10 Fevereiro 2022
Mariana Mazzucato (Roma, 1968) é professora de economia na University College London (UCL) e uma assessora cobiçada por diferentes governos e líderes políticos. Em seu currículo, aparecem nomes como Alexandria Ocasio-Cortez, o Vaticano, a OMS, a ONU e a OCDE.
Mazzucato é admirada e temida por suas teses fortes e suas críticas diretas à inação de alguns estados ou à ganância de parte do setor empresarial. Autora de diversos livros, como No desaprovechemos esta crisis (2020) e Economia de missão: um guia ousado e inovador para mudar o capitalismo (2021), afirma que algo precisa mudar para não enfrentarmos, repetidas vezes, a crise da marmota.
Nós a entrevistamos em Barcelona por ocasião de sua nomeação como Doutora Honoris Causa, pela Universitat Oberta de Catalunya.
A entrevista é de Sandra Vicente, publicada por El Diario, 07-02-2022. A tradução é do Cepat.
Em seu livro ‘No desaprovechemos esta crisis’, você afirma que a COVID é uma oportunidade para mudar o capitalismo. Considera que os governos estão aproveitando essa oportunidade?
Alguns sim e outros não. Por exemplo, na França, os fundos de recuperação que foram concedidos à indústria estão condicionados à transição verde. Outros países decidiram investir em sua própria capacidade e nos serviços públicos, como é o caso do Vietnã. Por outro lado, há os que continuam com uma política de terceirização, dando dinheiro à empresa privada, sem condicionalidades.
Penso que a verdadeira pergunta é: como podemos nos certificar que os governos estão aprendendo a lição e como os forçamos a isso? Isso não pode se repetir, porque milhões de pessoas morreram. A pandemia foi inevitável, mas a falta de preparação não é. E não estávamos preparados, como não estivemos na crise financeira ou na climática.
Existem crises que são inevitáveis, como a COVID, mas há outras das quais tínhamos evidências. Por exemplo, a ciência vem nos avisando sobre a crise climática desde 1970. Por que as próximas crises deveriam ser diferentes?
Essa é a questão: vamos aprender ou dentro de trinta anos continuaremos tendo pandemias? A ciência fez o seu papel, que é criar uma vacina, mas continua existindo milhões de pessoas sem se vacinar, e não falo daqueles que não querem, mas dos que não podem devido à falta de vacinas.
Não é apenas um problema de capacidade produtiva, mas se baseia na recusa em compartilhar o conhecimento por parte de empresas como a Pfizer. Não é que não saibamos o que temos que fazer, é que alguns escolhem não agir, assim como com a crise climática. Se não começarmos a nos mover agora, os problemas serão maiores amanhã. Superar essas crises requer visão a longo prazo, mas há muitos governos e empresas imediatistas.
Digamos que uma solução seria pressionar a Pfizer ou criar uma farmacêutica pública. Avalia que o problema é a falta de pensamento a longo prazo ou a falta de coragem para enfrentar a indústria?
Ambas. Com a crise climática vemos que alguns governos tomam decisões que vão no sentido de compartilhar os custos da crise energética para evitar que os cidadãos paguem contas de luz exorbitantes, enquanto as empresas ganham milhões. A crise da COVID não deveria se tornar um cassino no qual o setor privado se enriquece.
É preciso muita coragem para garantir que os preços das vacinas sejam regulados, mas também para gerar processos de pesquisa científica focados no bem comum. Normalmente, em economia falamos de bem público, que se tornou uma correção de algo que o setor privado não está fazendo bem.
Precisamos que o bem comum seja o objetivo dos governos para evitar que tudo fique nas mãos de filantropos de caridade. Esse é o principal problema do modelo capitalista que temos.
Você defende que os governos devem se concentrar em investir e não só em consertar o que está dando errado. Com os fundos Next Generation Eu (NGEU), os estados têm capacidade para isso. Qual é a sua avaliação?
Os NGEU são muito refrescantes. Lembremos que na crise de 2008 a condição para o financiamento europeu foi a austeridade. A Espanha precisou diminuir o seu déficit e, para isso, cortou em 30% o financiamento público para o desenvolvimento e a pesquisa, o que foi realmente estúpido e, como vemos agora, autodestrutivo.
A fórmula atual é melhor porque, em teoria, os NGEU estão condicionados a investimentos públicos em digitalização e transição climática. Mas a questão agora é se temos a capacidade para gastar esse dinheiro.
É que na Itália grande parte dos fundos europeus recebidos durante as últimas décadas tiveram que ser devolvidos porque não foram gastos. É um peixe que morde o seu próprio rabo: precisamos de investimentos em serviços públicos para ter estruturas de governabilidade fortes e dinâmicas.
Na Espanha, pelo menos optou-se pela fórmula de colaboração público-privada para utilizar os NGEU. É a forma correta de investi-los?
Penso que é o setor público que deve liderar o processo, nunca o privado, e sempre com base em um objetivo concreto, seja ir à lua ou retirar o plástico dos oceanos. E, sobretudo, deve ser um objetivo que leve em consideração as necessidades das pessoas. Caso contrário, o Estado ignora suas obrigações e se torna um mero financiador de uma indústria sem vocação pública e abre espaço para a corrupção ou lobbies.
De antemão, não tenho um problema com as colaborações público-privadas, mas com quem define o objetivo. O Estado é que precisa ter o bastão, mas isso não basta: é imprescindível escutar a opinião e garantir a participação dos cidadãos. A saída da crise deve acontecer de baixo para cima.
