03 Dezembro 2021
Dos Estados Unidos, onde vive há mais de 20 anos, o cientista político argentino e doutor em Assuntos Internacionais Aníbal Pérez-Liñán reflete sobre as manifestações de extrema direita no território americano e alerta para o perigo de que discursos antidemocráticos sejam apoiados.
Em entrevista, afirma que “a direita está se fragmentando” em múltiplas expressões e que as redes sociais facilitam o surgimento repentino de líderes políticos radicalizados, que dão “voz ao que as pessoas não se animam a dizer”.
Entre o descontentamento generalizado com a democracia – 25% dos cidadãos na América não concordam que a democracia seja melhor do que qualquer outra forma de governo, segundo os dados recentes do Barômetro das Américas – e o turbilhão de informações, “é difícil fisgar a atenção do público, se os discursos são moderados”, explica o doutor e pesquisador da Universidade de Notre Dame, localizada no estado de Indiana.
A entrevista é de Inés Beato Vassolo, publicada por La Nación, 27-11-2021. A tradução é do Cepat.
Em sua opinião, quais são as possibilidades de que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, seja reeleito em 2022 ou que um grupo de direita paralelo se consolide como alternativa à eventual candidatura de Lula da Silva?
Hoje em dia, a popularidade de Bolsonaro gira em torno de 20%. Isto sugere que as possibilidades de que seja reeleito são baixas e que Lula venceria no segundo turno. Mas, sim, nota-se um surgimento, dada a frustração de seus próprios eleitores, de diferentes alternativas de direita, uma delas apoia Sergio Moro, ex-juiz da Lava Jato e seu ex-ministro, que tem cerca de 11% da intenção de voto. Assim como em muitos outros lados, a direita está se fragmentando.
Por mais que a imagem de Bolsonaro desmorone, os brasileiros insistem em gerar espaços políticos de direita. Por quê?
No caso do Brasil, há um voto anti-Lula que continua sendo muito forte e busca canalizar-se em diferentes expressões. Foi o voto que deu a vitória a Bolsonaro, mas depois os eleitores descobriram que foi uma má ideia e agora estão buscando outras alternativas.
Pensando na metáfora do ovo e a galinha... Primeiro surgem esses líderes extremistas – como Bolsonaro, Donald Trump, nos Estados Unidos, e José Antonio Kast, no Chile – e as pessoas se organizam em torno deles ou é a sociedade, desencantada, que se reúne e busca uma figura que a represente?
É uma mistura de várias coisas. Há, por um lado, um esgotamento com os partidos e elites tradicionais, que em boa parte da América do Sul repercute em uma esquerda que havia se formado em inícios do século XXI.
Junto a isso, nossas sociedades experimentaram uma enorme mudança social nos últimos 50 anos, e há um setor que resiste a essa transformação cultural, em questões como a igualdade de gênero. Particularmente, isso acontece em alguns grupos religiosos, como os setores evangélicos.
O terceiro fator que dinamiza tudo isso são as redes sociais, que geram informação e identidades políticas de uma forma completamente nova e explosiva. Por isso, vemos eleições que são definidas no último momento, com candidatos que têm discursos mais extremistas do que antes.
Há declarações de Bolsonaro, Trump e Kast que parecem inaceitáveis no marco dessa nova agenda social assinalada, por exemplo, pelas considerações de gênero. Apesar disso, como se explica o apoio que conseguiram e continuam tendo?
Até bem pouco tempo atrás, tínhamos uma separação mais clara entre o discurso privado e o discurso público. Havia coisas que as pessoas pensavam e diziam no privado que não se aceitava que fossem ditas em público, um limite moral diante dos meios de comunicação tradicionais.
Hoje em dia, as redes sociais criam esse efeito em que os candidatos podem dizer qualquer coisa e muitas pessoas se sentem representadas, sentem que os políticos dizem o que elas pensam, mas não se animam a dizer.
Como a pandemia e a desconfiança geral na democracia impactam em tudo isso?
A pandemia acelerou a insatisfação com a democracia e a destacou muito. Em alguns casos, isso acelerou a erosão das elites tradicionais e, em outros, como o da Argentina, onde já havia ocorrido uma mudança, a pandemia revirou o que parecia uma alternativa. Também no Brasil e nos Estados Unidos, Bolsonaro e Trump sofreram os custos da má gestão da pandemia.
Não se traduz necessariamente em um avanço da direita...
Não. Penso que a pandemia foi muito igualitária em golpear todos os governos, mas talvez o que tenha acontecido é que os governos de direita radicalizados, que negaram a pandemia inicialmente, pagaram um custo adicional.
Embora tenha falado de uma direita fragmentada, parece que as alternativas se consolidam com os processos eleitorais. Os analistas sugerem que Kast, por exemplo, no segundo turno, poderá somar os votos do liberal Franco Parisi [que alcançou o terceiro lugar no primeiro turno] e do candidato da situação, Sebastián Sichel.
De fato, o sistema de dois turnos força a união estratégica, mas essa fragmentação continua sendo visível no Congresso, ao menos no Chile, onde a direita é exitosa porque controla metade da Câmara dos Deputados, mas continuam sendo vários blocos. E no caso do Brasil, sempre foi um sistema incrivelmente fragmentado. É possivelmente o Congresso com mais partidos no mundo. O talento de qualquer Presidente consiste em formar coalizões legislativas.
Por que esses líderes radicalizados – tanto de direita como de esquerda – apelam a recursos e campanhas populistas?
Todos esses efeitos são resultado do fato de que hoje em dia temos tantas informações e tão pouco filtradas, que é muito difícil fisgar a imaginação pública com um discurso moderado.
O populismo de direita costumava concentrar eleitores de idade avançada. Qual é a sua leitura de que os jovens, que historicamente se identificaram com a esquerda ou com as causas populares, agora se vejam representados nessas lideranças liberais?
[O jornalista argentino] Pablo Stefanoni tem um livro sobre isso, e justamente ressalta como, no contexto atual, em que o discurso de centro-esquerda mais progressista se tornou um discurso muito convencional, parte da juventude abraça discursos mais radicalizados, de direita, como uma forma de rebeldia.
Mas, depois, o populismo no poder acaba legitimando esse extremismo. Bolsonaro, os militares, Trump, a ultradireita, Kast – caso eleito – fará isso com a ditadura, conforme demonstrou até agora.
Isso é muito perigoso. É surpreendente que apesar dos discursos antidemocráticos e das atitudes tão radicais, tenham mantido uma base de apoio social tão alta. Boa parte da sociedade abraça esses discursos de maneira irresponsável, pois sente que é uma forma fácil de punir as elites tradicionais que não conseguem apresentar resultados favoráveis.
Um boom do voto punitivo...
Sim, mas é o mesmo tipo de irresponsabilidade política que levou boa parte da população na América Latina a apoiar os governos militares. São picos de insatisfação que mostram, a longo prazo, ser terrivelmente caros.
Em seu momento, as ditaduras foram contemporâneas. O apoio a esse tipo de liderança também está acontecendo, ao mesmo tempo, em vários países. A história se repete?
A comparação histórica agora é favorável porque hoje a punição chega pelos instrumentos da democracia, do voto. E isso marca um progresso significativo em relação ao passado.
O que Kast, Bolsonaro, Trump, Parisi e o dirigente libertário argentino Javier Milei têm em comum?
Todos representam uma manifestação da insatisfação social com os partidos tradicionais. Não vejo que o surgimento da direita ou o voto na direita em si seja um problema, mas vejo como um potencial problema o apoio a esses discursos antidemocráticos ou ambíguos, que não mostram um compromisso com a democracia. Como se a punição aos partidos tradicionais tivesse prioridade sobre a tentativa de proteger a democracia.
É estranho. O caminho do eleitor é democrático, mas não necessariamente apoia um projeto de democracia.
É o perigo que vemos em El Salvador [com Nayib Bukele]. Optar por esses candidatos significa que efetivamente os partidos tradicionais são destruídos, mas que a democracia acabará em alguns anos.
E o eleitor sabe disso, não é ingênuo...
A democracia é como o oxigênio, não nos preocupa muito até que a perdemos.
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“A democracia é como o oxigênio, não nos preocupa muito até que a perdemos”. Entrevista com Aníbal Pérez-Liñán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU