01 Novembro 2021
"Se o Papa os tivesse deixado a situação como está e a maioria tivesse optado por excomungar Joe Biden, (...) Francisco teria de aceitar que uma igreja local, entusiasmada com seu conservadorismo, modificasse a doutrina da Eucaristia. Porque a comunhão com o corpo e sangue de Cristo é remédio para pecadores, não por uma extravagância de Francisco: "crimina et peccata etiam ingentia dimittit" foi dito pelo Concílio de Trento, S. XXII. E reduzir o sacramento do altar a Passaporte Verde para (supostos) perfeitos é simplesmente inadmissível", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado em Repubblica, 30-10-2021.
Poucos dias antes do momento em que os bispos estadunidenses tinham que decidir se negavam a comunhão ao presidente dos Estados Unidos por sua posição sobre uma lei - neste caso, aquela sobre o aborto - o Papa interveio e realizou um ato primacial com importantes consequências eclesiológicas e políticas: disse a Joe Biden para participar da Eucaristia em paz e permitiu-lhe divulgar essa parte da conversa.
Inspirados por uma esdrúxula Nota doutrinária da Congregação para a Doutrina da Fé publicada em 2002 e que foi usada pelo catolicismo integralista para atrapalhar a corrida à Casa Branca de John Kerry dois anos depois, os bispos estadunidenses estavam de fato arriscando dividir a Igreja e a sociedade estadunidense, propondo um "uso político" da Eucaristia - a ser dada ou negada aos presidentes de acordo com seu desempenho integralista. Se o Papa tivesse deixado a situação como está e a maioria tivesse optado por excomungar Joe Biden, Roma teria tido dois problemas enormes.
Francisco teria que aceitar ver o relógio da relação entre os católicos e a democracia retroceder pelo menos um século. Se fosse verdade que apenas o político que deseja usar a democracia para alinhar a lei com os "valores" cristãos pode participar do sacramento, se voltaria ao mito do estado confessional. E se daria razão ao velho preconceito anticatólico estadunidense de que não é bom que o presidente seja católico: porque, se ele for um bom católico, obedecerá ao Papa e não à constituição; e se ele obedece à constituição, ele não é um bom membro de sua igreja, o que o presidente não pode deixar de ser. E isso o papado, antes mesmo que o Papa, não podia aceitar.
Além disso, Francisco teria de aceitar que uma igreja local, entusiasmada com seu conservadorismo, modificasse a doutrina da Eucaristia. Porque a comunhão com o corpo e sangue de Cristo é remédio para pecadores, não por uma extravagância de Francisco: "crimina et peccata etiam ingentia dimittit" foi dito pelo Concílio de Trento, S. XXII. E reduzir o sacramento do altar a Passaporte Verde para (supostos) perfeitos é simplesmente inadmissível.
Tudo certo para o Papa: basta comparar o rosto fechado na foto com Trump com aquele da audiência com Biden para entender que o pontífice estava satisfeito.
E tudo certo para Biden: aqueles que prepararam essa viagem com longos contatos trabalharam bem e deram uma sugestão certa quando aconselharam que o encontro fosse precedido pela nomeação de Joe Donnelly, ex-senador democrata contrário ao aborto, como embaixador dos Estados Unidos junto à Santa Sé.
Tudo certo também para os problemas políticos, que não são aqueles do clima e das vacinas, que são óbvia matéria do G20. A Santa Sé precisava que se certificasse o fim da "doutrina Pompeo", pela qual o ex-secretário de Estado de Trump pretendia que a Igreja se alinhasse com a política antichinesa do governo. E é provável que sobre isso Biden tenha dado garantias que isentam o Papa da ortodoxia antichinesa exigida pelos Estados Unidos aos aliados. A ponto de, no final, Biden ter elogiado o Papa como "homem da paz": o quarto "P" que, ao lado do People Planet Prosperity, falta da agenda do G20.
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A política da Eucaristia. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU