Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, debate os desafios para as comunidades de fé nesta sexta-feira, com o teólogo valdense Fulvio Ferrario
Se, de um lado, as estatísticas indicam um crescente abandono da religião e, por sua vez, os teólogos refletem sobre como o cristianismo deve se adaptar à modernidade a fim de apresentar a pessoa de Jesus Cristo de modo que faça sentido na vida de hoje, de outro, o teólogo valdense Fulvio Ferrario é enfático em relação ao papel da Igreja nesse processo: "O primeiro compromisso da Igreja não é convencer os outros, mas viver o Evangelho".
Em entrevista a Domenico Segna, publicada na revista Il Regno – Attualità, em 2016, ele explicitou este ponto a partir de uma crítica dirigia à Igreja que, por vezes, na tentativa de viver e comunicar o Evangelho, apenas o circunda. "A ênfase na 'evangelização', difundida entre os cristãos que se consideram comprometidos, muitas vezes pressupõe que a Igreja já compreende e vive a mensagem e que o único problema é encontrar a famosa 'linguagem' adaptada ao 'ser humano de hoje'. Nada contra o empenho de tradução (é também a tarefa da teologia, isto é, o meu ofício); mas não é o problema principal. Uma Igreja que vive a fé também consegue comunicá-la. Onde a realidade de Cristo é conhecida porque é vivida, encontram-se as palavras. Muitas vezes, uma comunidade reunida para o culto no domingo sonolento das nossas cidades diz muito mais sobre Jesus do que um livro de cristologia".
Se encontrar a melhor linguagem é importante na comunicação da fé, vivê-la é o ponto central. Para ilustrar seu raciocínio, o decano da Faculdade de Teologia Valdense de Roma recorre a Nietzsche e ao seu escândalo diante da Verdade. "Eu sempre gostei e citei de bom grado a interpretação da Reforma proposta por Nietzsche: como feroz inimigo do cristianismo, ele entendeu melhor do que outros que Lutero, muito simplesmente, pretendeu levar a sério a realidade de Deus. Isto é, o Deus de Lutero não é uma metáfora, um regulador ideal, a garantia de um sistema de valores, mas é o Deus vivo da Bíblia, que se comunica ao ser humano e intervém na história. Nietzsche está escandalizado com o fato de a Bíblia ser seriamente considerada como um lugar no qual o próprio Deus fala e que qualquer um pense que Deus realmente escuta a oração. Com efeito, a Reforma fez exatamente isto: na aurora da modernidade, ela proclamou novamente, com grande força, a mensagem de Jesus Cristo; e pregou, convencida, como as crianças, que Deus responde àqueles que se dirigem a Ele. Precisamente por esse motivo, ela também foi uma força de renovação da civilização europeia e uma das matrizes do Ocidente moderno. Por outro lado, ver na Reforma, acima de tudo, uma força de secularização (uma leitura que une, aliás, adversários e admiradores) é, na minha opinião, míope. Lutero e os outros polemizam contra a Igreja em nome de Jesus; e as primeiras palavras da Reforma (primeira tese de Lutero sobre as indulgências) são um convite à 'penitência', ou seja, à conversão".
Segundo ele, o escândalo de Nietzsche continua sendo o mesmo de inúmeras pessoas que se defrontam com Cristo nos dias de hoje. "Nietzsche se enraivecia porque a mensagem protestante lhe parecia escandalosamente inatual. Na realidade, é Jesus que é inatual, sempre o foi: a Sua pessoa é a crítica ao culto do presente e dos seus estilos de vida e de pensamento. Para a Igreja (não só para a protestante, naturalmente), o desafio consiste em ser fiel à inatualidade de Cristo. Isto é, não a qualquer inatualidade: o encastelamento nas ideologias pseudocristãs do passado não é melhor, por si só, do que a tentativa patética de se adequar a todo o custo à última moda. A inatualidade de Cristo é qualificada: Jesus é sempre 'contemporâneo', como dizia Kierkegaard, mas o é como Aquele que inquieta a contemporaneidade, critica-a, julga-a e, desse modo, perdoa-a, ou seja, valoriza-a autenticamente. O protestantismo certamente não tem a exclusividade dessa mensagem. No passado, porém, ele contribuiu para colocá-lo novamente em foco, o que também é uma responsabilidade para hoje".
Fulvio Ferrario (Foto: Reprodução do YouTube)
Fulvio Ferrario, formado em Filosofia na Cattolica em Milão com uma tese sobre Hans Küng e confirmado na igreja valdense de Milão em 1983, será o próximo conferencista do Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Nesta sexta-feira, 24-06-2022, ele ministrará a palestra virtual intitulada "Desafios e oportunidades para as comunidades de fé numa sociedade pós-cristã", que será transmitida na página eletrônica do IHU, nas redes sociais e no Canal do IHU no YouTube.
Ativo nos debates sobre ecumenismo e as transformações socioculturais em curso que têm implicações diretas na vivência da fé e na participação da vida da Igreja, Ferrario tem refletido sobre o processo de descristianização na Europa e o significado da Igreja enquanto corpo de Cristo. Em entrevista a Paolo Ricca em 2020, ele classificou a "descristianização europeia" como um "fenômeno de grande porte e muito difundido" que diz respeito a todas as igrejas. Uma das questões que lhe preocupam nesse processo, disse, são as reestruturações organizacionais. "Obviamente, elas são necessárias, mas eu não acho que elas possam, propriamente, atacar a substância do problema. Parece-me que as Igrejas protestantes que foram sociologicamente significativas insistem em se conceberem como 'Igrejas de povo', que são um componente, nem sempre central, mas também não irrelevante, do panorama social. Pois bem, tudo leva a crer que essa situação declinou. Agora, as Igrejas são minorias".
Ele também chama a atenção para o que faz uma pessoa tornar-se, de fato, cristã, que nada tem a ver com a reestruturação das igrejas. "As pessoas não se tornam cristãs 'automaticamente', mas apenas a partir de uma motivação bastante articulada: em suma, você deve saber por que é cristão. Algumas Igrejas protestantes na Europa parecem querer combater a crise 'abaixando' o pedido, ou seja, diluindo ainda mais o seu perfil. Trata-se, na minha opinião, de uma estratégia catastrófica: em primeiro lugar, ela é dificilmente defensável com base na Escritura; além disso, ela também não funciona. Se você se apresenta em termos pouco perfilados, você não interessa a ninguém", afirma.
Convertido ao protestantismo, mas observador direto de todos os movimentos do mundo católico, insiste, a diferença está na forma de "compreender a Igreja". "Embora hoje eu ame o catolicismo romano mais do que eu o amava como católico (na minha opinião porque é mais 'bonito' visto de fora do que de dentro!), continuo pensando da mesma maneira: a diferença está na forma de compreender a Igreja. Não se trata apenas de uma questão de doutrina, mas sim de uma transfiguração da Igreja, um pouco mística, um pouco metafísica".
As próximas conferências previstas para o "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas" são as seguintes:
"Crer em Deus e crer em Jesus hoje: para além das crenças", em 01-07-2022, às 10h, com José Arregi Olaizola, doutor em Teologia pelo Instituto Católico de Paris e professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Deusto.
José Arregi Olaizola (Foto: M. Mielniezuk)
"Espiritualidade cristã em perspectiva pós-teísta", em 10-08-2022, às 10h, com Paolo Scquizzato, da Diocese de Pinerolo, na província da capital do Piemonte, Itália, onde atua na formação espiritual.
Paolo Scquizzato (Foto: Gabrielli Editori)
Na página do evento "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas" estão disponíveis as conferências ministradas até o momento. Acesse aqui.