04 Janeiro 2022
"O quadro de serenidade geralmente associado aos focolares resulta assim trincado por acontecimentos dramáticos, até casos de suicídio, determinados pelo controle de todo aspecto da existência pessoal dos focolares pelos líderes do movimento nos vários níveis", escreve Marco Rizzi, professor de literatura cristã antiga da Università Cattolica del Sacro Cuore, de Milão, em artigo publicado por Corriere della Sera, 03-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em comparação com outros movimentos eclesiais, os "focolares" desfrutam de melhor apreço da opinião pública, em primeiro lugar pelo papel de guia confiado a uma mulher; depois, pela atitude ecumênica em relação a confissões cristãs não católicas e a outras religiões, cujos fiéis podem fazer parte do movimento sem a necessidade de conversão; finalmente, devido ao caráter "familiar" implícito no nome com o qual são comumente conhecidos (o nome oficial é "Obra de Maria", novamente com referência à dimensão feminina).
Fundado em 1943 em Trento por Chiara Lubich (1920-2008), o movimento está espalhado em 182 países e pode contar com cerca de dois milhões de membros, ainda que não sejam divulgados dados oficiais a esse respeito, articulados em uma vasta série de iniciativas econômicas, de assistência, cultural (20 editoras no mundo, a revista “Città Nuova” tem 31 edições em 17 línguas), e outras mais estritamente espirituais e religiosas. A expressão máxima da identidade “focolar” é constituída pelas “Mariápolis”, cidadelas onde os membros do movimento vivem em comunidade por períodos mais ou menos longos, até chegar a residir permanente.
No final de 2020, no entanto, casos de pedofilia vieram à tona dentro do movimento na França; a abertura de investigações internas, confiadas a uma empresa de consultoria especializada, revelou novas denúncias, não mais limitadas apenas a abusos sexuais, mas estendidas a várias formas de coerção psicológica ou outras formas de violação da dignidade e da liberdade pessoais.
Ferruccio Pinotti, repórter do Corriere della Sera, coletou cerca de vinte testemunhos de ex-membros no livro La setta divina. Il Movimento dei Focolari fra misticismo, abusi e potere (A Seita Divina. O Movimento dos Focolares entre misticismo, abusos e poder, em tradução livre, Piemme, p. 494 e 19,90 Euros); o quadro de serenidade geralmente associado aos focolares resulta assim trincado por acontecimentos dramáticos, até casos de suicídio, determinados pelo controle de todo aspecto da existência pessoal dos focolares pelos líderes do movimento nos vários níveis. Trata-se de um problema característico das estruturas que ambicionam controlar todos os aspectos da experiência humana: precisamente por isso são atrativas para quem necessita do apoio identitário representado pela pertença a um grupo e pela dedicação a um propósito, ao custo de rejeitar quem reivindica espaços de autonomia e liberdade.
Capa do livro (Foto: Divulgação)
No caso dos focolares, Pinotti vê a raiz desses "abusos de poder", como os definiu o Papa Francisco, em alguns aspectos da experiência e do ensinamento da própria fundadora, cujo processo de canonização está em andamento. Em especial, parece problemático um texto de 1949 que relata algumas visões de Chiara Lubich.
O livro contém no apêndice uma entrevista com a atual líder do movimento, Margaret Karram, e seu colaborador mais próximo, revelando ser um exemplo correto de reportagem investigativa bem abrangente. Do ponto de vista histórico, é fácil perceber como o excesso (inclusive o excesso visionário) e a forte consciência de si e da própria missão sejam características presentes em todos os fundadores de ordens ou movimentos religiosos. O próprio São Francisco não hesitou em se retratar como "alter Christus" e, assim, seus primeiros seguidores. Somente o desenvolvimento subsequente esclarece a linha tênue entre o sucesso (e a santidade) e o desvio (e a heresia): "Pelos seus frutos os reconhecereis", como está escrito no Evangelho de Mateus.
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Um livro lança luz sobre as sombras dos focolares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU