18 Mai 2022
A emergência dos abusos (de consciência, de poder, de sexo) marcou muitas realidades eclesiais de diferentes formas e intensidades. Também os movimentos pós-conciliares e, entre eles, os Focolares. O movimento divulgou recentemente o resultado do relatório de uma autoridade independente sobre o caso até então mais chocante de um focolarino francês, Jean-Michel Merlin.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada em Settimana News, 17-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em outubro de 2021, foi lançado o livro de Ferruccio Pinotti, jornalista e ensaísta, intitulado “La setta divina. Il movimento dei Focolari fra misticismo, abusi e potere” [A seita divina. O movimento dos Focolares entre misticismo, abusos e poder]. Quase 500 páginas que concluem com um severo julgamento e com um pedido de reforma que envolve toda a estrutura do movimento e “a própria teologia de Chiara Lubich” (p. 480). Para o vice-presidente do movimento, J. Morán, o volume não oferece “uma apresentação objetiva e ponderada do carisma do movimento”.
“A seita divina. O movimento dos Focolares entre misticismo, abusos e poder”, em tradução livre, novo livro de Ferruccio Pinotti (Foto: Divulgação)
É uma abordagem de tipo jornalístico e de denúncia em relação a outras obras de densidade histórica mais consistente, como o livro de Bernhard Callebaut intitulado “La nascita dei Focolari. Storia e sociologia di un carisma (1943-1965)” [O nascimento dos Focolares. História e sociologia de um carisma (1943-1965)] (Roma, 2017), ou o organizado por Lucia Abignente e Donato Falmi, intitulado “Oltre il Novecento” [Além do século XX] (Roma, 2022).
Os cerca de - testemunhos recolhidos por F. Pinotti (alguns de casais e de grupos) dão voz às vítimas. Seus relatos, marcados por uma dolorosa sinceridade, sublinham o inicial e poderoso envolvimento emocional, a progressiva consciência das contradições internas, o exercício de uma autoridade invasiva, o apelo onipresente e muitas vezes formalista ao carisma de Chiara, a dificuldade de relações autênticas dentro da experiência comunitária, os condicionamentos infantilizantes na vivência cotidiana, a falta de sabedoria nos casos de homossexualidade, o cinturão de silêncio na presença de eventos dramáticos, o isolamento no momento da separação.
Cito alguns. “Os abusos morais e psicológicos sofridos, além daquilo que também me foi pedido fisicamente durante os 15 anos no Paquistão, deixaram uma marca notável e indelével na minha psique (...) Sofro de pesadelos recorrentes, mas felizmente os ataques de pânico desapareceram” (M. Iarlori, p. 178).
“Uma noite, em um focolare, Guido testemunhou o suicídio de um focolarino. O gesto foi divulgado como um incidente doméstico. A comunidade dos Focolares não devia saber. O silêncio e a omissão que se seguiram nos convenceram de que não queríamos mais ser cúmplices desse sistema” (M. Castagna e G. Licastro, p. 189).
“À força de rezar e de meditar, como fazíamos no focolare, a minha relação com Deus se ‘deformava’ cada vez mais. Eu me sentia cada vez mais culpada, pequena e medíocre, enquanto, antes de entrar no focolare, a minha relação com Deus era espontânea, serena, tranquila, livre: sentia-me amada” (L. Zanier, p. 266).
“No movimento, pode-se pensar com a própria cabeça até certo ponto, porque, quando você denuncia situações erradas, você é simplesmente ignorado e encurralado” (M. S., p. 287).
“A minha experiência no Movimento dos Focolares me deixou feridas profundas. Demorou muitos anos para curá-las e provavelmente ainda não cicatrizaram. O que eu aprendi é que nunca, por nenhuma razão no mundo, poderei considerar outro ser humano como emissário, porta-voz ou profeta de nenhum Deus, nem como guru ou mestre. É a única coisa pela qual sou verdadeira e profundamente grata: Chiara Lubich me serviu de vacina. Sinto muito por aqueles que ficarão horrorizados com as minhas palavras, mas estou profundamente convencida de que agora tu, Silvia (nome de batismo de Chiara), saberás quantos erros foram cometidos pelo apego a uma espiritualidade que era apenas tua. E quanto mal está escondido na palavra ‘bem’” (D. Lai, p. 354).
Os testemunhos mais amplamente citados são os de Silvia Martinez, Gordon Urquhart, Renata Patti. O julgamento teológico é principalmente confiado ao jesuíta belga Jean-Marie Hanneaux e ao canonista francês Pierre Vignon.
O autor às vezes coloca os acontecimentos de Chiara e dos Focolares em paralelo com outros casos de autoritarismo (Opus Dei, Caminho Neocatecumenal), de abusos (Legionários), de fenômenos religiosos de massa (da Igreja da Unificação de Moon aos videntes marianos de Medjugorje).
Parece-me difícil equiparar o que se conta sobre os Focolares com as violências pessoais repetidas e forçosamente ocultas de fundadores como Maciel Marcial Degollado (Legionários de Cristo) ou de Luis Figari (Sodalício). Assim como seria impróprio um paralelo entre teologias elaboradas e envolvidas na justificação dos abusos como as dos irmãos Philippe (Marie-Dominique e Thomas), o primeiro fundador e o segundo inspirador de diversas instituições de vida consagrada.
Uma coisa é a elaboração teológica acadêmica com fortes (e discutíveis) raízes na teologia tomista, outra coisa é a referência a uma experiência mística que, por sua natureza, requer um espaço interpretativo menos forçoso e menos imperioso, embora fundamental como a vivida por Chiara.
Todo movimento de reforma corre o risco de considerar seu próprio grupo como a vanguarda, uma companhia de eleitos, uma “Igreja” acima do povo dos “lapsi”, dos compromissos.
É um risco também para os Focolares, mas não tão evidente como para outras experiências de comunidades inovadoras, como uma fundação de origem alemã. A Katholische Integrierte Gemeinde, forte nas intuições originais (a centralidade da Escritura, a consciência pós-secularização e a raiz judaica fundamental) não aceitou a verificação do magistério.
Onde encontrar, então, um âmbito de referência mais compatível? Creio que a dramática questão dos abusos entre os focolarinos encontra um paralelo mais pertinente com a vida religiosa das fundações históricas. Em todos os casos, o abuso se configura como negação do carisma original, como infidelidade grave ao próprio testemunho, como demanda de reforma institucional.
As vítimas e os seus dramas lembram a todos as responsabilidades compartilhadas e lançam as perguntas sem necessariamente formular as respostas que pesam diretamente sobre as famílias religiosas. Não creio que seja casual que, no caso francês, já mencionado no início, os Focolares tenham confiado à comissão independente de reconhecimento e de reparação, desejada e alimentada pela Conferência dos Religiosos e Religiosas Franceses (Corref), a tarefa de acompanhar as vítimas que necessitam de um processo de reparação. Sem ignorar a dimensão global da Igreja que todo abuso evidencia.
Foi assim que o Papa Francisco se expressou na Carta ao Povo de Deus (confira aqui) de 20 de agosto de 2018: “Reconheço o esforço e o trabalho que são feitos em diversas partes do mundo para garantir e gerar as mediações necessárias que proporcionem segurança e protejam a integridade das crianças e dos adultos em situação de vulnerabilidade, assim como a implementação da ‘tolerância zero’ e de modos de prestar contas por parte de todos aqueles que realizem ou acobertem esses crimes. Tardamos em aplicar essas medidas e sanções tão necessárias, mas confio que elas ajudarão a garantir uma maior cultura do cuidado no presente e no futuro. Juntamente com esses esforços, é necessário que cada batizado se sinta envolvido na transformação eclesial e social de que tanto necessitamos. Tal transformação exige conversão pessoal e comunitária, e nos leva dirigir os olhos na mesma direção do olhar do Senhor”.
Pinotti dá às experiências místicas de Chiara, fixadas em um texto de uma dezena de páginas intitulado “Paradiso ‘49” – publicado em 2008 em Nuova Umanità – não apenas um alívio de fundamento à intuição carismática, mas também de causalidade direta em relação às ambiguidades e contradições testemunhadas pelas vítimas.
Em cerca de 60 páginas, ele analisa o documento “chocante, fundamental para compreender a gênese, o desenvolvimento e também a patologia do movimento” (p. 120).
Ele reconhece em algumas passagens “a obsessão pela necessidade de ‘submeter-se a uma autoridade aqui embaixo’, sob pena de ser ‘escravos por toda a eternidade’” (p. 126). As acusações, registradas por outras vozes críticas, de narcisismo, autorreferencialidade, autoglorificação e niilismo são recorrentes.
Mesmo no caso positivo do papel singular do feminino, comenta-se: “É uma pena que, no caso do Movimento dos Focolares, a filosofia do ‘ser nada’ e da ‘submissão’ tenha se traduzido em uma forma peculiar de vexação da mulher, na sua humilhação constante e sistemática, na sua exploração laboral e intelectual, em uma compressão tão profunda que induziu algumas focolarinas ao suicídio” (p. 132).
A experiência mística não é facilmente narrável. E, quando é contada, enquadra-se com dificuldade na linguagem teológica sistemática. Em particular, como no caso de “Paradiso ‘49”, onde, de forma original em relação à corrente mística maioritária, ilumina-se o encontro com a Trindade.
É muito delicado deduzir do texto linhas diretamente operacionais. Tanto para quem o interpreta de “fora” quanto para quem, de dentro do movimento, se limitasse a citações e referências que se traduzem em questionáveis direcionamentos autodestrutivos ou desvalorizadores.
O ponto crítico a que os testemunhos me parecem se referir é antes o funcionamento da estrutura interna (formativa e de governo). Em duas frentes, em particular: o exercício da autoridade e o desafio teológico e cultural de fundo.
O livro de Pinotti se baseia amplamente em um texto crítico interno, elaborado por cinco focolarinos ao longo de um semestre e em vista da assembleia eletiva de 2020, da qual saiu a nova presidente, a palestina Margaret Karram.
Entre as principais linhas, está a insistência na dialética entre o cuidado do carisma entregue e o necessário dinamismo interpretativo. A partir dos anos 1990, teria havido um progressivo impasse entre as duas exigências, com o inevitável fortalecimento da dimensão hierárquica e os possíveis desvios autoritários. A dialética entre custódia e inovação é, em parte, interpretada pelo choque geracional e, em parte, pelo “conflito” entre feminino e masculino.
O dispositivo institucional herdado se adapta mal às novas exigências e demanda, fundamentalmente, a renovação da dimensão carismática no seu enraizamento eclesial. A unidade deve ser conjugada na dialética trinitária mais do que na complacência autocontemplativa. Para evitar o autoritarismo, o espiritualismo, a vida dupla e a extinção da atração, devem ser retomadas as dimensões originais da espiritualidade, da teologia e da cultura. Elas são capazes de alimentar uma renovada atenção às emoções e aos corpos.
A pretensão de uma cosmovisão global e do valor cultural do carisma, do sinal de estar juntos sem se anular exige o reconhecimento da plena historicidade do dom espiritual de Chiara e a sua renovada formulação no contexto de uma “mudança de época” (Francisco).
Um livro como o de Pinotti fortalece as decisões internas de enfrentar a questão dos abusos e, sobretudo, de “imaginar o futuro” para uma experiência cristã que alimente a Igreja.
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Movimento dos Focolares à prova - Instituto Humanitas Unisinos - IHU