12 Dezembro 2021
“O Papa, como ele mesmo admite, não leu este relatório [da Ciase], não sabe o que pensam os bispos da França, mas faz um comentário acompanhado de argumentos que sabemos serem centrais no texto dos membros da Academia Católica. Assim, o chefe da Igreja Católica ignora o trabalho da autoridade legítima da Igreja da França, mas é ‘alimentado’ pelas acusações feitas por seus detratores”. A reflexão é de René Pujol, jornalista, cidadão e ‘católico em liberdade’, no seu blog Cath’lib, 09-12-2021. A tradução é de André Langer.
No início da semana (domingo, 12 e segunda-feira, 13 de dezembro), a presidência da CEF (Conferência Episcopal Francesa), presidida pelo bispo Eric de Moulins-Beaufort, se reúne no Vaticano com o Papa Francisco. O encontro acontece em um contexto particularmente pesado. Houve, primeiramente, a publicação do texto de oito membros da Academia Católica da França, extremamente crítico tanto em relação ao cálculo das vítimas feito pela Ciase (Comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja da França), como em relação às suas recomendações e ao acolhimento proporcionado pelo episcopado, superioras e superiores maiores.
Depois, no dia 6 de dezembro, no avião que trouxe o Papa Francisco da Grécia a Roma, aconteceu a sua estranha entrevista coletiva. Respondendo às perguntas dos jornalistas, ele admitiu que não leu o relatório Sauvé nem discutiu as suas decisões com os bispos da França. Mas seus comentários pareciam ter se originado dos argumentos desenvolvidos no texto acusador dos acadêmicos. O suficiente para criar um mal-estar! Em outras palavras, agora se faz necessário um esclarecimento. Sem o apoio oficial do Papa para o que eles já impediram e que é de sua responsabilidade, sem o seu compromisso de, pelo menos, “olhar” as recomendações que interpelam o Magistério, então se deve temer o pior. Isto é, uma erosão da autoridade dos bispos e uma profunda divisão dos católicos.
Não é preciso voltar aqui às expectativas do texto enviado a Roma pelos oito membros da Academia Católica da França. Eu dediquei a ele uma longa postagem neste blog para que todos possam consultá-lo. É difícil ver com clareza o número real de renúncias que teriam ocorrido após esse golpe, mesmo que os signatários tivessem o cuidado de explicar que não estavam responsabilizando a Academia em si, mas as pessoas. Sabemos que Jean-Marc Sauvé, o bispo Moulins-Beaufort e a irmã Véronique Margron “bateram a porta”; outros nomes circularam: o sociólogo das religiões Jean-Louis Schlegel, a editora-chefe do jornal católico La Croix Isabelle de Gaulmyn, o professor Jean-François Mattei… Até hoje, a debandada mais espetacular é, sem dúvida, a das senhoras Chantal Delsol e Dominique de Courcelles, que escrevem: “Escandalizadas com o governo autocrático da Academia Católica e com o texto sobre o relatório Sauvé (...) consideramos obsceno criticar os números quando se trata de um crime coletivo e de querer impedir a recepção da Ciase pelo Papa Francisco”. (1)
Mas o golpe de misericórdia veio, no dia 6 de dezembro, com a entrevista coletiva surrealista que o Papa Francisco concedeu a bordo do avião que o trouxe de volta da Grécia a Roma. Não vou falar aqui da sua “leitura” da renúncia de Michel Aupetit, arcebispo de Paris, que não é o assunto deste artigo, mas o deixa atônito. Quanto à menção ao relatório da Ciase, é simplesmente incompreensível. O Papa, como ele mesmo admite, não leu este relatório, não sabe o que pensam os bispos da França, mas faz um comentário acompanhado de argumentos que sabemos serem centrais no texto dos membros da Academia Católica. Assim, o chefe da Igreja Católica ignora o trabalho da autoridade legítima da Igreja da França, mas é “alimentado” pelas acusações feitas por seus detratores. A pior coisa que se poderia imaginar: a vitória da denúncia – sabemos que o referido texto veio acompanhado de uma carta que ficou em segredo – e das manobras de alguns, dentro da cúria, que parecem determinados a torpedear seu pontificado.
Ao fazer isso, o Papa Francisco não se deu conta de que estava se retratando a si mesmo ao parecer contestar o caráter “sistêmico” dos escândalos que ele reconheceu e definiu no que chamou de clericalismo; que se retratou ao relativizar, sem conhecê-las, as recomendações da Ciase no momento em que convidava os batizados a se expressarem livremente numa vasta consulta sinodal onde a contribuição de alguns fiéis são justamente essas quarenta e cinco recomendações. Que indiretamente renegou o trabalho da comissão Sauvé com base em meros boatos, semelhantes aos que, no mesmo plano, denunciou o efeito perverso no caso Aupetit. Que ele reprovou, na esteira, os bispos da França e as superioras e os superiores maiores das congregações, dando crédito às acusações feitas contra suas decisões corajosas.
Como explicar essa confusão? Sabemos que este ou aquele acadêmico signatário tem, em Roma, retransmissores eficazes e bem colocados para fazer chegar o seu protesto aos ouvidos do Santo Padre. E nos perguntamos qual pode ter sido o papel do próprio Núncio Apostólico em Paris. Os ecos mostram que as vítimas, sejam padres abusados, em visita à Nunciatura não foram ali recebidas com excesso de compreensão e de cortesia. Por último, não está excluído que a cúria, onde os monsignori de origem italiana são legiões, também esteja sob a influência do episcopado italiano, que teme mais do que tudo o efeito atraente das “comissões independentes” responsáveis por esclarecer os abusos sexuais em alguns países, inclusive os deles, onde o peso da instituição eclesiástica permanece considerável.
A isso devemos adicionar a incerteza compartilhada por muitos observadores e vaticanistas a respeito das reais intenções do Papa Francisco. O seu pontificado, deste ponto de vista, deu uma no cravo e outra na ferradura: inextricavelmente entrelaçando decisões corajosas, erros óbvios de apreciação como no caso do Chile, comentários infelizes ou provocadores, lentidões ou renúncias incompreensíveis que levaram à sucessiva renúncia de vários membros leigos da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores. Eu mesmo publiquei neste blog, desde 2017, pelo menos três posts nesse sentido, ditados por acontecimentos da atualidade que evocam “a sombra de uma dúvida”, depois “a suspeita” antes de optar por um registro mais conciliador: “apenas mais um esforço”… Com o pano de fundo desta questão, que permanece até hoje sem resposta: deveríamos ler nessas disfunções a obstrução irredutível de membros da administração vaticana hostis à vontade reformadora do Papa, ou o fruto de sua própria indeterminação ligada ao fato de que não seria essa a urgência de seu pontificado?
Basta dizer que a audiência da qual participarão no domingo e segunda-feira [12 e 13 de dezembro] os dirigentes da CEF – Eric de Moulins-Beaufort, presidente, Dominique Blanchete e Olivier Leborgne, vice-presidentes, e Hugues de Woillemont, secretário geral – será decisiva. Conseguirá a delegação francesa partilhar com o Papa a sua leitura do relatório da Ciase, a legitimidade das decisões tomadas em Lourdes em harmonia com as da Corref (Conferência dos Religiosos e Religiosas da França), a inadmissibilidade de um panfleto acadêmico obcecado pela defesa de um catolicismo institucional e patrimonial, a necessidade que Roma tome pelo menos nota da existência das recomendações do relatório Sauvé que, de fato, são da exclusiva responsabilidade do Magistério? Conseguirá ela convencer o Papa Francisco a anunciar uma nova data para o encontro, inicialmente iniciado pela Casa Pontifícia, com os membros da comissão Sauvé? (2) Se essas perguntas fossem deixadas sem uma resposta clara, isso poderia pressagiar um futuro difícil para a Igreja na França.
Porque, não vamos nos iludir, a bela unanimidade do voto na Assembleia Plenária de Lourdes não extinguiu as divergências que poderiam ressurgir, a favor de uma retratação papal, se estivessem mergulhadas em um piedoso silêncio! Existem cerca de vinte bispos que estão realmente relutantes com as conclusões da comissão Sauvé, à qual algumas das pessoas “silenciosas” podem muito bem aderir, sem dúvida prontas para algumas reversões se o equilíbrio de poder for revertido. Nada nos garante que nessa hipótese o presidente da CEF não poderia engajar sua presidência como ameaçou fazer em Lourdes? O que abriria uma grande crise. Com o risco, já referido, de ver um certo número de católicos exasperados colocar-se à margem da instituição e dirigir-se sem reservas às autoridades civis para constranger a Igreja Católica, pela lei, lá onde ela recusaria as decisões necessárias para a proteção das pessoas.
E, ao contrário, qualquer “bênção” pontifícia, se ela consolidar a Presidência da CEF, não será suficiente para convencer e constranger alguns bispos que todos sabem que são os únicos senhores de sua diocese. Mas eles podem muito bem, às vezes com o apoio de alguns de seus sacerdotes e de alguns fiéis, permanecer surdos às injunções das autoridades episcopais. Portanto, sim, devemos salvar o soldado Moulins-Beaufort, hoje apoiando sua “peregrinação” a Roma, amanhã convidando os católicos da França a influenciar seus bispos para que a luta contra os abusos sexuais e os abusos de toda espécie que continuam a assolar a nossa Igreja, não fique letra morta. O que não seria nada mais do que a mensagem do próprio Papa Francisco em sua carta ao Povo de Deus do verão de 2018.
1. Chantal Delsol é professora universitária (filosofia), membro do Instituto. Dominique de Courcelles também é professora universitária e diretora de pesquisas da Université de Paris Sciences Lettres (ENS-CNRS)
2. Um artigo do correspondente do La Croix em Roma lança luz sobre as razões do adiamento do encontro entre Francisco e os membros da Ciase.
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França. Devemos salvar o soldado Moulins-Beaufort, presidente da Conferência dos Bispos da França - Instituto Humanitas Unisinos - IHU