Mas atualmente vemos, por exemplo, nos setores da saúde ou tributário, que é a indústria que define os objetivos. Veja o que está acontecendo com o espaço: é Elon Musk quem dita as regras. Seria vergonhoso deixar as empresas traçarem a saída da crise.
Mesmo que os governos decidam os objetivos, como evitamos que as empresas utilizem artifícios como o ‘greenwashing’ para ser financiadas?
Fazendo com que as mudanças solicitadas à indústria sejam obrigatórias. Surgiram muitas propostas da COP26, mas deveriam ter se tornado normas que servissem para influenciar no campo de quem está a bola das soluções. Se essas propostas são apenas voluntárias, continuamos tendo grandes clubes de empresas que limpam sua imagem com uma narrativa verde, mas não mudam seus valores.
No momento, o que temos são empresas como a Pfizer que jogam com os governos e só quando precisamos delas entendemos que sua maneira de trabalhar é muito problemática. Sempre haverá greenwashing, mas as decisões políticas podem dificultar esses artifícios.
Considera que os governos estão se concentrando muito na recuperação econômica e deixando de lado o cuidado com os serviços públicos, como é o caso da saúde?
Espero que não. Embora não tenha lido nenhuma análise que explique qual é o rastro global do dinheiro e para onde está indo. E se não vai para o sistema global de saúde, temos um problema. Uma das coisas que temos que aprender da pandemia é que devemos fortalecer o sistema de saúde em casa, mas também no resto do mundo, pois enquanto houver regiões nas quais a vacina não chega, o vírus continuará voltando para nos morder.
Não acredito que já internalizamos isso, e prova disso é o apartheid de vacinas. Só enviamos as que não precisamos e essa falta de solidariedade é um crime. Se não podemos agir bem durante uma crise, quando agiremos? Martin Luther King dizia que as pessoas devem ser julgadas em épocas ruins, não nas boas. O mesmo serve para os governos e as empresas: não me importa o que você possa fazer no futuro, se agora que precisamos de cooperação não estiver à altura.
A crise atual é, além de global, tripla: sanitária, econômica e climática. Avalia que temos uma visão ampla suficiente para geri-la ou estamos nos concentrando em cada um desses três aspectos separadamente?
Isso é exatamente o que acontece e aí está o desafio. E já faz muito tempo. A saúde e a crise climática devem estar no centro da economia. Não adianta ter um ministério das finanças que siga a velha política e depois outros ministérios que façam pequenas ações aqui ou ali. O ministério da economia deveria englobar todos esses desafios porque, caso contrário, chegamos a pactos como o European New Green Deal que não tem impacto a nível financeiro.
E outro aspecto importante é entender que a crise é global e que precisamos interagir com outros países e regiões do mundo para resolvê-la. A União Europeia tem alguns valores dentro de suas portas, mas também devem ser respeitados fora de suas fronteiras, para não realizar ações que causem danos em países que dependem da Fundação Bill Gates para resolver o problema. Ter e defender alguns valores está certíssimo, mas não basta só a palavra, pois, caso contrário, é como com o greenwashing: mudar a narrativa, mas continuar fazendo o mesmo.
Voltando aos NGEU: um dos medos é que se tornem dívida. Como evitar que isso aconteça?
Isso seria um grande problema. Normalmente, quando pensamos em dívida, pensamos na pública, mas a complicada é a privada. Nos últimos meses, a dívida privada cresceu a níveis prévios a 2008 e isso foi justamente o que causou a crise de 2008.
Infelizmente, além de uma crise sanitária e climática, estamos plantando as sementes de outra terrível crise financeira. Por isso, se nos concentrarmos em reativar a economia fomentando apenas o consumo ou o resgate de empresas, sem impor condições, caminhamos direto para o desastre.
A dívida privada se assemelha a uma família: quando você não consegue pagar, vai à falência, com tudo o que isso implica. A dívida pública é diferente, sobretudo em países com uma moeda solvente, que podem criar dinheiro. Mas é preciso cautela para não cair na inflação. Na União Europeia contamos com o euro e se caminharmos em bloco e nos certificarmos de atuar no mesmo ritmo e de forma equilibrada, não deve haver esse risco.
Avalia que a União Europeia atuará como um bloco ou voltará a se dividir entre Europa central e a das periferias?
Na anterior crise, as condicionalidades aumentaram as diferenças. Em vez de austeridade, a aposta deveria ter sido no investimento em um banco público solvente, em saúde e educação. O problema é que, naquele momento, soava um mantra que está reaparecendo e que diz que para cortar a dívida pública é preciso cortar no público. E não é assim.
Não digo que não exista muitas áreas que podem sofrer cortes, mas o que realmente estamos cortando é a nossa linha de vida. Agora temos entre as mãos um montão de dinheiro para gastar em pouco tempo. E depois? Se não o investirmos bem, caberá fazer cortes, o que nos tornará mais frágeis diante da próxima crise. Temos que condicionar os investimentos para que o setor privado não se enriqueça à custa do bem-estar coletivo.
Sabemos fazer isso?
Podemos. Temos. Devemos. Mas não é suficiente dizer isso, é preciso passar da teoria à prática e exigir uma prestação de contas de governos e empresas. Por exemplo, temos que olhar nos olhos da União Europeia e dizer: “Sério, um Green Deal? Concordo, mas então porque você tem uma taxonomia que nos diz que a energia nuclear e o gás são investimentos verdes?”. Vamos, sejamos sérios! Devemos gritar os nomes de governos e empresas que realizam más práticas para aprender, porque podemos fazer melhor.
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“Seria vergonhoso deixar as empresas traçarem a saída da crise”. Entrevista com Mariana Mazzucato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU