26 Abril 2010
Entrou em vigor, no dia 13 de abril, o novo Código de Ética Médica. Uma das resoluções desse novo documento é que os médicos não devem mais praticar tratamentos desnecessários em doentes terminais, por exemplo, trazendo à tona questões como a ortotanásia. “Diria que a grande novidade do código é a medicina brasileira finalmente assumir o princípio da finitude humana e propor, frente às situações de não possibilidade de cura, os cuidados paliativos”, assinala o teólogo Léo Pessini durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line, por e-mail. Pessini foi um dos poucos profissionais não médicos a participar do processo de construção deste nosso código de ética médico.
Nesta entrevista, ele fala sobre as novidades do novo código e o compara com o anterior, datado de 1988. “Muitas questões éticas que são cruciais para a medicina hoje nem sequer eram tocadas nos anos 1980 e são contempladas neste novo código. Temos assim a questão dos cuidados paliativos, da ortotanásia, da genômica, da pesquisa em seres humanos e animais, da telemedicina, da reprodução medicamente assistida, da autonomia tanto do médico quanto do paciente, a questão do conflito de interesses, entre outras novidades temáticas”, aponta.
Léo Pessini é doutor em Teologia Moral-Bioética e pós-graduado em Clinical Pastoral Education and Bioethics, pelo St. Luke`s Medical Center, em Milwaukee, nos EUA. Também é membro da Diretoria da Associação Internacional de Bioética e superintendente da União Social Camiliana, além de vice-reitor do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor poderia nos falar um pouco sobre o processo de elaboração deste novo código? Tem alguma novidade?
Leo Pessini – A medicina brasileira, num espaço de quase um século e meio, mais precisamente 143 anos (1867-2010), utilizou-se de nove diferentes códigos de deontologia e ética. O código até então em vigor era de 1988, justamente num momento histórico no Brasil de novos ares democráticos. Neste mesmo ano, tivemos a aprovação da Constituição Brasileira. Muita coisa mudou na sociedade e no mundo científico no último quarto do século XX. Este novo código que entrou em vigor em 13 de abril de 2010 foi aprovado após dois anos de ampla consulta pública, resultado de análise de 2575 sugestões de mudanças encaminhadas por profissionais especialistas e instituições afins, entre 2007 e 2009. Todo este trabalho foi coordenado pela Comissão Nacional de Revisão do Código de Ética Médica (CNRCEM), que teve como coordenador o Dr. Roberto Luiz d´Ávila, atual Presidente do Conselho Federal de Medicina.
O novo Código de Ética Médica é composto de um preâmbulo com seis incisos, 25 incisos de princípios fundamentais, dez incisos sobre “direitos”, 118 artigos de normas deontológicos (sobre “deveres” dos médicos) e quatro incisos de disposições gerais. Ou seja, no seu aspecto formal, foi mantido o esquema clássico de princípios, direitos e deveres.
IHU On-Line – Como foi esta experiência do senhor como bioeticista, filósofo e teólogo, sendo um dos únicos profissionais não médicos a participar deste processo?
Leo Pessini – Foi uma experiência fantástica, profundamente enriquecedora em termos de troca de conhecimentos inter e multidisciplinar. Inclusive, no dia de lançamento oficial do Código, em 13 de abril último, fui escolhido pela Presidência para falar em nome da Comissão. Isto, sem dúvida, simboliza e significa uma abertura inovadora de se pensar, refletir e elaborar diretrizes éticas e deontológicas, na verdadeira essência da perspectiva e espírito bioético. Para além dos limites da própria profissão médica, integrando perspectivas, inter e multidisciplinares do saber humano.
Aos caros amigos da CNRCEM, após todo este caminho trilhado, podemos, com certeza, afirmar que, nos descobrimos como “amigos morais”, capazes de respeito perante visões e crenças plurais, capazes também de não somente tolerar, mas de dialogar com sinceridade e respeito, bem como também de “celebrar nossas diferenças” acima e para além de qualquer ditadura de pensamento único ou crença fundamentalista. Nesta experiência de convivência que realizamos, podemos dizer que se constitui no verdadeiro desafio de construção do futuro da humanidade, numa convivência respeitosa frente à pluralidade de crenças e valores neste início de milênio.
IHU On-Line – Que avanços este código traz e quais são os limites dele? Alguma questão importante para a medicina ficou sem resposta?
Leo Pessini – Precisamos inicialmente lembrar que todo código de deontologia e ética, no fundo, é um conjunto de diretrizes éticas que norteiam o exercício profissional, buscando a excelência de uma determinada profissão, aqui, no caso, a medicina. Basicamente, manteve-se a mesma estrutura básica de apresentação, mas existem novidades no seu conteúdo temático. A missão que a Comissão Nacional que coordenou os trabalhos recebeu foi de “revisão” do código de 1988, não de elaboração de um novo código. Mas podemos dizer que o resultado do trabalho de revisão, juntamente com atualização e ampliação temática, é que temos em mãos um novo código de ética.
Muitas questões éticas que são cruciais para a medicina hoje nem sequer eram tocadas nos anos 1980 e são contempladas neste novo código. Temos assim a questão dos cuidados paliativos, da ortotanásia, da genômica, da pesquisa em seres humanos e animais, da telemedicina, da reprodução medicamente assistida, da autonomia tanto do médico quanto do paciente, a questão do conflito de interesses, entre outras novidades temáticas. Podemos dizer que basicamente as questões mais importantes para o exercício da medicina foram contempladas.
IHU On-Line – Quais são as principais diferenças entre esse novo código e o anterior?
Leo Pessini – Claro que uma das diferenças fundamentais está relacionada com os novos temas que a medicina tem que enfrentar neste novo século. Estas questões se transformaram em dilemas éticos hoje, mas não existiam há 25 anos. Uma outra diferença fundamental é a concepção dos princípios e normas deontológicas. Nos 25 princípios fundamentais do novo código, temos uma “ética dos máximos”, e, nas 118 normas deontológicas, temos uma “ética dos mínimos”. É na perspectiva dos princípios que temos a incorporação de uma perspectiva bioética em relação às novas temáticas.
Pelo código anterior, por exemplo, um médico poderia ser “penalizado” frente a uma determinada infração ética, também pelos princípios, doravante será penalizado quando infringir normas éticas, somente a partir das normas deontológicas. A formulação também poderia ter mudado, mas, no final, prevaleceu a antiga formulação do “é vedado”, dando ainda uma aparência de “código penal”, ao invés de uma formulação mais positiva na linha dos deveres (É dever do médico...), como ocorre nos códigos de ética médica dos países de primeiro mundo que foram revisados na última década.
IHU On-Line – Como o senhor define a ortotanásia? Esta seria a grande novidade desse novo código?
Leo Pessini – É interessante observar que a expressão “ortotanásia” não é utilizada no código. Trata-se de uma expressão que ganhou cidadania na mídia impressa e televisiva, mas que no imaginário popular ainda está muito associada à questão da eutanásia. Por isso é que assusta tanto e evitou-se assumir esta expressão no bojo do código. A ortotanásia seria a morte certa, no tempo e momento certo, sem abreviação de um lado (eutanásia) e nem prolongamento indevido do processo do morrer de outro (distanásia). Isto é o que chamo de morrer com dignidade e elegância, sem dor e sofrimento.
Diria que a grande novidade do código é a medicina brasileira finalmente assumir o princípio da finitude humana e propor, frente às situações de não possibilidade de cura, os cuidados paliativos. O inciso XXII dos princípios fundamentais diz. “Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”. É incrível que, no código anterior (1988), entre os dezenove princípios elencados, o paciente nunca morre! Estamos num momento cultural de negação da morte e daqueles que na fase final de vida nos lembram dela. Hoje não dá mais para negar.
IHU On-Line – O código faz alguma referência à religião e espiritualidade?
Leo Pessini – A tradição de ética médica brasileira codificada trilha uma linha filosófico humanista, de direitos humanos, sem se envolver com religião. O novo código basicamente manteve o que vinha sendo dito na tradição dos últimos códigos, ou seja, uma perspectiva tímida e negativa em relação à questão da religião. Menciona a religião em quatro ocasiões, mas todas elas num tom negativo. A religião está ligada à discriminação e interesses que comprometem uma conduta de lisura ética e que, portanto, devem ser evitados. Indiretamente poderíamos dizer que o Código diz sim aos cuidados paliativos, valoriza a espiritualidade, pois os cuidados espirituais estão no coração do conceito e entendimento de cuidados paliativos.
Mas uma referência explícita ao tema não teria desabonado em nada o conteúdo do Código, muito pelo contrário, teria sido mais um avanço entre outros, se compararmos com outros países. Religião e espiritualidade, na sua essência, não podem ser equacionadas como causa de violência e discriminação (fundamentalismos religiosos), mas é fator fundamental de bem-estar e saúde. Entidades médicas de reconhecido prestígio mundial, tal como a Associação Médica Mundial, e mesmo Códigos de Ética de países tais como Canadá, EUA, entre outros, incorporam os cuidados de espiritualidade (assistência religiosa) de forma positiva, como um direito do paciente e também como uma responsabilidade médica, no contexto global de cuidados de saúde.
IHU On-Line – Como é tratada a questão da autonomia do paciente no código?
Leo Pessini – A autonomia é, sem dúvida, uma das conquistas mais importantes da sociedade contemporânea. Estamos superando uma tradição basicamente marcada pelo paternalismo e autoritarismo, ideologia esta em que, quem tem a verdade e dita o que vai ser feito é sempre o profissional médico e o paciente é um mero recipiente receptivo, passivo e calado. Neste sentido, o Código avança sim, quando aponta que sempre deve se levar em conta a vontade expressa do paciente, com o consentimento livre e esclarecido deste para qualquer procedimento terapêutico.
Temos aqui o estabelecimento de uma relação menos assimétrica e um encontro de parceiros. Mas ainda temos alguns resquícios da perspectiva da beneficência hipocrática que cheira paternalismo, quando o novo código diz que o paciente pode exercer sua autonomia basicamente em tudo, mas salvo frente “a iminente risco de morte” (Artigos 22 e 31), o médico pode agir independentemente da vontade do paciente. Aqui quando estamos frente a “estranhos morais” tais como situações das Testemunhas de Jeová, que não querem transfusões de sangue, estamos frente a um conflito ético, com implicações jurídicas. Temos que superar uma visão por demais biologicista e orgânica da vida. Não podemos esquecer que os valores do paciente são tão importantes quanto seu exame de sangue.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Novo código de ética médica: "a medicina brasileira entra no século XXI’. Entrevista especial com Léo Pessini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU