de fornecimento de nutrição e hidratação.
Não existe um final feliz nesta história, de um lindo bebê, que infelizmente nasceu com uma doença de origem genética raríssima, de caráter incurável neste momento histórico, em que a ciência médica somente pode oferecer neste momento praticamente nada em termos de cura a não ser “duvidosas” terapias experimentais. Ao ouvirmos os pais dizerem que apenas “desejavam estar em paz com o filhinho, sem hospital, sem advogado e sem imprensa”, sentimos claramente que a combinação destes elementos tiraram o protagonismo dos pais como aqueles que teriam o direito afinal de decidir sem interferências. Medicalizou-se e judicializou-se o cuidado, a ternura, o amor, a esperança do milagre. A decepção dos genitores de Charlie é evidente, ao sentirem na pele seu filhinho ser praticamente “sequestrado” pelo sistema de saúde, que se mostrou eficientíssimo na defesa de seus interesses legais, mas certamente não o valor maior que seria a vida de Charlie e o desejo dos pais.
A seguir apresentamos alguns valores éticos básicos que norteiam nossa visão ética, fundamentada no humanismo cristão católico, que podem iluminar o sofrido e necessário “processo de discernimento” a respeito do melhor caminho a seguir, que cause o mínimo de sofrimento, prejuízo em todos os atores envolvidos, e que possa sobretudo respeitar a dignidade intrínseca deste pequeno ser humano.
Estamos diante de uma situação dramática de colorido “cinza”, não mais “preto ou branco”, daí a necessidade de um discernimento a respeito dos interesses e valores éticos em conflito! Vamos aos pontos críticos da reflexão bioética com indicação de algumas perspectivas de valores a serem respeitados:
1) “Charlie é o símbolo da cultura do descarte”, foi a manchete de um jornal a respeito do caso. Sim, milhões de bebês e crianças morrem no mundo por causa da pobreza, desigualdades frente a oportunidades de vida e falta de condições mínimas de cuidados de vida e saúde. A marca primeira de vida, quando chegam a nascer, é a de rejeição, do descarte e são condenados à morte. Estamos diante da prática da mistanasia, morte sofrida, não apenas de alguns mas de multidões por causa do mínimo indispensável para se viver. A indiferença crescente em relação a este verdadeiro “holocausto silencioso” é espantosa. Não deixa de ser um lance de esperança esta sensibilidade para o pequenino Charlie, ao tentar salvá-lo das garras da justiça, da medicina e do próprio Estado. Mas não podemos esquecer das centenas de milhares de “Charlies” quem nem nome ganham e são descartados como se nunca tivessem existido! Isto é, sem dúvida alguma, um sinal de que nossa civilização envelheceu moralmente.
2) Perante um diagnóstico médico-científico de “incurável” e “intratável”, ou seja, “inexistência de um tratamento de cura”, não significa que não se possa continuar a cuidar da pessoa, com um infausto diagnóstico como este de Charlie. “Incurável” não pode ser sinônimo de “não ser possível de ser cuidado”. Como fomos cuidados para nascer, necessitamos igualmente de cuidados para o partir desta vida. E aqui a ética do cuidado se chama cuidados paliativos. Filosofia de cuidados integrais e holísticos da pessoa, nas suas necessidades físicas (controle da dor e alívio do sofrimento), psíquicas, sociais e espirituais. Não visa abreviar a vida (=eutanásia), muito menos prolongá-la inutilmente, submetendo-a a tratamentos fúteis (=distanásia), mas respeitar o processo natural até o último suspiro de vida. Lembramos Cicely Saunders, médica inglesa, pioneira dos cuidados paliativos modernos, que do alto de sua ciência e sapiência dizia que “o sofrimento somente é intolerável quando não é cuidado”. Um procedimento científico, alinhado com um cuidadoso respeito pela vida, enquanto proporciona cuidados paliativos, também poderia, havendo chances de melhoria de qualidade de vida, experimentar terapias alternativas.
3) Em casos em que estamos diante de uma pessoa em fase terminal e que sente muita dor e sofrimento, o recurso à sedação, para que a pessoa não sofra, se faz necessário. O indigno é deixar a pessoa a sofrer. Esta sedação poderá comprometer por vezes o sistema respiratório e consequentemente antecipar o final de vida física. Neste caso a intenção é a de aliviar a dor e não de abreviar a vida, mas tem como consequência indireta a “abreviação da vida”. Isto não é eutanásia, segundo a ética católica estamos diante de tradicional princípio ético do duplo efeito. Trata-se de uma intervenção que provoca, como consequência, dois efeitos: um efeito desejado, qual seja o do “alívio da dor e sofrimento” e o outro denominado “indireto” (“indesejado e tolerado”) que seria um desfecho prematuro da vida nestas circunstâncias. A utilização da UTI – Unidade de Terapia intensiva para o paciente em situação crítica, isto é, que tem real chance de recuperar a saúde. Não deveria ser para o paciente em fase final, que se beneficia dos cuidados paliativos.
4) A respeito da interrupção de alimentação e água. A alimentação artificial mediante tubos nasogástricos, em nenhum caso poderá ser considerada como terapia, ou tratamento. Não é tal, devido à artificialidade do meio usado para administrá-la, dado que não se considera terapia, por exemplo dar leite ou água a um neonato com o auxílio de uma chupeta ou uma colherinha. Não é terapia, devido aos processos por meio dos quais estes alimentos são produzidos, já que não se considera terapia o leite em pó, cuja produção igualmente depende de um longo e complexo procedimento industrial mecanizado.
A nutrição parenteral não é uma terapia, ainda que seja prescrita pelo médico e seja administrada “artificialmente”. Portanto interromper o fornecimento de água e alimentação não é como suspender uma terapia, mas deixar alguém morrer de fome e sede, alguém num estado de extrema vulnerabilidade e que nem tem condições de se alimentar por si mesmo. Prover alimentação, água e oxigênio, a uma pessoa nestas circunstâncias – três elementos fundamentais e básicos sustentadores da vida humana - é um imperativo que a solidariedade humana nos obriga, não pode ser visto como “um tratamento ou uma terapia médica opcional”.
5) Até quando investir ou prolongar a vida sem agredir? Existiriam limites a serem respeitados? Questão dificílima e complexa, cuja abordagem exige um processo de discernimento ético lúcido e cuidadoso. Se estamos diante de um diagnóstico médico de terminalidade de vida, eticamente falando, deve-se evitar a chamada “obstinação terapêutica”, ou seja, a prática da distanásia. Estas intervenções fúteis e inúteis somente acrescentariam mais sofrimento que vida propriamente dita, tentando encontrar a “cura” da morte, já que esta é vista como sendo uma doença que poderíamos encontrar cura! Não seria muito mais saudável abraçar carinhosamente com sabedoria nossa finitude humana? Existem limites que, ultrapassando-os estamos agredindo a “dignidade” do ser humano e fugindo ao bom senso! Aqui surge a necessidade de comitês de bioética, multidisciplinares, em que pareceres de vários pontos de vista para além do científico e jurídico, podem ser luz para sairmos deste pantanal de incertezas.
A terapia experimental deveria ser testada em Charlie? Seria benéfica ou não? A pesquisa sem critérios éticos pode ser uma prática disfarçada de distanásia. Chega um momento que a decisão deixa de ser exclusivamente técnico-científica ou jurídica, para ser uma sofrida “decisão a respeito de valores humanos”, em que a família não pode ser alijada, ou deixada de lado, como no caso de Charlie.
6) Quem é que decide num caso como este, do bebê Charlie? Para nós de cultura latina, que valorizamos mais os sentimentos e a dimensão do coração, e da família, a decisão da corte britânica de tirar o poder dos pais de decidir a respeito de seu filhinho, não deixa de ser uma violência, não podemos concordar. Neste caso quem decide a respeito da vida através de um consenso médico, hospital e justiça, é o Estado. No caso Charlie, os juízes, neste momento, estão assumindo o lugar dos pais. A vontade dos pais é importante, mas em última instância cabe à justiça a decisão final. Eles nem sequer são autorizados a transferir para outro hospital, como tentaram. Fiorella Nash, uma especialista inglesa de bioética, avalia esta solução como injusta, e afirma que “os nossos filhos não pertencem ao Estado e este não deveria usurpar um direito dos pais”. E acrescenta que “esta abordagem é típica dos países anglo-saxões, talvez também porque a taxa de divórcios é muito alta e com frequência cabe aos tribunais e Serviços Sociais do Governo decidirem a respeito da sorte das crianças”.
7) A história dramática do pequeno Charlie demonstra que estamos diante de uma realidade em que somos desafiados a implementar o chamado “cuidado respeitoso”. A tão decantada e celebrada autonomia (ou soberania) individual – valor importante para nós adultos e conscientes - que embasa muitas solicitações de eutanásia ou de suicídio assistido em alguns países do hemisfério norte, aqui simplesmente inexiste. Frente a situações de extrema vulnerabilidade, o que temos de priorizar são ações de proteção e cuidado, e não o contrário. Em nome da autonomia, facilmente promovemos ações de desproteção e de indiferença, e também por não querer aparentar paternalismo. A lei neste sentido, que embasa uma decisão judicial, por vezes não deixa de ser a legalização desta indiferença. Nos extremos, de um lado temos a pretensa “autonomia absoluta”, e de outro o “paternalismo infantilizante”. Nem um, nem outro extremo são danosos, desejamos uma abordagem de cunho beneficente e sensível, que assume de forma responsável e samaritana situações de máxima vulnerabilidade humana, visando implementar um cuidado respeitoso.
Para concluir, diríamos que é esta história dramática e a imagem desta família, dos pais - Chris Gard e Connie Yates - deste lindo bebê Charlie Gard, frágil e em situação de extrema vulnerabilidade de saúde, vivendo graças ao auxílio de instrumentos para respirar, alimentar-se e hidratar-se, que clama por cuidados integrais e solidariedade humana. Este bebê despertou e desperta muita sensibilidade no mundo para proteger a vida desprotegida. Ainda bem, pois nem tudo está perdido!
Como é possível ser contra o desejo dos pais de se despedir de seu amado filhinho em paz e com dignidade, que segundo eles seria “somente estar em paz com ele, sem hospital, sem advogado, sem imprensa. Apenas um momento privilegiado com Charlie, longe de todo o resto, para dizermos adeus com o todo o amor possível"? O desfecho final adquire traços de crueldade e inumanidade, mas tudo executado segundo e nos conformes da Lei.
Um outro aspecto que Arthur Caplan, bioeticista da Universidade de Nova York, levanta é a respeito de como a medicina precisa se adaptar à era das redes sociais. Diz Caplan que “a ética médica ainda não assimilou os efeitos de uma situação em que muitos expressam sua opinião sem saber quase nada sobre o caso” (Folha de S. Paulo, 29/07/2017).
Enquanto acompanhávamos o desenrolar deste caso, lemos na imprensa brasileira dois “flagrantes da vida real” que nos fazem refletir ao contrapormos estas duas realidades. De um lado, o bebê inglês, que recebe toda atenção e cuidado médico possível, sendo que a causa da morte é a fatalidade de ser vítima de uma doença genética raríssima. De outro lado, como não se indignar com estas duas notícias:
a) Em 30 de junho, Claudineia dos Santos Melo, grávida de 9 meses, estava na rua, perto da Favela do Lixão, em Duque de Caxias (RJ), quando foi baleada. O tiro atravessou o quadril da mãe e atingiu a criança – perfurando os pulmões e provocando uma lesão na coluna. O bebê ainda segue internado, em estado grave, porém, estável. (Nota de IHU On-Line: o bebê morreu na tarde deste domingo, 30-07-2017). A mãe teve alta médica no dia 6 de julho. Até este momento em que relatamos este caso o bebê continua vivo, e nos solidarizamos torcendo para que ele consiga sobreviver.
b) A outra notícia tem a seguinte manchete: “Mães de bebês com microcefalia fazem passeata no Recife para denunciar mortes e falta de apoio”. No dia 27 de julho, representantes da organização União de Mães de Anjos (UMA), com crianças nos braços, num ato público, chamaram a atenção das autoridades de saúde de Pernambuco pelas precárias condições de cuidados e situação de abandono em que se encontram. Familiares de bebês com microcefalia relacionada à síndrome congênita do vírus da Zika, ao realizarem uma caminhada pelas ruas do Centro do Recife, denunciam morte de crianças por falta de assistência respiratória adequada na rede pública de saúde do Estado. A secretária administrativa da UMA, Jacqueline Vieira, declarou que “essas crianças precisam de tratamento e acompanhamento ambulatorial com fonoaudiólogos e fisioterapeutas respiratórios. Nós só temos acesso a esses profissionais quando as crianças são internadas. Não existe estrutura para crianças com microcefalia na rede ambulatorial nem acompanhamento”.
Como percebemos, nestes dois flagrantes da vida real brasileira as causas de morte não são a doença, por mais complexa e rara que seja, como no caso do bebezinho inglês, mas é a violência da sociedade e o descaso do sistema público de saúde com a saúde do povo. São mortes provocadas, vidas humanas abreviadas, mortes não naturais! Estamos diante da prática da mistanasia, isto é, da morte no início da vida, não apenas de algumas vidas, no contexto hospitalar, mas para além deste, estamos diante de centenas e de milhares de vidas perdidas, no seu berço.
Enfim, retornando e concluindo nossa reflexão em relação ao caso Charlie Gard, nossa convicção ética é que este bebê não deveria ter sido transformado num objeto de disputa jurídica. Teria sido muito melhor se tivesse sido cuidado e tratado no contexto familiar e médico, frente ao conflito, com a ajuda de facilitadores para uma comunicação aberta e honesta acerca dos “fatos científicos” a respeito de “diagnóstico e prognósticos" desta doença rara. Isto ajudaria para que não implementemos uma prática distanásica, ou da obstinação terapêutica, que somente adia a morte e prolonga o sofrimento, tentando encontrar a cura da morte, como se a morte fosse uma doença e não parte da nossa existência.
De outro lado o cuidado para não roubar o fio de esperança de vida que ainda está presente de abreviar a vida, retirando todo e qualquer suporte de vida, respirador e suporte nutricional, que não deixa de ser uma violência. Estamos diante de um conflito ético em cima de um fio de navalha! Qualquer precipitação de ação por um dos lados, se não houver sabedoria ética juntamente com conhecimento científico, será sempre uma ação que causará sérios danos à dignidade do ser mais fragilizado. Nossa sensibilidade ética vive mais na linha de deixar a natureza agir, em não havendo mais possibilidade de cura física, com cuidados integrais e cuidados paliativos, que compreende o cuidado e manejo da dor e sofrimento, afetividade e espiritualidade.
Enfim, somos convictos de que a esperança ética aponta para um horizonte de que um outro mundo é possível construir, em termos de uma cultura mais protetora, promotora, respeitosa da vida do ser humano, principalmente dos mais vulneráveis! Santo Agostinho, lá no início do Cristianismo, já falava da necessidade de cultivarmos a virtude da esperança em nossos corações. E esta tem duas belas irmãs: de um lado, a indignação, que rejeita as coisas como estão ocorrendo, e de outro, a coragem de mudar e dar um novo rumo às coisas. Um outro mundo é possível de construir!
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Um bebê que chama atenção do mundo: Um olhar bioético do drama de vida do bebê britânico Charlie Gard! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU