24 Abril 2022
Dois meses após a invasão da Ucrânia por Putin, a situação está longe de estar imóvel. Putin registrou três derrotas fundamentais: a Ucrânia não entrou em colapso (como ele esperava e como também temiam os serviços secretos ocidentais), a ofensiva sobre Kiev fracassou, e não foi instalado um governo fantoche.
O comentário é do vaticanista italiano Marco Politi, publicado por Il Fatto Quotidiano, 22-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ao mesmo tempo, ficou evidente no Vaticano e nas chancelarias internacionais que a guerra em curso não é mais simplesmente entre Moscou e Kiev, mas entre os Estados Unidos e a Rússia. É esse aspecto que preocupa particularmente o Vaticano. A “terceira guerra mundial em pedaços”, muitas vezes evocada por Francisco nos últimos anos, concentrou-se em um confronto nos mais altos níveis.
Além disso, desde o início de abril, houve uma mudança nas finalidades da guerra. Uma primeira abordagem defensiva do Ocidente (orientada a impedir a invasão de Putin) foi substituída por Washington, Kiev e, na Otan, a vontade de uma guerra total com a Rússia. As palavras dirigidas a Zelensky pelo presidente do Conselho Europeu, Charles Michel – “Queremos a vitória da Ucrânia e estamos determinados a fazer todo o possível para apoiá-la” – são arrepiantes desse ponto de vista na sua retórica indeterminação. Abrem o caminho para perspectivas imprevisíveis, para uma ameaça que diz respeito ao mundo inteiro, como denunciado pelo Papa Francisco.
Enquanto isso, uma queda de braço está em andamento entre Kiev e a Santa Sé. Zelensky quer alistar o Vaticano na sua batalha contra a Rússia, Francisco não quer usar uniformes. O papa permanece ancorado na linha dos seus antecessores, que desde João XXIII mantiveram zelosamente a autonomia da Santa Sé durante a Guerra Fria do século XX.
Na Ucrânia, as instâncias políticas e eclesiásticas estão pressionando de várias maneiras. Um dia, foi o bispo de Odessa, Dom Stanislav Syrokoradjuk, que disse no canal La7 que o pontífice poderia fazer mais. Outro dia, chegou ao Vaticano a carta do comandante dos fuzileiros navais ucranianos, sitiados em Mariupol, na qual se pede ao pontífice uma intervenção direta porque “as orações não bastam”.
É claro que se trata de um jogo político. Mas Francisco não quer favorecer uma regressão a séculos passados, em que o papado entrava em campo ao lado de alguns Estados e excomungava outros. Francisco condenou com palavras muito duras os crimes e os massacres da invasão russa, mas a Santa Sé deve permanecer alheia aos alinhamentos. Não neutra, mas acima da disputa. Por esse motivo, o papa adiou o encontro com o Patriarca Kirill agendado para junho em Jerusalém e suspendeu uma possível viagem à Ucrânia.
Nesse braço de ferro, no entanto, Kiev marcou um ponto durante a semana da Páscoa. Sob a pressão das hierarquias políticas e eclesiásticas ucranianas, o evento simbólico mais marcante da Via Sacra de 2022 – as duas mulheres, a ucraniana Irina e a russa Albina, que seguraram a cruz juntas – desapareceu da primeira página do L’Osservatore Romano. Quem abriu (eletronicamente) o jornal vaticano no dia seguinte não as viu. A primeira página apresentava duas imagens: Francisco em meditação e o cardeal Krajewski ajoelhado na frente de uma vala comum, na Ucrânia, em Borodyanka. Para encontrar Irina e Albina era preciso ir até a última página do jornal, mas mesmo ali não se via que elas estavam segurando a cruz. A foto foi cortada de tal modo que se veem apenas os dois rostos e as mãos entrelaçadas em torno de um pedaço de madeira preta: a cruz como tal não é visível.
Autocensura ainda mais surpreendente porque ocorreu após o ofensivo “apagão” da Via Sacra pela TV estatal de Kiev e de uma série de emissoras católicas: UGCC Live TV, Rádio Maria, EWTN Ucrânia. A agência de notícias religiosa ucraniana Risu também se recusou a colocar o evento em seu site. Atitudes “inoportunas”, foi como o jornal Avvenire as definiu diplomaticamente.
O gesto das mídias ucranianas lembra a explosão dos nacionalismos mais irracionais, que se manifestaram na Europa do século passado. A imagem do símbolo escolhido e aprovado pelo papa para a Via Sacra era particularmente poderosa, porque remetia ao triunfo da Cruz sobre a morte e o mal, o ódio e a violência. Porque evocava profeticamente o futuro de uma Ucrânia livre e democrática ao lado de uma Rússia livre e democrática. E porque a própria história de Irina e Albina representava um forte sinal de esperança: Albina, a russa, no dia da invasão, tido ido chorando ao encontro da sua amiga ucraniana Irina para expressar a sua dor e o seu pedido de desculpas.
Mas não. Esse símbolo não devia ser mostrado em Kiev e na Ucrânia.
Por outro lado, circulou na internet uma charge em que se vê uma menina vestida com as cores ucranianas, segurando uma grande cruz, contra o fundo do Coliseu, e atrás dela caminha uma mulher (vestida com as cores da bandeira russa), segurando uma metralhadora. Ao longe, veem-se ruínas de uma localidade presumivelmente ucraniana onde estão erguidas as três cruzes do Calvário. Uma mesquinha caricatura da Via Sacra papal, mas também um sinal da violência com que se quer impor uma narrativa.
Todo o caso permanece significativo porque, quanto mais avança o confronto Washington-Rússia em solo ucraniano, mais assistimos a uma militarização do pensamento: não são admitidas análises alternativas, não são admitidas propostas alternativas à guerra total até a “vitória”.
Francisco, por outro lado, continua teimosamente a propor outro caminho. E quanto mais se tenta apresentar as suas intervenções como “palavras ao vento” puramente morais, mais evidente fica o caráter político e alternativo da sua proposta. Dar início a “negociações sérias” (que hoje Putin e Washington paralelamente não querem e sobre as quais a União Europeia parece incapaz de fazer uma proposta autônoma), porque “que vitória será essa, que plantará uma bandeira sobre um acúmulo de escombros?”. Pressionar por uma trégua, “mas não para recarregar as armas e retomar os combates, não! Uma trégua para alcançar a paz, por meio de uma verdadeira negociação, dispostos também a fazer alguns sacrifícios pelo bem do povo”.
O segundo pilar da proposta política de Francisco diz respeito ao cenário global. Trata-se de fazer uma revisão geral das relações internacionais. Ou seja, construir – nas suas palavras – um “modo diferente de governar o mundo”. Portanto, um pacto global como o pan-europeu de Helsinque em 1975. É significativo que a urgência também seja sentida pelo líder chinês Xi Jinping, que nesta semana exortou a um compromisso com uma “iniciativa de segurança global”, que leve em conta as legítimas exigências de proteção de todas as nações.
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Francisco e o impasse com Kiev: Santa Sé deve permanecer alheia aos alinhamentos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU