08 Dezembro 2017
O discurso do papa Francisco, intitulado “Fim da vida: tratar sem obstinação”, dirigido aos participantes do encontro regional europeu da World Medical Association - WMA, que ocorreu nos dias 16 e 17 de novembro, no Vaticano, é “muito consistente com os valores éticos cristãos invocados e extremamente oportuno, no momento em que na Itália o Senado está para aprovar a chamada lei do ‘Testamento biológico’, que tem gerado muita polêmica na sociedade italiana, pois cheira um pouco a uma abertura para a prática da eutanásia”, diz Leo Pessini à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Segundo Pessini, a WMA, que congrega todas as Associações Médicas do mundo, embora tradicionalmente tenha se posicionado contrária à prática da eutanásia, está sendo “pressionada por um forte grupo de médicos ultraliberais” para mudar seu posicionamento contra a eutanásia “para um posicionamento ‘mais favorável, ou então, no mínimo, neutro’”. Além disso, pontua, o discurso do Papa emerge num contexto em que “mais países estão entrando no rol de legislações em relação ao final da vida, favoráveis à prática da eutanásia e suicídio assistido”, avalia.
De acordo o teólogo, embora o discurso do Papa não tenha novidades do ponto de vista da doutrina da Igreja, Francisco introduz um novo olhar sobre as questões do fim da vida. Diante dos dramas humanos envolvidos nessas decisões, afirma, o Papa sugere “um discernimento prudencial, que procura evitar a prática do chamado ‘excesso (obstinação ou encarniçamento) terapêutico’, que não acelera o processo de morte ou de interrupção de vida como no caso da eutanásia”. E acrescenta: “É sinal de sabedoria aceitar que estamos frente a um limite de nossa dimensão humana de que somos mortais e finitos, e que ultrapassar este limite é uma agressão à dignidade humana. Não somos doentes por sermos mortais, e a nossa finitude não deve ser tratada como se fosse uma doença para a qual devamos encontrar a cura”.
Especialista em bioética, Passini pontua ainda que não é o princípio da autonomia que deveria ser requerido nas decisões sobre o fim da vida, “mas sim o princípio da solidariedade e da compaixão”, porque “quanto maior é a vulnerabilidade, maior deve ser a proteção e o cuidado, e não o descuidado. Temos que cultivar uma ética do cuidado e da proteção, e não da autonomia absoluta. Afinal, o quanto somos autônomos ao nascer? E ao morrer?”. E adverte: “Envelheceu moralmente a sociedade que não vê mais sentido e graça na arte de viver e conviver. A verdade é que somos interdependentes, dependemos ontologicamente uns dos outros e, nos momentos de crise ou de uma vulnerabilidade maior, somos chamados a ser solidários. Depender do outro não deveria ser sentido como ‘um peso ou uma vergonha’. Este tão proclamado ‘autonomismo virtual’ nega um dado fundamental de nossa condição humana: somos seres relacionais, conviviais e solidários. Em nome da tão endeusada autonomia, por exemplo, no cuidado dos idosos, acaba se justificando muita indiferença, que não serve a ninguém”.
Leo Pessini | Foto: Arquivo pessoal
Leo Pessini é graduado em Filosofia pelo Centro Universitário N. Sra. da Assunção e em Teologia pela Pontifícia Universidade Salesiana de Roma. É mestre em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e doutor em Teologia Moral pela mesma universidade. Realizou, ainda, pesquisa pós-doutoral em bioética pelo Centro de Bioética James Drane, da Edinboro University of Pennsylvania, nos EUA. Foi professor no Programa de Bioética do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo, e professor colaborador da Universidade do Vale do Sapucaí - Univás.
Entre suas obras, destacamos a trilogia sobre bioética de final de vida: Distanásia: até quando investir sem agredir (Loyola, 2a.ed., 2007), Eutanásia: por que abreviar a vida (Loyola, 2005) e Humanização e cuidados paliativos (Coord., 6a.ed., 2014). Para uma visão geral da bioética, escreveu ainda Problemas atuais de bioética (Ed. Loyola, 11a.ed., 2014).
Atualmente, residindo em Roma, é o Líder Mundial dos Religiosos Camilianos, Ordem Religiosa da Igreja Católica que está presente nos cinco Continentes, atuando no âmbito da saúde, em 41 países.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você interpreta o discurso do Papa, “Fim da vida: tratar sem obstinação”, aos participantes do encontro regional europeu da World Medical Association, sobre as questões do “fim da vida”?
Leo Pessini - Trata-se de um discurso muito consistente com os valores éticos cristãos invocados e extremamente oportuno, no momento em que na Itália o Senado está discutindo e logo deverá aprovar, ou não, a chamada lei do “Testamento biológico”, que tem gerado muita polêmica na sociedade italiana, pois cheira um pouco a uma abertura para a prática da eutanásia. Além disso, a Associação Médica Mundial (World Medical Association - WMA), que congrega todas as Associações Médicas do mundo inteiro, que tradicionalmente tem se posicionado frontalmente contrária à prática da eutanásia, pressionada por um forte grupo de médicos ultraliberais, está realizando algumas conferências continentais com o objetivo de, na próxima Assembleia Médica Mundial (EUA, Washington, 2018), mudar seu posicionamento frontalmente contra a eutanásia para um posicionamento “mais favorável, ou então, no mínimo, neutro”.
A Associação Médica Mundial é, tradicionalmente, frontalmente contra a prática de eutanásia. Na sua Declaração sobre Eutanásia (adotada na 39ª Assembleia Mundial em Madrid, em 1987, e reafirmada pelo Conselho da Associação Médica Mundial em Oslo, Noruega, em abril de 2015), assim se posiciona: “A eutanásia, o ato de deliberadamente terminar com a vida de um paciente, atendendo a uma solicitação do mesmo ou de seus familiares, é antiética. Isto não significa que o médico não deva responder ao desejo de um paciente de permitir que o processo natural da morte siga seu curso na fase terminal da doença”.
Além disso, mais países estão entrando no rol de legislações em relação ao final da vida, favoráveis à prática da eutanásia e suicídio assistido. Este contexto sempre mais liberalizante de desproteção da vida humana no seu final, certamente é uma preocupação constante deste Papa, que presta muita atenção às situações de vida humana vulnerabilizadas nas periferias existenciais e geográficas. E os cuidados de final da vida humana, hoje, são marcados por um processo acelerado de tecnologização. Corre-se o risco de um cuidado despersonalizado e desumanizado, embora tecnicamente impecável. Este contexto não deixa de ser uma área crítica de preocupações para quem acredita no ser humano e defende-o ardentemente em sua dignidade, como o papa Francisco. Nesta perspectiva, pode-se entender o porquê da repercussão midiática de seu pronunciamento.
IHU On-Line - Há alguma novidade no que o Papa diz acerca de como devemos nos relacionar com o fim da vida?
Leo Pessini - A grande novidade, poderíamos dizer, é que este evento que reúne médicos que discutem questões éticas de sua profissão, mas estão abertos à participação de outros profissionais e áreas do conhecimento (filósofos, teólogos, bioeticistas, entre outros), promovido pela Associação Médica Mundial, região da Europa, seja realizado no Vaticano em parceria com a Pontifícia Academia da Vida. Até não muito tempo atrás os cientistas fugiam da Igreja como o diabo da cruz! Mas, com Francisco, “os de longe e de fora” o procuram, e desejam estar por perto (enquanto os “de dentro”? ...), enfim neste setor as coisas mudaram de forma radical. Que bênção!
Não temos nada em termos de mudança de doutrina da Igreja a respeito das questões éticas de final de vida. O Papa cita um célebre Discurso de Pio XII (1957) pronunciado a anestesistas e reanimadores, em que Pio XII diz “que nem sempre é obrigatório empregar todos os meios terapêuticos potencialmente disponíveis e que, em determinados casos, é lícito abster-se deles”. Além disso, ele argumenta também a partir do Catecismo da Igreja Católica (1983).
O aspecto novo seria a forma inteligente e perspicaz com que Francisco lida com questões dificílimas, mas sempre introduzindo um novo olhar. No discurso ele não trata basicamente da eutanásia ou do suicídio medicamente assistido, mas chama atenção para a problemática de final de vida, qual seja, a da prática do prolongamento indevido do sofrimento e do processo do morrer na fase final da vida da pessoa. Aqui ele menciona a necessidade de “um suplemento de sabedoria”, bem como o critério ético da “proporcionalidade dos tratamentos”.
Anteriormente, falava-se de tratamentos ordinários e extraordinários; agora, de tratamentos “proporcionais e desproporcionais”. Os tratamentos desproporcionais que não beneficiam o bem integral da pessoa” devem ser evitados. Além disso, nos lembra Francisco que “quando nos imergimos no aspecto concreto das conjunturas dramáticas e na prática clínica (...) para se estabelecer que uma intervenção médica clinicamente apropriada seja de fato proporcionada, (...) é necessário um discernimento atento, que considere o objeto moral, as circunstâncias e as intenções dos sujeitos envolvidos”. Trata-se de um discernimento prudencial, que procura evitar a prática do chamado “excesso (obstinação ou encarniçamento) terapêutico”, que não acelera o processo de morte ou de interrupção de vida como no caso da eutanásia.
É sinal de sabedoria aceitar que estamos frente a um limite de nossa dimensão humana de que somos mortais e finitos, e que ultrapassar este limite é uma agressão à dignidade humana. Não somos doentes por sermos mortais, e a nossa finitude não deve ser tratada como se fosse uma doença para a qual devamos encontrar a cura.
IHU On-Line - Neste discurso, o Papa também usa a expressão “obstinação terapêutica”. Como podemos entender essa ideia?
Leo Pessini - No Brasil estamos falando do conceito de distanásia, obstinação terapêutica ou renúncia de esforço terapêutico. O termo “Distanásia” ganha definição nos dois dicionários mais populares da língua portuguesa, mas o termo não é tão popular, isto é, de amplo conhecimento público, quanto seu antônimo, eutanásia. O Dicionário Aurélio define a distanásia como sendo “morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento (Antôn. Eutanásia)” e o Dicionário Houaiss define como “S.f. (1873 cf. DV) MED. Morte lenta, com grande sofrimento”.
A questão não deixa de ser polêmica, complexa e controversa, pois não existe ainda, no âmbito da medicina científica, uma concordância ou um consenso mínimo em até quando intervir ou prolongar a vida, sem agredir a dignidade da pessoa humana. Definimos distanásia como sendo a ação, intervenção ou procedimento médico que não atinge o objetivo de beneficiar a pessoa na fase final de vida e que prolonga inútil e sofridamente o processo do morrer, procurando distanciar a morte.
Edmundo Pellegrino, notável cientista médico norte-americano, considera esta perspectiva como sendo um guia prudente de avaliação moral, levando em conta três elementos: o bem do paciente, a eficácia do tratamento, bem como a questão da onerosidade de todos os elementos envolvidos no caso.
Na Europa, esta problemática ganha nomes diferentes. Os franceses vão denominar de “l’acharnement Thérapeutique” (encarniçamento terapêutico), os italianos, por sua vez, denominarão de “Accanimento terapêutico” (obstinação terapêutica). Entrando no âmbito dos países de cultura anglo-saxônica — EUA, Austrália, Inglaterra — esta questão ganha o nome de “medical futility”, ou “Futile and useless treatment” (medicina fútil, tratamento fútil e inútil).
Neste contexto, estamos diante de uma prática abominável em que os instrumentos de cura e cuidado se transformam facilmente em ferramentas de sofrimento e tortura.
IHU On-Line - Partindo dessa ideia de “obstinação terapêutica”, quais diria que são as críticas do Papa à tecnologia que possibilitam a manutenção da vida?
Leo Pessini - Assim como na Encíclica Laudato Si': sobre o cuidado da casa comum ele vai criticar o chamado “imperativo tecnocrático”, aqui ele chama atenção para que não se perca de vista, neste processo crescente de sempre mais introduzir instrumentos tecnológicos no cuidado da vida e da saúde humana, a centralidade do valor da pessoa humana doente na sua integralidade e dignidade. Para além da biologia, do corpo biológico cujo tratamento e cuidado é de competência da medicina científica, não podemos descuidar da saúde biográfica e, neste sentido, falamos de saúde e dignidade biográfica. Este cuidado nunca deve cessar, mesmo quando não é mais possível a cura.
Francisco lembra da importância de uma comunicação transparente, verdadeira, uma relação médico-paciente respeitosa, em que nunca se substitua ou menospreze a “voz do paciente” enquanto este tem condições de decidir. Ele deverá ser sempre o primeiro a ser ouvido, e não o último. O papa Francisco fala muito de sairmos de nós mesmos, fazermos um êxodo pessoal e ir ao encontro e estabelecer comunhão com o outro! A relação entrou em crise e está profundamente desumanizada e, em vez de ser uma relação de confiança, estamos diante de um encontro entre dois estranhos com um contrato a ser assinado. Ambas as partes querem, antes de tudo, garantir os direitos do paciente, de um lado e, de outro, que o profissional médico não seja processado, na eventualidade de algum erro de procedimento. Urge ação educativa inovadora e inspiradora de um novo humanismo médico e implantação de uma nova cultura de respeito da dignidade do ser humano vulnerabilizado (ou vulnerado) pela doença, dor e sofrimento.
Um caso singular, que captou a atenção da mídia norte-americana recentemente, foi a de um paciente que chegou inconsciente ao pronto-socorro e que tinha tatuado na sua pele do peito em letras grandes a seguinte frase: “Não ressuscitar” (Do not ressuscitate!). Em caso de parada cardíaca, não desejava que fosse ressuscitado. E agora, José? O que fazer? Respeitar ou não? Ir em frente com procedimentos rotineiros? Este caso ganhou manchete em todos os principais noticiários de TV e periódicos norte-americanos (New York Times e outros jornais) e está obrigando os profissionais da saúde, notadamente os médicos, a repensarem as coisas nesta área da comunicação e a relação médico-paciente. Pelo menos esta discussão colocou em crise este modelo. No fundo trata-se de um grito para que seja ouvido e levado a sério e que seus valores em relação a procedimentos médicos não sejam esquecidos em meio a informações de saúde contidas no prontuário do paciente, no mínimo. Curioso que quando se esquece do paciente, ele se faz lembrar de maneiras muito criativas...
O Papa lembra que aqui entra em ação “o mandamento supremo da proximidade responsável, como se lê claramente na página evangélica do Samaritano (cf. Lc 10, 25-37) e o “imperativo categórico que consiste em nunca abandonar o doente”. Aqui entra em ação a chamada “medicina paliativa”, que visa “combater tudo o que torna o ato de morrer mais angustiante e sofrido, ou seja, a dor e a solidão”.
A Organização Mundial da Saúde - OMS define cuidados paliativos como sendo “uma abordagem que aprimora a qualidade de vida dos pacientes e familiares que enfrentam problemas associados com doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual”.
IHU On-Line - E o que acontece na medicina brasileira hoje em relação aos cuidados de final de vida?
Leo Pessini - Segundo dados do Conselho Federal de Medicina - CFM, temos no país em torno de 420 mil médicos. O Código de Ética Médica vigente, que é de 2009 — tive a honra de participar da comissão responsável pela sua elaboração —, finalmente colocou a medicina brasileira no século XXI ao não recomendar a prática da distanásia e propor, em situações de terminalidade da vida, a implementação dos cuidados paliativos. Assim, no Código Brasileiro de Ética Médica (Res. CFM n. 1931, DOU, 24/09/09, SEÇÃO I, págs. 90-92), Capítulo I - Princípios fundamentais (XXV). XXII, lemos: “Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”.
No capítulo V, quando trata da relação com pacientes e familiares, afirma que é vedado ao médico:
1) Art. 35: “[...] exagerar a gravidade do diagnóstico ou prognóstico, complicar a terapêutica”.
2) Art. 36: Abandonar paciente sob seus cuidados. §2º. “Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a assisti-lo, proporcionando-lhe cuidados paliativos apropriados.”
3) Art. 41: “Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”. Parágrafo único: “em caso de doença incurável e terminal deve o médico oferecer os cuidados paliativos disponíveis, sem empreender ações diagnósticas e terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, de seu representante legal”.
Em termos de teoria ética, tudo está às mil maravilhas. Ocorre que em nosso país, em torno de 30% dos pacientes que estão nas UTIs, as quais chamo de “modernas catedrais do sofrimento humano”, são pacientes em fase final de vida. Esses, em princípio, não deveriam estar ocupando um leito de UTI, mas sim estar numa unidade de cuidados paliativos. A prática da distanásia, ou seja, do prolongamento indevido do processo da morte e do morrer, é muito mais frequente do que a gente pensa. Muitas vezes o profissional médico é pressionado por familiares influentes, que suplicam: “Dr. o nosso paizinho não pode morrer, pelo amor de Deus, coloque-o na UTI”. E lá vai para a UTI o velhinho, sem ser consultado, nem avisado, empurrado pela família, que teme que este morra e com isto termine de receber a polpuda aposentadoria integral, por ter sido militar ou funcionário público de alto escalão do governo. Critérios que extras situações de saúde influenciam facilmente decisões clínicas. Esta situação é insustentável e é louvável que o CFM esteja trabalhando neste sentido de se implantar uma nova cultura de utilização das UTIs brasileiras.
IHU On-Line - Em que aspectos a posição do Papa sobre o “fim da vida” se diferencia de outras posições que advogam pela liberdade do sujeito para escolher sobre o fim da sua própria vida, como as propostas de suicídio assistido e da eutanásia?
Leo Pessini - A argumentação se embasa em valores cristãos e da tradição católica. Nada de novo aqui. Acreditamos que a vida é um dom maravilhoso que Deus nos deu. Temos como consequência a responsabilidade de cuidá-la para que esta desabroche, cresça de forma saudável e feliz. Em situações de fragilidades, conflitos e vulnerabilidades, não pode faltar a solidariedade samaritana.
Como fomos cuidados para nascer, precisamos também ser cuidados ao partir desta vida. Nas duas extremidades da vida temos exatamente os dois momentos chaves de vulnerabilidade humana. Tanto na chegada (embrião, feto, bebê), como na partida (no final da vida). Não é o princípio da autonomia que comanda aqui, mas sim o princípio da solidariedade e da compaixão. Quanto maior é a vulnerabilidade, maior deve ser a proteção e o cuidado, e não o descuidado. Temos que cultivar uma ética do cuidado e da proteção, e não da autonomia absoluta. Afinal, o quanto somos autônomos ao nascer? E ao morrer?
IHU On-Line - Em seu discurso, o Papa também chama atenção para o fato de que o acesso aos tratamentos de saúde corre o risco de depender mais da disponibilidade econômica das pessoas do que das efetivas exigências de tratamento. Como devemos interpretar essa crítica e como responder a esse tipo de situação à luz de uma reflexão bioética?
Leo Pessini - No fundo se trata de uma denúncia frente a uma situação de injustiça, na área de cuidados de saúde, que sofrem as pessoas mais humildes, que são perfeitamente descartáveis neste sistema que “coisifica as pessoas e sacraliza as coisas”.
Vejamos, por exemplo, no nosso país. Antigamente a saúde era vista como caridade. Estão aí as “Santas Casas de Misericórdia” (hoje entidades filantrópicas, em sobrevivência lamentável e muitas fechando por falta de recursos) que nos lembram de uma história heroica de cuidado da saúde do povo, numa realidade de Estado inexistente ou ineficiente. Em 1988, com a Constituição dita cidadã, a saúde foi proclamada como sendo um “direito de todo cidadão brasileiro e dever do Estado”. Nasce o SUS, implanta-se o novo sistema nacional de saúde... O que acontece? Quem tem acesso aos cuidados quando necessita? Filas quilométricas, tempo de espera de meses, quando o caso exige uma intervenção urgente, e assim muitas vidas se perdem. O direito somente existe no papel, porque na realidade foi transformado num “negócio” de quem tem e pode.
Tomemos como exemplo o caso do sistema de saúde público brasileiro, o SUS. Ele tem uma concepção filosófica humanista, em termos de valores éticos sócio-humanitários, magnífica. É considerado na sua concepção um dos melhores do mundo... sim, na teoria. É realmente pesaroso que existe a realidade para testá-lo, para ver se funciona ou não. Mas este sistema de saúde responde pelo cuidado de 160 milhões de brasileiros. Os outros 40 milhões de brasileiros de classe média e alta têm seus planos de saúde privados. O SUS não pode dar errado, pois é a vida de simplesmente 160 milhões de pessoas que está em jogo. E o que estamos vendo hoje é um vergonhoso sucateamento das instituições públicas de saúde, situações de corrupção terríveis, enfim. O acesso ao sistema está ficando sempre mais difícil, em situações de urgência e emergência, os profissionais são mal remunerados etc. Estamos frente a uma verdadeira mistanásia (mis = infeliz; thatos = morte), isto é, centenas de vidas humanas abreviadas em nível coletivo por falta de vontade política dos governantes, atendimento digno e recursos necessários. Trata-se da morte social, vidas desperdiçadas e jogadas no lixo.
É muito significativa e inovadora esta sensibilidade do papa Francisco, que, enquanto pensa na dignidade de final de vida de alguns dentro do sistema hospitalar, não esquece da morte de multidões, dos últimos da terra, descartados do sistema e condenados à vala comum dos desconhecidos da história, como se nunca tivessem existido. Vejamos a tragédia dos migrantes que buscam melhores condições de vida na Europa, fugindo de regiões de conflito, e que perdem suas vidas no mar mediterrâneo. São mais de 5 mil somente em 2017. Lembremos sua voz no parlamento Europeu: “Temos que cuidar para que o mediterrâneo não se transforme num cemitério de cadáveres!”
Estamos diante de uma perversidade cruel! Não podemos ficar indiferentes frente a essa situação. Algo necessita ser feito com urgência. Não basta somente se lamentar ou denunciar, é preciso se comprometer politicamente na implantação de uma nova cultura de respeito e cuidados da dignidade humana em nível pessoal, institucional e organizacional. Não está fácil falar de ética e bioética e acima de tudo sermos pessoas éticas em nosso país. Todos os parâmetros que temos de bom senso, e referenciais de valores éticos públicos, entraram em crise.
O que nunca podemos deixar entrar em crise é a nossa esperança ética! Trata-se de uma opção que exige de todos nós ousadia, coragem e profetismo!
IHU On-Line - Hoje parece que a ciência dá sinais de que será possível prolongar a vida muito tempo e há quem aposte que a ciência caminha no sentido de garantir a imortalidade. Como o senhor vê esse tipo de expectativa a partir de uma perspectiva bioética?
Leo Pessini - Necessitamos distinguir de imediato a ciência verdadeira de cientificismos enganosos. A ciência não deixa de ser uma criação da inteligência humana que vai adentrando nos mistérios da vida e da natureza e procura produzir um conhecimento que seja para o bem do ser humano. Vejamos na área da medicina, por exemplo, quantas doenças que ontem eram morte certa, hoje são perfeitamente curáveis. Temos uma longevidade muito maior que nossos ancestrais. Em termos de comunicação e viagens, muitas possibilidades e facilidades, impensáveis até não muito tempo atrás. Pena que todas essas benesses do progresso da tecnociência ainda não sejam para todos.
Na era dos “pós-tudo” também estamos falando de “pós-humanismo ou trans-humanismo”. O ser humano atual é algo a ser superado. A morte passa a ser considerada como se fosse um acidente, uma doença para a qual temos que encontrar a cura e, então, decreta-se a “morte da morte” e busca-se freneticamente conquistar o estágio de “um corpo sem idade e uma alma feliz” (ageless body and happy soul). A imortalidade estaria a um passo de ser conquistada... Kurtsweil, um dos pais deste movimento, anuncia que isto acontecerá a partir de 2045! Quem de nós estiver vivo nesta data verificará isto ou não. Uma ideologia e utopia cientificista de cunho biológico mecânico que nos seduz e nos reduz à matéria, embora utilize termos teológicos de realização humana, tal como “alma feliz” (happy soul)”. Esta é uma questão muito complexa e difícil. Escrevi recentemente um longo artigo para a REB (março - junho 2017) intitulado: Humanismo e pós-humanismo no século XXI: em busca de um novo ser humano?, onde o leitor poderá aprofundar mais a respeito.
Em 2018 estaremos celebrando os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU). Ainda não conseguimos sequer tornar realidade alguns dos valores mais fundamentais que definem a dignidade do ser humano, e já descartamos este ser humano, dizendo que já era e vamos partir para outra... Isto é o que chamo de cientificismo barato, que magicamente nos seduz e sorrateiramente nos engana. A bioética tem aqui um papel crítico fundamental de vigilância antropológica, em vista das gerações futuras.
IHU On-Line - Quais são os principais desafios postos à bioética diante do avanço da genética e da possibilidade de cada indivíduo fazer seu mapeamento genético?
Leo Pessini - Hoje, vivemos a chamada época do “Bios”, que teve início com a descoberta da dupla hélice do DNA (Watson e Crick, em 1953), que inaugurou entre nós a chamada era genômica, como uma instigante novidade, singular atrativo do progresso técnico-científico, com promessas de “revoluções milagrosas”, mas também trazendo sérias questões e inquietudes relacionadas com o futuro da vida no planeta. O quanto não ficará manipulável e vulnerável a identidade do ser humano neste contexto. Os economistas afirmam que a “biotecnologia” será o carro-chefe da economia neste século XXI. E a ladainha do novo dicionário de palavras que se inspira em “bios” aumenta muito rapidamente: biologia, biogenética, biogenômica, bioterrorismo, bioerro, biopoder, bioestatística, biocombustíveis, biodiesel, biodegradáveis (Produtos), biogerontologia, biodiversidade, biociência, bioenergética, bioenergia, bioengenharia, bioequivalência, bioestatística, biofísica, bioinformática e tantas outras.
E neste cenário emerge também a bioética, ou seja, ética da vida. Depois do susto da possibilidade de clonagem de seres humanos, em 1997 (Ovelha Dolly e seu criador Ian Ilmut, Edinburgo, Escócia), e com o mapeamento do genoma humano no ano 2000, anunciaram-se muitos “milagres” que estariam para acontecer nesta área da genética e genômica, mas na verdade pouca coisa aconteceu. Esperava-se e se anunciava muito mais coisas. Neste sentido estamos diante de uma certa “decepção”. A última novidade que temos nesta área é a questão da edição de genes, com a descoberta do CRISPR – Cas 9, que funcionaria como uma verdadeira tesoura molecular, que extirparia os genes defeituosos, causadores de doenças. É ainda muito cedo para fazermos uma avaliação. Mas temos esperança de que a pesquisa nesta área possa trazer descobertas importantes para se encontrar a cura de muitas doenças de origem genética (fala-se em torno de 2.500) que hoje infernizam a humanidade.
IHU On-Line - Em alguns países do mundo tem aumentado significativamente o número de abortos em gestações que diagnosticam casos de bebês com síndrome de Down. Nos EUA o número de abortos por esse motivo foi de 67% entre 1995 e 2011, na França, 77% em 2015, no Reino Unido, 90%, na Dinamarca, 98% em 2015. Que considerações o senhor poderia fazer do ponto de vista da bioética e dessa discussão sobre o fim da vida, a partir desse quadro?
Leo Pessini - Estes números revelam como a “ideologia do ser humano perfeito” e da “criação segundo a nossa imagem e semelhança” vai se fortalecendo e ganhando terreno. No final de vida a opção pela eutanásia, de desistir de viver, em grande parte, é devido ao problema da dor e sofrimento humano e de não mais querer ser um peso para os outros: “Se for para depender dos outros, então que Deus me leve!”. Envelheceu moralmente a sociedade que não vê mais sentido e graça na arte de viver e conviver. A verdade é que somos interdependentes, dependemos ontologicamente uns dos outros e, nos momentos de crise ou de uma vulnerabilidade maior, somos chamados a ser solidários. Depender do outro não deveria ser sentido como “um peso ou uma vergonha”. Este tão proclamado “autonomismo virtual” nega um dado fundamental de nossa condição humana: somos seres relacionais, conviviais e solidários. Em nome da tão endeusada autonomia, por exemplo, no cuidado dos idosos, acaba se justificando muita indiferença, que não serve a ninguém.
Sobre dor e sofrimento humano? Mistério que acompanha a humanidade. Claro não advogamos o dolorismo, mas o desafio consiste na ressignificação (sentido e transcendência) da vida frente a estas situações.
IHU On-Line - Alguma inquietação bioética em relação ao presente e ao futuro da humanidade?
Leo Pessini - Li recentemente a última obra póstuma de Zygmunt Bauman, que se intitula Retrotopia. Confesso que foi uma leitura que nos provoca nas nossas certezas de valores e nos deixa muito inquietos, para não dizer angustiados. A utopia, ou seja, o sonho de realização, não estaria mais no futuro, mas voltou-se para o passado, ou seja, o futuro não está lá na frente, no futuro, mas temos que voltar para trás (daí o título da obra “retro”), no passado! O autor deixa um alerta, afirmando que “estamos evoluindo de uma crença tola no futuro para a mistificação infantil do passado” e entrando na “era da nostalgia”. Para Bauman, nós ainda acreditamos em “progresso”, mas agora o consideramos tanto uma bênção quanto uma maldição, sendo que o aspecto de maldição cresce rápido e o lado da bênção vai diminuindo.
Nós, hoje, tendemos a projetar nossos medos, ansiedades e apreensões no futuro. Enfrentaremos crescente escassez do emprego, queda da renda e, portanto, também de declínio das oportunidades de vida e aumento das dificuldades em sobreviver. E o ateísmo em relação ao futuro como um lugar para se investir esperanças, nos preocupa. Não seria isto que faz com cresçam entre nós os fundamentalismos, bem como o número de pessoas que temem tudo o que é novo, e se refugiam na segurança do passado, e se transformam em ferrenhos conservadores, engajando-se numa luta restauracionista?
Bauman conclui seu pensamento dizendo que “precisamos aprender a nos abraçar por um longo período de tempo em que enfrentaremos mais perguntas do que respostas, problemas que soluções (...). O veredicto final é de que não existe ‘outra alternativa’ e seremos obrigados a enfrentar esta situação, unidos e de mãos dadas, ou então, ganharemos sepulturas comuns”!
Que horror apocalíptico, não? Talvez esta seja exatamente a hora da esperança. Viver com esperança se tornou hoje uma necessidade e imperativo de sobrevivência, e não mais uma questão de opção! Para onde nos levou “o ateísmo que nega Deus”, todos nós já sabemos, mas nos perguntamos: Para onde nos levará este ateísmo em relação ao futuro da humanidade?
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Em busca de uma ética do cuidado e da proteção, e não da autonomia absoluta. Entrevista especial com Leo Pessini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU