23 Fevereiro 2022
"Não é por acaso que nas últimas horas se intensificam as violações da trégua na região de Donbass, visando provocar a intervenção militar da Rússia. Claro que ainda há espaço para a diplomacia, a paz ainda não está perdida, mas para reabrir a porta ao diálogo é preciso demolir os falsos mitos do Ocidente que nos levaram a esse impasse", escreve Domenico Gallo, juiz italiano e conselheiro da Suprema Corte de Cassação da Itália, em artigo publicado em Il Manifesto, 22-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo Karl Schmidt, “uma declaração de guerra nada mais é do que a identificação de um inimigo”.
Após o desaparecimento do inimigo histórico dos Estados Unidos e do Ocidente, constituído pela União Soviética, levou algum tempo para identificar na Rússia o novo inimigo, substituindo aquele que havia se dissolvido. É um processo que durou cerca de vinte anos. Começou em 12 de março de 1999 com a entrada, ou melhor, com a extensão da OTAN para a Polônia, República Tcheca e Hungria em flagrante violação aos acordos firmados com a antiga União Soviética pelos Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha, como consta do documento datado de 6 de março de 1991 recentemente publicado pelo Der Spiegel.
Continuou com a extensão da OTAN a todos os outros países da Europa do Leste, incluindo aqueles nascidos da dissolução da União Soviética, como os países bálticos. Agora a tempestade estourou em torno da possibilidade de extensão da OTAN e de seus dispositivos militares no território da Ucrânia, país atormentado por eventos violentos após a chamada revolução Maidan de 2014, que levou à separação da Crimeia e à eclosão de uma sangrenta guerra civil da qual nasceram as duas repúblicas separatistas de Donbass.
O convite para entrar na OTAN e o fornecimento de armas e apoio econômico são uma boa forma de reacender o conflito de Donbass, que nunca arrefeceu, e de pressionar a Ucrânia a não aceitar a solução de paz prevista pelos acordos de Minsk II de 2015.
Mapa da Ucrânia, no Leste Europeu (Foto: Reprodução | Google Maps)
Quando Biden anuncia que a Rússia iniciaria a invasão da Ucrânia ontem, hoje ou amanhã, ele fecha o círculo ao identificar definitivamente a Rússia como o inimigo.
Portanto a declaração de guerra já aconteceu e veio de Biden e de seu secretário de Estado Blinken, para além das conversas sobre o desejo de manter uma negociação aberta. Para que se passe da guerra das palavras à das balas, é preciso de um pretexto, é necessário construir um acidente, verdadeiro ou falso.
Não é por acaso que nas últimas horas se intensificam as violações da trégua na região de Donbass, visando provocar a intervenção militar da Rússia. Claro que ainda há espaço para a diplomacia, a paz ainda não está perdida, mas para reabrir a porta ao diálogo é preciso demolir os falsos mitos do Ocidente que nos levaram a esse impasse. Nosso ministro das Relações Exteriores, repetindo um mantra recebido do outro lado do oceano, reiterou que a escolha da porta aberta da OTAN para a Ucrânia e a Geórgia representa "um princípio irrenunciável", pois todo Estado soberano tem o direito de escolher as alianças que deseja. A pretensão da Rússia de excluir a OTAN da Ucrânia seria inadmissível porque seja uma expressão do desejo de estabelecer uma zona de influência sua na Europa.
Na realidade, mais do que à Rússia, a pretensão de estabelecer sua própria zona de influência na Europa deveria ser atribuída à OTAN, tendo englobado todos os países do Leste Europeu em seu dispositivo político e militar. Mas o problema é outro, onde está esse princípio irrenunciável sobre o qual Blinken e todos os aliados da OTAN se escabelam em coro? Cada país é soberano quando é livre para fazer as escolhas de política externa e militar que julgar mais apropriadas. No entanto, desde que a Carta das Nações Unidas foi estabelecida, a soberania dos Estados foi despojada de suas garras no melhor interesse da convivência pacífica entre as nações.
Não apenas a faculdade de declarar guerra contra outras nações foi excluída da soberania, mas os estados membros também devem abster-se da ameaça do uso da força (Artigo 2, parágrafo 4). É à luz deste princípio verdadeiramente irrenunciável que a "liberdade" da Ucrânia de aderir à OTAN na condição de Estado soberano deve ser avaliada. Nenhum estado é livre para ameaçar seus vizinhos. A extensão do dispositivo militar da OTAN às fronteiras da Rússia, a poucas centenas de quilômetros de Moscou, é a concretização de uma ameaça em sentido objetivo.
Nem vale a pena argumentar que a OTAN, segundo seu ato constitutivo, é uma aliança defensiva, incapaz de articular uma ameaça no sentido técnico ou político. Este carácter de Aliança, se é que alguma vez existiu, perdeu-se definitivamente a 24 de março de 1999, quando a OTAN agrediu a ex-Jugoslávia, bombardeando-a durante 78 dias, com o resultado de desmembrá-la, separando o Kosovo do resto do país. E quanto à redefinição de papéis, em abril de 1999, em Washington, com a definição de uma nova OTAN na ofensiva engajada agora em missões e em guerras em todo o mundo.
Para parar a escalada, a primeira coisa a fazer é se livrar desse falso mito. Afinal, a entrada na OTAN não depende da vontade da Ucrânia, mas da vontade dela própria que, prosseguindo a sua estratégia de expansão, na cúpula de Bucareste de 2 de Abril de 2008, aprovou a chamada política das “portas abertas”.
O que não é dito é que a entrada da Ucrânia na OTAN deve ter a luz verde de todos os seus países membros, incluindo a Itália. Uma declaração de nosso astuto ministro das Relações Exteriores de que a Itália não aceitaria a entrada da Ucrânia na OTAN seria suficiente para colocar areia nas engrenagens da máquina de guerra e bloquear a passagem da guerra das palavras para a guerra das balas.
Será que Di Maio - que inclusive lembrou no Parlamento o artigo 10º do Pacto do Atlântico, que diz que toda expansão deve considerar a segurança dos aliados - e Draghi terão a coragem de evitar a guerra, desobedecendo aos EUA?
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Direito internacional e falsos mitos. Artigo de Domenico Gallo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU