A Igreja machista

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13 Abril 2022

 

Em junho de 2002, em Passau, na Baviera, o bispo argentino Romulo Antonio Braschi, fundador em 1975 de uma Igreja Católica independente, conferiu a ordem sacerdotal a sete mulheres católicas.

 

O comentário é de Paolo Mieli, publicado em Corriere della Sera, 05-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Em julho, a Congregação para a Doutrina da Fé, cujo prefeito era o cardeal Joseph Ratzinger, invalidou a ordenação, condenando-a como “um grave delito contra a divina constituição da Igreja”.

 

Depois, admoestou as “sacerdotisas”, advertindo-as de que, se não se declarassem arrependidas e pedissem perdão pelo “escândalo” causado entre os fiéis, incorreriam na excomunhão. As “ordenadas” responderam ao futuro Papa Bento XVI acusando a Igreja de “provocar escândalo” pelo modo como discriminava as mulheres. E pediram um encontro ao Papa João Paulo II, propondo que ele estudasse um modo para modificar o direito canônico na parte em que se veta que o gênero feminino receba as ordens sagradas. O Papa Wojtyla não as recebeu, e, em dezembro, todas as sete foram excomungadas.

 

Outros seis meses se passaram, e, em 2003, duas delas, a teóloga Gisela Forster e a ex-freira beneditina Christine Mayr-Lumetzberger, anunciaram que haviam recebido, no dia 27 de junho daquele ano, a ordenação episcopal por parte de bispos católicos cujos nomes não foram revelados. E que, fortalecidas por tal ordenação, consagraram outras mulheres. Braschi, enquanto isso, havia sido rotulado pela Igreja como “episcopus vagans”.

 

Em ordem cronológica, Forster e Mayr-Lumetzberger são as mais recentes protagonistas do muito interessante livro de Adriana Valerio “Eretiche. Donne che riflettono, osano, resistono” [Heréticas. Mulheres que refletem, ousam, resistem], que será publicado pela editora Il Mulino no dia 7 de abril. Mulheres que, ao longo dos séculos, foram punidas justamente por terem refletido, ousado e resistido.

 

Simples almas jogadas na fogueira

 

Em junho de 1310, foi lançada às chamas uma jovem filósofa, a “beguina” de Valenciennes, Marguerite Porete. Foi queimada junto com o seu livro “O espelho das almas simples”, julgado como herético. Pelo menos em algumas de suas partes.

 

O inquisidor francês que a processou, o dominicano Guillaume Humbert, concedeu-lhe uma forma para escapar da morte: ela teria que se arrepender. Mas Porete foi inflexível e, como consequência, foi mandada para a fogueira. Fogueira que deveria ter apagado a memória da mulher e do seu escrito. Mas alguns exemplares do “Espelho” circularam anonimamente na Europa. Um foi encontrado pela estudiosa Romana Guarnieri seis séculos depois, em 1946. Guarnieri não só o trouxe de volta à luz, mas também conseguiu reconstruir a sua história.

 

Em 1524, foi processada pela Inquisição de Toledo (e condenada à prisão perpétua) a mística Isabel de la Cruz. Em meados do século XVII, a mando do arcebispo de Paris, foram deportadas as freiras jansenistas de Port Royal. Em 1912, a obra da “teóloga inquieta” Antonietta Giacomelli – destinada a solicitar uma reforma litúrgica na Igreja – foi posta no índice dos livros proibidos.

 

Todas essas mulheres, na companhia de muitíssimas outras, foram consideradas hereges, inimigas da fé. A começar pelo período entre os séculos II e III, em que os conceitos de ortodoxia e de heresia foram desenvolvidos com Justino, Irineu de Lyon, Tertuliano de Cartago e Hipólito de Roma. Depois, eles passaram a indicar quais textos deveriam ser incluídos no cânone das Escrituras e quais deveriam ser banidos para evitar que induzissem “experiências desagregadoras”. E, como os autores dos textos considerados canônicos eram homens, “o gênero feminino”, observa Valerio, “foi submetido aos critérios normativos elaborados por grupos de poder geralmente geridos por homens”.

 

As três profetisas

 

Antes que isso acontecesse, no século II, as profetisas da FrígiaMaximila, Priscila, Quintila – que provinham do “montanismo”, assim definido pelo nome do fundador, Montano, tiveram tempo de se manifestar. Essas mulheres, “com o seu carisma, haviam conseguido reunir seguidores e comunicar uma visão apocalíptica muito sugestiva”. Contra eles se lançou o já citado Hipólito, que acusou os seguidores de Montano de “se deixarem seduzir por femeazinhas” e de terem tido a audácia de afirmar que naquelas “mulherzinhas” havia “o melhor” do que se podia “encontrar em Cristo”.

 

Maria Dell’Isola reconstruiu muito bem toda a história em “L’ultima profezia. La crisi montanista nel cristianesimo antico” [A última profecia. A crise montanista no cristianismo antigo] (Ed. Il Pozzo di Giacobbe). O Cristo dessas profetisas poderia até estar na origem da sua heresia. De certa forma semelhante ao que seria encontrado na “Lenda do Grande Inquisidor” (um capítulo dos “Irmãos Karamazov”, de Fiódor Dostoiévski), em que Jesus, voltando à terra 15 séculos depois da sua morte, é preso justamente como herege. Na Igreja, talvez também por isso, prevaleceu o anátema de Hipólito. E, a muitas décadas do seu falecimento, em 550 consumou-se a derrota póstuma daquelas “mulherzinhas”.

 

Na época, o papa era Vigílio, fortemente puxado pelo imperador Justiniano. Foi então que, durante uma ação de represália abrangente contra os hereges, os textos das profetisas frígias foram jogados às chamas.

 

O cristianismo, reconhecido como religião do império no Edito de Tessalônica de 380, abriu um caminho “de clara oposição às correntes consideradas heréticas”, escreve Adriana Valerio, correntes “consideradas não ‘conformes ao ensinamento apostólico’ do qual a Grande Igreja, católica e ortodoxa, se fazia garantidora”.

 

Uma vítima ilustre dela foi uma matemática, astrônoma e mestra renomada da escola platônica de Alexandria do Egito, sobre a qual Silvia Ronchey escreveu em “Ipazia. La vera storia” [Hipácia. A verdadeira história] (Ed. Rizzoli). Hipácia foi “brutalmente assassinada” em 415 por instigação do bispo Cirilo, teólogo “defensor da fé”, “não isento de violências e intolerâncias contra judeus e comunidades heterodoxas”. Essa história talvez pudesse se limitar à luta contra o paganismo ou o inimigo de plantão a ser destruído. Mas não é assim, defende Adriana Valério.

 

A história de Hipácia “manifesta, antes, a intolerância pelo prestígio cultural de uma mulher que ensinava em lugares públicos – diante dos templos pagãos demolidos pela nova religião – pela sua liberdade de pensamento e por aquela sabedoria feminina não disposta a se submeter ao poder institucional masculino”.

 

A papisa

 

Além disso, deve-se considerar a estranha história de um papa mulher, que teria sucedido Leão IV em 855 e permanecido no trono pontifício por dois anos e meio. Alain Boureau a reconstruiu em “La papessa Giovanna. Storia di una leggenda medievale” [A papisa Joana. História de uma lenda medieval] (Ed. Einaudi). Essa história foi posta em circulação no fim do século XIII por dois dominicanos: primeiro Giovanni di Mailly e, alguns anos depois, Martino Polono.

 

Segundo este último, tratava-se de uma mulher de grande reputação, tanto que foi eleita papa por unanimidade. Durante o pontificado, foi engravidada por um familiar dela e deu à luz repentinamente, enquanto se dirigia de São Pedro ao Latrão.

 

O filho teria vindo à luz em um local entre o Coliseu e a Igreja de São Clemente, onde mais tarde ela seria sepultada. Boccaccio mostrou a sua crença na existência dessa pontífice mulher. E muitíssimos outros, como reconstrói Agostino Paravicini Bagliani em “La papessa Giovanna. I testi della leggenda” [A papisa Joana. Os textos da lenda] (Edizioni del Galluzzo).

 

Ainda por volta de 1400, na catedral de Siena, havia sido exposto, junto com os retratos dos papas, um busto da papisa. Que foi removido apenas dois séculos depois, a mando do Papa Clemente VIII (1592-1605). Duzentos anos depois.

 

O cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, a propósito do livro de Paravicini Bagliani, reiterou que se trata de uma história lendária “ainda pregada na mente de algumas pessoas um pouco inexperientes como uma espécie de advertência em relação ao tema do sacerdócio feminino”. Adriana Valerio vai além e considera essa história como um todo como um “aviso” contra a pretensão feminina de exercer um poder na Igreja.

 

As protagonistas às quais Adriana Valerio dedicou atenção foram objeto de uma difamação sistemática. Todas. A começar por Teodora e Marozia, da casa dos Teofilatti, que, na primeira metade do século X, tiveram grande influência na vida política romana e sobretudo no papado, orientando as suas eleições em benefício dos próprios filhos.

 

O historiador Liutprando de Cremona, bispo e também seu adversário político, não hesitou em fazer “uma descrição infame” delas, recorrendo aos temas muito abusados do adultério e da luxúria. Apenas “para manchar a memória delas”. Ridicularizar, caluniar, desacreditar, difamar, desonrar são “algumas armas usadas para silenciar experiências, demandas, aspirações, provocações”. Só agora estamos começando, até mesmo dentro da Igreja, a olhar para o que ficou enterrado debaixo dessas montanhas de difamação.

 

As beguinas

 

Deve-se levar em consideração, em primeiro lugar, a história das “beguinas” que apareceram nos Países Baixos no fim de 1100 e se espalharam rapidamente, sobretudo na Renânia, Provença e também na Itália centro-setentrional. A etimologia do termo “beguina” é incerta; alguns situam sua origem no antigo saxão beggem, que significa “rezar”.

 

Gilberto di Tournai as descreveu aos bispos reunidos no Concílio de Lyon (1274), definindo-as como “mulierculae” (mulherzinhas), dizendo que “se destacam pela sua sutileza e abertura às novidades”. Nada de perigoso, exceto que, explicava Gilberto, elas falam dos mistérios das Escrituras “no idioma gálico comum”. Esses mistérios eram até então “acessíveis apenas aos especialistas da própria Escritura”. Elas falavam desses segredos contidos nas escrituras. E falavam disso “em público, sem respeito, nos conciliábulos, nas praças”. Obtendo com essa sua atividade um imenso poder. Por isso, deviam ser cortadas. Quem se ocupou disso foi o Concílio de Vienne (1311), realizado na França perto do fim do processo contra Marguerite Porete, que as condenou.

 

Singular é a história de Guglielma de Milão, uma mulher de classe social alta, animadora dos “filii Spiritus sanctii”, que morreu perto do fim do século XIII (entre 1281 e 1282). Perto do seu falecimento, o seu túmulo tornou-se local de orações e de encontros; os monges acolhiam os numerosos peregrinos com pregações e festas comemorativas para promover o seu culto.

 

Mas, no novo clima do início do século XIV, foi aberto um processo contra ela e os seus discípulos. De modo que, em poucos anos, de santa, ela se tornou uma herege. Um caminho inverso ao que Joana d’Arc começaria a fazer em 1431.

 

O “machismo” do cânone

 

Depois, na idade moderna, nenhuma mulher inquirida foi considerada iniciadora de um movimento herético ou portadora de um pensamento teológico alternativo. Isso explica por que, em plena Contrarreforma, quando o cardeal Roberto Bellarmino compilou o catálogo das heresias em 1586, ele não anotou nenhuma mulher, mas apenas heresiarcas homens. Apesar disso, o número de mulheres rebeldes na Igreja nos quatro séculos seguintes foi aumentando.

 

Por isso, Adriana Valerio polemiza – delicadamente – com o “desafiador volume” “L’eresia. Dagli gnostici a Lefebvre il lato oscuro del cristianesimo” [A heresia. Dos gnósticos a Lefebvre, o lado obscuro do cristianismo] (Ed. Mondadori), de Marcello Craveri, “em que as experiências femininas são apenas anotadas”.

 

Falta ainda, escreve a estudiosa, “uma investigação historiográfica aprofundada sobre aquelas mulheres banidas ou condenadas como desviantes, heréticas, bruxas, subversivas histéricas e muito mais, dependendo de como foram estigmatizadas nas várias épocas históricas”.

 

A autor só salva “Donne e Inquisizione” [Mulheres e a Inquisição], organizado por Marina Caffiero e Alessia Lirosi (Edizioni di Storia e Letteratura). Mas a questão de fundo ainda hoje é “que os detentores da ortodoxia e os autores dos textos considerados canônicos foram homens”. O gênero feminino “foi submetido aos critérios normativos elaborados por grupos de poder geralmente geridos pelos homens”. E aquilo que essa circunstância determinou ainda não foi sequer levemente abordado.

 

Referências:

 

O volume a várias mãos “Donne e Inquisizione” [Mulheres e Inquisição], organizado por Marina Caffiero e Alessia Lirosi (Edizioni di Storia e Letteratura, 2020) aborda o tema da repressão eclesiástica contra o mundo feminino.

De modo mais geral, o livro “L’heresia” [A heresia] (Ed. Mondadori, 1996), de Marcello Craveri, se debruça sobre o pensamento heterodoxo no cristianismo.

O ensaio de Silvia Ronchey “Ipazia. La vera storia” [Hipácia. A verdadeira história] (Ed. Rizzoli, 2010) é dedicado à figura da filósofa morta em Alexandria do Egito, em 415 d.C.

Por sua vez, o recente livro de Agostino Paravicini Bagliani “La papessa Giovanna” [A papisa Joana] (Edizioni del Galluzzo, 2021), ocupa-se de um personagem lendário.

Por fim, sobre a heresia montanista: Maria Dell’Isola, “L’ultima profezia” [A última profecia] (Ed. Il Pozzo di Giacobbe, 2020).

 

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