18 Janeiro 2022
A profecia dos canonistas não burocráticos (e dos teólogos não abstratos) se torna cada vez mais necessária: para que as instituições falem oficialmente novas linguagens e para que as linguagens sejam símbolos eficazes de uma nova compreensão institucional.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 17-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois de ter lido com grande interesse o que U. Del Giudice e P. Consorti escreveram nos últimos dias em seus blogs (cujas contribuições podem ser lidas [em italiano] aqui e aqui), proponho um pequeno percurso histórico sobre o ministério episcopal.
Disse percurso: mas em que sentido? Vou refletir sobre o nível sistemático e sobre o nível histórico. Mas devo iniciar a partir daqui, de nós, do nosso tempo marcado pela pandemia. Gostaria de levantar uma questão que parece ser decisiva para a nossa breve investigação: perguntamo-nos por que, com poucas e luminosas exceções, os bispos, nestes dois últimos anos de pandemia, falam muitas vezes como “notários”, como “advogados”, citando quase apenas códigos, normas, leis? Por que é que, diante do drama de uma condição tão precária e difícil, citam quase apenas “normativas”, “disposições” e “decretos”?
Tento responder relendo brevemente a nossa história católica, que mudou profundamente no último século. Para entender isso, a referência “normativa” é inevitável. Sem ela, corre-se o risco de falar à toa.
Para tentar entender, comecemos a partir de alguns dados elementares, mas que muitas vezes escapam à percepção comum:
- uma primeira comparação útil é entre os dois Códigos de Direito Canônico, de 1917 e 1983.
a) em 1917, o cânone 949 distingue no “De Ordine” três ordens maiores (prebiterato, diaconato e subdiaconato) e três ordens menores (acolitado, exorcistado, leitorado e hostiariado). O cânone 950 acrescenta a isso a ordenação episcopal e a tonsura. O Código de 1917 – e a experiência eclesial até o Vaticano II e ao código posterior (1983) – permanece imerso nessa visão, na qual o bispo é “produzido” não por um sacramento, mas por um simples “sacramental”.
b) em 1983, o cânone 1.009 de forma lapidar diz: “Ordines sunt episcopatus, presbyteratus et diaconatus”.
Obviamente, entre os dois textos, está o Concílio Vaticano II, que faz uma grande revolução no modo de conceber o papel e a estrutura da “constituição hierárquica da Igreja” (Lumen gentium, capítulo III, 18-29).
Essa diferença de perspectiva é totalmente decisiva.
O que muda nesse período que amadurece de 1962 a 1983? Mudam pelo menos quatro coisas fundamentais:
- a posição do “ministério ordenado” vem depois do mistério da Igreja (I) e do Povo de Deus (II);
- para uma longa tradição, os sete graus da ordem não incluíam o episcopado, que agora é reintegrado ao seu lugar de excelência e de plenitude sacramental, junto com uma radical reavaliação dos “sete graus”;
- na visão anterior, ao lado da dimensão “sacerdotal” – que era conferida pelo “sacramento da ordem”, que culminava no sacerdote-presbítero –, o episcopado acrescentava um “poder de jurisdição”, que unia poder doutrinal e poder de governo, mas fora do sacramento!
- essa compreensão secular gerou o fenômeno da “defasagem” a partir do qual partimos. Tanto na pessoa do bispo quanto no povo de Deus, é fácil que ainda seja forte a tensão entre “autoridade sacramental” e “poder de jurisdição”.
De onde vem a mudança? Poderíamos dizer que a partir do fim do modelo medieval-moderno de interpretação do ministério ordenado.
Há pequenos e grandes mal-entendidos na passagem entre o modelo medieval e o modelo moderno (tridentino).
A lição da Idade Média, que refletiu com extrema liberdade sobre o ministério na Igreja, foi assumida de maneira nova e mais rígida pela época moderna, que, enquanto isso, amadureceu novas evidências e novos constrangimentos. O progressivo centralismo e o surgimento de uma “congregação dos bispos” no fim do século XVI impuseram uma notável aceleração das formas mais acentuadas de centralização. A ponto de a “eleição do bispo” parecer uma coisa quase inconcebível.
A mudança no modelo de compreensão do episcopado – que o Concílio Vaticano II restaurou com uma operação bastante complexa – dá um duplo salto mortal nessa história:
a) devolve ao episcopado a sua dignidade sacramental, depois de um milênio de exclusão do bispo do “caminho” de subida à plenitude do sacramento, pensado como “ordem sacerdotal”, cuja figura culminante era o padre;
b) relê o “poder de jurisdição”, que antes definia integralmente o bispo, apenas como um dos “tria munera” que o qualificam (realeza, profecia e sacerdócio).
Vejamos com maior precisão cada um desses dois aspectos.
O episcopado se torna a “plenitude do sacramento da ordem”. Essa é uma afirmação que soa muito nova. Porque a reconstrução medieval e depois moderna concebeu dois tipos de potestas:
- potestas ordinis: que se realizava na consagração eucarística e na absolvição dos pecados, e sobre o qual a Igreja “não tinha poder”;
- potestas iurisdictionis: que dispensa o sacramento da ordem (ficando fora dele) e que exerce o poder doutrinal e de governo, como âmbito de poder eclesiástico.
Agora, o modelo volta ao estilo dos primeiros séculos: pensa segundo uma “forma unitária” que se articula em três “tarefas” e “dons”, os “tria munera”:
- múnus profético: estar em Cristo profeta/mestre: anúncio da palavra;
- múnus régio: ser pastor/autoridade: apascentar as ovelhas, governar a Igreja;
- múnus sacerdotal: ser sacerdote, presidir o culto eclesial.
Note-se que, nessa releitura conciliar, a estrutura dos “três dons”, originalmente referidos principalmente a Cristo, caracteriza todo o corpo eclesial, do batizado até o bispo.
Desse modo, ocorre uma série de modificações decisivas não tanto e não apenas para o bispo, mas também para a autoconsciência eclesial.
Se aplicarmos essa diferença de modelos à relação com a “Palavra”, decorrem interessantes consequências:
- a autoridade episcopal é integralmente sacramental e se articula de modo harmonioso segundo o modelo “comum” a toda a Igreja;
- a autoridade doutrinal se fundamenta na profecia da pregação. A “Dei Verbum” é o fundamento da autoridade episcopal. Essa autoridade está abaixo, não acima da palavra. O resultado é uma “releitura invertida” da tradição: se, para Trento, na escola da Idade Média, a relação com a palavra, por parte do bispo, corre o risco de se reduzir ao “controle sobre as palavras lícitas”, é evidente que isso depende do fato de que essa “faculdade” é pensada como “poder de dizer direitos e deveres”. A não sacramentalidade da autoridade reduz o seu impacto profético, pois carece da proeminência do dom. O fato de que hoje seja o “múnus profético” que caracteriza o “sacramento da ordem no grau do episcopado” torna possível uma reavaliação radical do ministério episcopal, também sobre a Palavra. E torna concebível que um bispo, mesmo diante da pandemia, não se pergunte acima de tudo o que é lícito ou ilícito, mas como anunciar o Evangelho!
Esse é o modelo novo, que ainda estamos aprendendo. E fazemos isso na inércia do modelo velho. Foi isso que aconteceu nos últimos 50 anos. O tempo ainda é muito curto, talvez sequer tenhamos notado a diferença. Também em relação a isso nós formalmente mudamos de “léxico”, mas muitas vezes mantivemos o “cânone” anterior, que desmente o léxico novo, impondo simbólicas, imaginários e expectativas “velhos” e “superados”.
Com efeito, apesar de todas essas limitações, a recuperação da qualidade sacramental do episcopado permite elaborar adequadamente uma “experiência eclesial” pensada não mais e não tanto como “societas perfecta”, mas como “mistério de comunhão”, “povo de Deus”, “corpo de Cristo”, “templo do Espírito Santo”. Não se trata de uma “linguagem extrínseca”, mas de uma nova compreensão institucional, alimentada por simbólicas bíblicas e não pelo imaginário feudal ou cavalheiresco.
E note-se bem: para que tudo isso possa ocorrer na verdade e na realidade, sem deslizar em afirmações retóricas ou até hipócritas, a Igreja deve poder viver cada um de seus atos – a partir da ordenação de um bispo e da sua definição – segundo essa lógica antiga e nova, e não em contradição com ela. Nessa releitura, os “títulos feudais” – como o título de “arcebispo ad personam” – são o sinal límpido da inércia de uma leitura “não sacramental” do episcopado.
E é evidente que aquilo que uma longa tradição “cerimonial” se permitiu elaborar acerca de uma realidade que era teologicamente considerada como “não sacramental” – e sobre a qual a Igreja exercia então legitimamente o seu poder – hoje não é mais possível com base na noção explicitamente “sacramental” do episcopado.
Desse modo, o Concílio atou as suas mãos ao cerimonial da Cúria. Que tarda em se adequar, mas cujo destino “cerimonial” está marcado, com autoridade e de modo irreversível. Temos apenas que tirar as devidas consequências, no nível da linguagem a ser falada e no nível das normativas a serem obedecidas. Tanto no primeiro quanto no segundo, a Igreja pode reconhecer serenamente que tem plena autoridade, sem estar vinculada de forma irreformável àquilo que havia antes, pelos “bons tempos de antigamente”, que certamente são verdadeira tradição, mas em parte viva e em parte morta, em parte saudável e em parte doente.
Por isso, a profecia dos canonistas não burocráticos (e dos teólogos não abstratos) se torna cada vez mais necessária: para que as instituições falem oficialmente novas linguagens e para que as linguagens sejam símbolos eficazes de uma nova compreensão institucional. Quando a linguagem desmente a teologia e a teologia não se ocupa dos atos concretos, uma luz vermelha se acende no painel, e o motor precisa de uma profunda revisão, feita com competência e com decisão.
Caso contrário, o carro não só irá parar, mas também sairá da estrada e poderá até causar sérios danos a si mesmo e aos outros.
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O bispo como “funcionário”: breve história de uma questão. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU