04 Mai 2022
"Temos certeza de que a ideia de família subjacente à declaração de Cuba e aquela de Abu Dhabi não se exponha ao risco de uma contiguidade perigosa com a homofobia belicista do Patriarca Kiril? Perguntamo-nos se não seria necessária uma reflexão honesta e sem escrúpulos sobre o que significa anunciar Cristo no contexto da democracia pluralista. Porque, em pleno século XXI, não basta evocar 'a virada do Concílio', independente de como for avaliada", escreve Fulvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Confronti, maio de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há algumas semanas, todas as segundas-feiras, muitos meios de comunicação publicaram as homilias dominicais do Patriarca de Moscou “e de todas as Rússias”. Entre as mais interessantes está a de 6 de março, em que a agressão contra a Ucrânia é justificada pela necessidade de evitar um orgulho gay naquelas paragens, fruto das perversões ocidentais.
Que este seja precisamente o símbolo escolhido é em si muito indicativo: em todo caso, não acredito que seja difícil concordar que o pensamento do Patriarca se contrapõe frontalmente não apenas a esta ou àquela convicção de ética sexual, mas sim ao próprio entrecruzamento de debates, comportamentos, aquisições, procedimentos políticos, que caracterizam as sociedades ocidentais.
Vladimir Putin, apesar de pouco ou nada interessado nas ideologias, adota de bom grado aquela de Kirill e uma certa linha da ortodoxia russa como cobertura "de pensamento" para sua própria política de agressão.
Mesmo esse clericalismo brutalmente reacionário vê corretamente em pelo menos um ponto: o Ocidente é efetivamente atravessado por processos de secularização, que em parte rejeitam a herança cristã, em parte modificam suas formas de presença social e em parte a atravessam. E esses processos também têm a ver com democracia, pluralismo e ética.
E assim, embora de formas completamente diferentes, mesmo na Rússia, embora seja conveniente para o Patriarca e o ex-funcionário da KGB que perseguiu as igrejas fingir ignorá-lo.
Não há necessidade de iniciar discussões pastorais com quem abençoa o massacre. As agressões verbais de Kirill, que justificam aquela militar, no entanto constituem, à sua maneira, um convite à reflexão dirigido a todo o cristianismo ocidental: por um lado, o confronto com o pensamento e as práticas seculares é de grande atualidade; por outro lado, pelo menos algumas das teses do Patriarca encontram consensos de autoridade.
Poucos dias antes da agressão à Ucrânia, celebrou-se o sexto aniversário do encontro entre Kirill e Francisco em Cuba. Um encontro "histórico" foi dito: mas é claro, quando é que o Romano Pontífice faz ou diz algo que seus cantores consideram "normal"? Pois bem, a declaração conjunta publicada naquela ocasião celebra o florescimento cristão na Rússia após o colapso dos regimes ateus; desconta nas sociedades secularizadas e em sua agressividade; condena as formas de convivência diferentes do casamento; alude muito criticamente às leis sobre a interrupção da gravidez e sobre as questões do fim da vida. Tudo é colocado sob a bênção de Maria, cuja invocação, em diferentes formas, também acompanhou os eventos bélicos.
Vamos ampliar o horizonte. Em muitos países árabes, o Islã influencia a vida civil em termos que, de um ponto de vista democrático-ocidental, parecem problemáticos.
A Declaração de Abu Dhabi (2019), assinada por Francisco e pelo Grande Imã Ahmad Al Tayyeb, é celebrada por muitos como um mirabolante passo em frente no diálogo entre as religiões; acredita, apenas para dar um exemplo, que "genocídio" e "atos terroristas” possam ser colocados no mesmo plano que as questões do aborto e do fim da vida.
E me pergunto: temos certeza de que a ideia de família subjacente à declaração de Cuba e aquela de Abu Dhabi não se exponha ao risco de uma contiguidade perigosa com a homofobia belicista do Patriarca? Perguntamo-nos se não seria necessária uma reflexão honesta e sem escrúpulos sobre o que significa anunciar Cristo no contexto da democracia pluralista. Porque, em pleno século XXI, não basta evocar “a virada do Concílio”, independente de como for avaliada.
E já que agora estamos no tema: tudo isto tem alguma relação com a paixão católica de decidir quem é Igreja (a própria Roma e a Ortodoxia, Kirill eminentemente incluindo) e quem não é (as Igrejas da Reforma)?
Poder-se-ia citar Jesus ("Você os reconhecerá por seus frutos"). Mas talvez seja melhor voar baixo e limitar-se a Woody Allen: "Diga-me com quem anda e eu lhe direi se vou também".
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Diga-me com quem anda e eu lhe direi se vou também. Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU