06 Abril 2022
"Seria um grave erro não perceber a proliferação do fundamentalismo em tantas regiões do planeta. Um fenômeno que atravessa todas as grandes religiões. Há fundamentalistas islâmicos, hindus, ortodoxos, protestantes evangélicos, católicos. O que une todos esses grupos é justamente a acusação a que Kirill se refere: o modelo liberal ocidental é visto como uma ameaça mortal às tradições religiosas", escreve Mauro Magatti, sociólogo e economista italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 05-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Durante a ensurdecedora manifestação realizada no estádio de Moscou, Putin justificou a invasão da Ucrânia como uma ação em defesa de “compatriotas perseguidos”, chegando a citar as palavras do Evangelho: "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos". Do ponto de vista do líder russo, o apelo religioso é estratégico: para sustentar sua narrativa sobre a grande Rússia e alimentar as nostalgias imperiais, Putin precisa de referências históricas, culturais e religiosas.
Além disso, as palavras de Putin foram antecipadas pelo polêmico discurso do primaz da Igreja Ortodoxa Russa, que nos primeiros dias da guerra chegou a afirmar que o conflito em curso "não tem natureza física, mas metafísica". Segundo Kirill, a ação de Putin é legítima porque visa se opor ao avanço de um Ocidente completamente laico, como demonstrado pelas manifestações de orgulhos gays – cuja primeira edição foi realizada em Kiev em 2019 – vistos como verdadeiros ritos de iniciação.
A ligação entre guerra e religião é tão antiga quanto o mundo. Quando se vai matar - e ser morto - as razões terrenas não são suficientes. É preciso recorrer a referências superiores capazes de justificar o homicídio e o sacrifício da vida. Só assim se pode encontrar a coragem de cruzar o limiar do ordinário para entrar no extraordinário. Mas tal instrumentalização da religião é inaceitável. Tanto para a comunidade política - como tal argumento pode ser usado para justificar uma invasão? - quanto para a religiosa, que se vê traída justamente em seus elementos fundamentais.
Não é por acaso que, na Bíblia, lodo após a revelação do Deus vivo - Ouve Israel, o Senhor é nosso Deus, é o único Senhor - segue imediatamente a proibição de toda instrumentalização. "Não pronunciar o nome de Deus em vão" significa exatamente isso: não é lícito ao homem chamar em causa Deus para justificar os próprios planos terrenos. Quaisquer eles sejam.
Embora muitas vezes esquecido, é um princípio fundamental para o desenvolvimento da civilidade.
A citação de Putin é, portanto, blasfema e pretende nos levar de volta a épocas pré-modernas. E, no entanto, o Ocidente faria bem em não subestimar a questão religiosa.
Seria um grave erro não perceber a proliferação do fundamentalismo em tantas regiões do planeta. Um fenômeno que atravessa todas as grandes religiões. Há fundamentalistas islâmicos, hindus, ortodoxos, protestantes evangélicos, católicos. O que une todos esses grupos é justamente a acusação a que Kirill se refere: o modelo liberal ocidental é visto como uma ameaça mortal às tradições religiosas. Nas mãos de autocratas e populistas, altamente habilidosos na instrumentalização, esse discurso chega à conclusão de que o Ocidente é o "inimigo".
Este é o principal recurso identitário no qual se enxerta grande parte da violência de nosso tempo: de Bin Laden a Putin, as piores atrocidades são legitimadas por uma aura de sacralidade.
O tema é crucial. Não se deve esquecer que a Europa (os Estados Unidos são um pouco diferentes a esse respeito) é o único continente onde a relevância da religião na esfera pública é reduzida a uma fagulha. Ao contrário do que acontece na Europa, no resto do mundo a grande maioria da população continua a ter uma orientação religiosa. Um número entre muitos: na Suécia, a porcentagem de pessoas que declaram filiação religiosa não chega a 20%. Nos países do Norte da África (Marrocos, Tunísia etc.) estamos em torno de 90%. Uma divergência demasiado grande que sinaliza diferenças profundas na interpretação da realidade.
Seja como for que você pense, descartar as crenças religiosas como algo anacrônico é um grave erro.
Ser realista significa considerar a relevância desse aspecto para evitar entregar uma carta importante para justificar as ações mais violentas nas mãos de quem nos ameaça. O princípio do secularismo que o Ocidente internalizou para a vida política dos Estados nacionais individuais está longe de ser aplicável à escala global.
A questão também desafia as igrejas de todos os credos. É claro, de fato, que em um mundo que se tornou pequeno, no qual devemos aprender a conviver e no qual o peso da religião continua importante, as grandes Igrejas devem assumir uma nova responsabilidade: romper mais claramente o vínculo entre religião e guerra. É urgente trabalhar por uma declaração solene afirmando a rejeição de qualquer justificativa religiosa para os conflitos armados. Declaração que, para poder sobreviver, deve andar junto com o outro grande tema da liberdade religiosa.
Um primeiro passo nesta direção foi dado pelo Papa Wojtyla em 1986 com o encontro em Assis. Uma tentativa que deve ser retomada e fortalecida. O Papa Bergoglio segue essa linha. Nas últimas semanas o Papa foi claro: a guerra é sempre odiosa e injusta; causa sofrimento inútil, é desumana; não é aceitável que a religião seja explorada para fins políticos, muito menos afirmar a fé através da violência. E a hipótese de uma visita a Kiev quer ir justamente nessa direção. Tirar de Putin - e de todos os autocratas e populistas que circulam pelo mundo - a legitimação religiosa ajudaria a esvaziar suas pretensões expansionistas.
Essa é a contribuição que as Igrejas podem trazer hoje para a paz.
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Sem vínculo entre religião e guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU