Cardeal Tolentino aponta desafios e oportunidades para a Igreja a partir do pontificado de Francisco

Foto: Cathopic

03 Agosto 2021

 

"Um dos problemas da Igreja atual é a sua autorreferencialidade: arriscarmos viver dentro de uma bolha, dentro de uma zona de conforto, estamos bem nas nossas realidades, nas nossas missões, nas nossas atividades, mas perdemos a capacidade de um discurso relevante para o mundo", escreve Dom José Tolentino Mendonça, cardeal português, bibliotecário e arquivista do Vaticano, em artigo publicado por Pastoral da Cultura, 02-08-2021. 

 

Eis o artigo.

 

Há quatro eixos marcantes, que agregam a si muita outra reflexão, e que são traves-mestras no caminho, na missão que tem sido protagonizada pelo papa Francisco.

 

Primeiro, é a sua reflexão sobre o que nós somos. Há uma autorrepresentação da Igreja para a qual o papa Francisco, desde o início do seu pontificado, nos tem mobilizado. Vale a pena voltar às imagens da exortação apostólica que é o seu programa de pontificado, “A alegria do Evangelho”.

 

Imagens como a Igreja em saída, como uma Igreja de portas abertas, como uma Igreja hospital de campanha, como uma Igreja acidentada, suja, por ter saído pelas estradas do mundo, pelas periferias da humanidade, mas ao mesmo tempo continua a ser aquela comunidade de discípulos de Jesus capazes de viverem em fidelidade o espírito do Evangelho, assumindo o serviço da vida humana como sua missão primordial.

 

Isto é algo que ao longo destes oito anos de pontificado encontramos traduzido noutras imagens, porque o pensamento do papa Francisco funciona muito a partir de imagens muito incisivas, de metáforas de grande impacto. Com elas, o papa vai descrevendo o que pensa da Igreja.

 

 

Uma imagem para falar deste eixo da autorrepresentação que aparece repetidamente no pensamento e na fala do papa Francisco é a do poliedro. Ele pensa a Igreja, as comunidades, as várias comunidades eclesiais como um poliedro, com faces diferentes, mas com grande de, a mesmo tempo, expressar originalidade e complementaridade.

 

A referência aos quatro princípios que ele enuncia na “Evangelium gaudium” aparece continuamente quer em documentos quer quando fala sem papéis à frente.

 

O princípio que o tempo é superior ao espaço. Na visão que o papa Francisco tem da Igreja, não se trata apenas de ocupar um espaço, mas de ter um olhar para o tempo, perceber que começamos caminhos, e que esse gesto inaugural é porventura mais importantes do que querer já montar uma tenda num lugar específico.

 

Outro princípio é que a unidade é superior ao conflito. Um pensamento muito importante do papa Francisco, quer em relação à Igreja quer ao mundo, é a noção de bem comum. Aquilo que nos une é sempre mais importante do que tudo aquilo que nos diferencia e separa.

 

Outro princípio é que a realidade é superior à ideia. É muito importante para um olhar de pastor, e para nós que vivemos em Igreja, a auscultação da realidade, e perceber que a capacidade de abraçar a vida como ela é, mesmo nas suas contradições, é superior às idealizações que podemos fazer.

 

O quarto princípio é que o todo é superior às partes. De novo emerge a ideia de bem comum a redescobrir como uma imagem, que não é só abstrata, mas praticada do que é a Igreja.

 

 

Percebemos, na visão que o papa apresenta sobre a Igreja, quanto ele é fiel ao espírito do Concílio Vaticano II. Além de perguntar quem somos, o papa pergunta-nos, desafia-nos e cria novas oportunidades para perguntar quem são os destinatários do discurso eclesial. E aqui o seu discurso traz grande novidade profética, desinstala-nos, porque ele escolhe falar não para os de sempre, não para aqueles que já pertencem ao rebanho, não para aqueles que já estão convencidos, mas é um discurso verdadeiramente para todos, em grande medida para a humanidade.

 

Neste sentido, os temas, os argumentos que o papa Francisco escolhe, por exemplo a África, a Europa e o grande cemitério que é hoje o mar Mediterrâneo, e as suas encíclicas são textos em que vemos que ele tem a humanidade diante dos olhos. Não tem apenas os bispos, os cristãos, porque sente como desafio para a missão atual da Igreja a capacidade de falar a todos, e de colocar na sua agenda eclesial temas que não dizem respeito apenas “ad intra”, mas com uma transversalidade e globalidade muito grandes.

 

Isto é um eixo novo, e constitui, sem dúvida, um desafio muito grande, porque, como o papa Francisco refere muitas vezes, um dos problemas da Igreja atual é a sua autorreferencialidade: arriscarmos viver dentro de uma bolha, dentro de uma zona de conforto, estamos bem nas nossas realidades, nas nossas missões, nas nossas atividades, mas perdemos a capacidade de um discurso relevante para o mundo. A “Fratelli tutti” vem dar força não apenas à palavra “irmãos”, mas também ao advérbio “todos”. Esta capacidade de falar a todos é algo que o papa Francisco nos ensina.

 

Há mais desafios que abrem muitas oportunidades, e são importantes quando olhamos sem pretensão de esgotar o assunto, mas de abrir uma conversa sobre o magistério do papa Francisco.

 

Um outro eixo consiste no desafio a converter o olhar e o método de interpretar a realidade a uma dimensão sistémica da vida. O papa Francisco pensa as coisas não apenas individualmente, mas é capaz de perceber que tudo está ligado, que há uma interconexão muito grande.

 

 

Percebemos isto claramente, por exemplo, na “Laudato si’”. Há tempos, o papa fez uma espécie de “making of”, contou o que está por trás do processo interior, espiritual, que o levou à redação e publicação desta encíclica sobre o cuidado da casa comum. Ele lembra que, em 2007, quando estava na conferência da CELAM [Conselho Episcopal Latinoamericano] que aconteceu em Aparecida, da qual era um dos redatores do documento final.

 

Ele conta, com muita simplicidade, que ao ouvir alguns dos participantes falar da Amazônia, pensava para si mesmo: «O que é que tem a Amazônia a ver com a evangelização? Esta insistência é aborrecida». Eu tive de fazer um caminho de conversão interior para perceber que a ecologia, o pensamento do mundo, da casa comum, nos obriga a um novo paradigma, em que, por um lado, não temos o antropocentrismo radical que ainda vigora – no centro está o ser humano e todas as coisas devem ser explicadas em função dele –, antes há uma dimensão sistémica na Criação, que depois podemos usar como método para analisar todas as realidades. A palavra-chave é “conexão”. Não podemos servir a pessoa se não atendermos à Criação, se não ouvirmos a voz do sofrimento do planeta. Cuidar da casa comum é condição fundamental para também podermos cuidar da humanidade. Só saberemos o que está a acontecer com a pessoa humana se nos perguntarmos o que é que está a acontecer com a nossa casa comum.

 

O quarto desafio, que vem desde as primeiras declarações deste pontificado – mas que este ano ganhou um novo impulso, porque na preparação para o Sínodo dos Bispos a Igreja universal é chamada a redescobrir e viver em chave de sinodalidade –, e que nos abre tantas oportunidades nas nossas realidades eclesiais, é o de implementar uma dinâmica de sinodalidade.

 

 

Quando, em 2015, a instituição dos Sínodo dos Bispos fez cinquenta anos, o papa dizia que o Sínodo era o que o Senhor nos pede para vivermos no terceiro milénio. A grande imagem da Igreja deste milénio é uma igreja sinodal, uma Igreja capaz de caminhar conjuntamente, mas ele afirma imediatamente, com o realismo que dele conhecemos, que não é fácil colocar este dinamismo em prática. Mas ele não deixa de nos desafiar. E aponta algumas traves-mestras do seu pontificado.

 

O papa diz, por exemplo, que uma Igreja sinodal é uma Igreja que escuta, e que escutar não é apenas ouvir; escutar é ser capaz de acolher, de praticar uma hospitalidade, de entender a complementaridade que existe entre todos os carismas, entre todos os serviços dentro da Igreja. Ele diz que sem sinodalidade não se entende o próprio ministério hierárquico. Ao citar S. João Crisóstomo, afirma que Igreja e Sínodo são sinónimos.

 

Esta sinodalidade que a Igreja é chamada a viver, e que tem vivido de tantos modos ao longo do pontificado de Francisco, não é apenas “ad intra”, não é apenas para ouvir a Igreja, os fiéis leigos, para ouvir as diversas realidades que compõem a esfera eclesial; é também uma sinodalidade com o mundo, porque, lembra tantas vezes o papa Francisco, nós não estamos sós, a Igreja caminha juntamente com os seres humanos, compartilhando as suas dificuldades e esperanças.

 

Penso que estes quatro eixos – quem somos, imagens novas, incisivas, para autorrepresentar a experiência eclesial; a quem falamos, a ousadia de falar a todos, o que em grande medida é, para a Igreja, uma novidade e uma oportunidade; o desafio de interpretar de modo sistémico, em modo interconectado todas as questões; e, por fim, o estilo eclesial é o estilo da sinodalidade – nos ajudam a ler, mapear, cartografar o pontificado do papa Francisco.

 

 

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