"A gênese e as fontes deste livro são os escritos que Canuto havia feito e guardado no Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia e a junção de histórias do boletim Alvorada", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro Ventos de profecia na Amazônia: 50 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia, de Antônio Canuto (Paulinas; Editora da PUC Goiás, 2021, 392 p.)
A publicação do livro Ventos de profecia na Amazônia: 50 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia (Paulinas; Editora da PUC Goiás, 2021, 392 p.), é uma homenagem aos 50 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia. Escrita por Antônio Canuto, esta obra é fruto de minuciosa pesquisa oferecida em relato muito bem documentado. A Prelazia foi criada oficialmente a 13 de maio de 1969. Foi designado para seu primeiro prelado o Pe. Pedro Casaldáliga: “o corpo franzino abrigava um gigante nas ações, nas causas e no acolhimento aos mais pobres e excluídos” (p. 29).
Capa do livro "Ventos de profecia na Amazônia: 50 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia", de Antônio Canuto (Foto: Paulinas | Editora da PUC Goiás)
O autor desta obra conviveu com Pedro e compartilhou a missão em São Félix do Araguaia. Pe. José Oscar Beozzo ao prefaciar (p. 15-25) este livro diz que “o autor Antônio Canuto chegou ao Araguaia em 1971, como padre, incorporado à equipe pastoral da Prelazia de São Félix, coordenada por Pedro Casaldáliga. Viveu por 26 anos nessa região da Prelazia, a maior parte naqueles tempos severos e sangrentos de repressão da ditadura militar.
Em 1972, teve que substituir o padre Francisco Jentel, no povoado de Santa Terezinha. Jentel era procurado, processado e condenado por crime contra a Segurança Nacional e, por fim, expulso do Brasil, acusado de ser o responsável pela reação dos posseiros diante da violência da grande empresa Codeara, do grupo Banco de Crédito Nacional (BCN). A empresa declarou-se dona e proprietária daquelas terras todas até mesmo da pequena vila existente no local, há mais de 50 anos”. Em 1997, Canuto mudou-se para Goiânia (GO) para contribuir com a Secretaria Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Atuou como coordenador nacional, secretário da Coordenação Nacional e no setor de Comunicação” (p. 18).
A gênese e as fontes deste livro são os escritos que Canuto havia feito e guardado no Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia e a junção de histórias do boletim Alvorada. Beozzo assim descreve este percurso: “este livro começou a ser escrito esses dias atrás, em 1972, quando teve o grande conflito em Santa Terezinha com a empresa Codeara, e eu fui lá para ficar uns 4 ou 5 dias para acompanhar o conflito, e acabei ficando por 13 anos. E, diante daquela situação, eu comecei a escrever o que estava ocorrendo ali, rascunhei tudo à mão, pois não tinha computador, não tinha nada disso, e depois datilografei. E isso ficou guardado lá no arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Ao se aposentar do trabalho diário na Secretaria Nacional do CPT, ele resgatou aqueles escritos que havia feito e juntou-o com as riquezas históricas da seção intitulada Retalhos de Nossa História, do jornal Alvorada, da prelazia de São Félix. (...) Nesta seção eram publicadas matérias garimpadas, nos espaços mais diversos, que tinham a ver com a história da região, sem a preocupação de se ater a critérios de ordem cronológica ou de concatenação de fatos. Era uma riqueza sem par de informações. Valia apena publicá-los num livro. Mas, para isso, era preciso organizar e ordenar o que estava escrito para que o povo da região e, sobretudo, as escolas tivessem um material que informasse adequadamente todo o processo de formação e ocupação do território” (p. 18).
Assim sendo, o presente trabalho está dividido em cinco partes:
1) na primeira parte, “Missões religiosas no médio Araguaia” (p. 39-77), Canuto reúne o que, nas pesquisas encontrou acerca das presenças das Igrejas nesta região, a partir dos primeiros contatos com os Karajá e os Tiparajé. Desde os primeiros contatos com os Karajá (p. 41-44), a pesquisa resgata “a passagem de missionários jesuítas, seguido de dominicanos, na prática das desobrigas anuais e na fixação dos primeiros postos missionários e prelazias em Conceição do Araguaia e Santa Isabel do Bananal, com incursões de salesianos vindos do sul” (p. 21).
2) na segunda parte, “Uma Igreja perseguida em tempos de repressão” (p. 79-196), está concentrada na criação da Prelazia de São Félix do Araguaia (p. 81-113), e, nos conflitos em que esteve envolvida nos primeiros anos (p. 115-196), ou seja, “a Prelazia esteve no olho do furacão da tormenta, por se opor corajosa e profeticamente à violência de uma ocupação desabrida da região com todo o apoio do regime militar e sustentada pela mão pesada da repressão. Posseiros e sua famílias tiveram suas casas queimadas suas roças destruídas, agentes de pastoral, padres e o bispo sofrerão prisão, muitos deles, torturas, outros expulsão do país como foi o caso de Pe. Francisco Jentel. Padre João Bosco Penido Burnier SJ foi assassinado a sangue frio ao lado do bispo, quando foram até a Delegacia de Ribeirão Bonito interpelar os policiais que estavam torturando duas mulheres de posseiros. Pe. João Bosco recebeu uma bofetada no rosto, depois uma coronhada e um tiro fatal no crânio” (p. 21).
Tenha se em conta que “os sofrimentos vieram dos inimigos de fora, dos donos dos latifundiários e do estado ditatorial, mas não faltaram também os provocados por inimigos de dentro da Igreja, irmãos que acusaram o irmão e que lograram converter o apoio incondicional do Papa Paulo VI à Prelazia, ao seu bispo e aos seus trabalhos pastorais, em suspeitas e reprimendas vindas do alto. Dom Pedro Casaldáliga foi intimado a apresentar-se em Roma, em tempos de João Paulo II, para justificar a linha pastoral da prelazia e sua solidariedade ao sofrido povo da Nicarágua, em meio à guerra de baixa intensidade, mas na verdade, de muitas mortes e destruição, patrocinada pela administração Reagan, com seu apoio aos ‘contra’ e outros grupos de oposição armada ao governo sandinista” (p. 22).
3) na terceira parte olha-se especificamente para a organização interna desta Igreja (p. 197-270): a constituição das equipes pastorais, os agentes pastorais atuantes (p. 199-215), as assembleias do povo e os conselhos das comunidades (p. 217-270). Sinodalidade é o que caracteriza a “a vida interna da Igreja, com suas comunidades de base e pastorais, o florescimento dos ministérios leigos, o protagonismo das mulheres, o esforço por uma condução compartilhada a todos os níveis em relação às opções da pastoral e às decisões administrativas” (p. 22).
4) a quarta parte reúne as ações que a equipe pastoral desenvolveu nas áreas de comunicação, com seu boletim Alvorada (p. 273-277), de educação popular (p. 279-289), cultura (p. 291-296), saúde (p. 297-301), no engajamento, na promoção e defesa dos direitos sociopolíticos (p. 303-306).
5) a quinta parte trata do processo de sucessão do bispo Pedro Casaldáliga (1971-2005), renúncia por idade aos 75 anos (p. 309-312), angustiante espera do sucessor (p. 313-316) e nomeação do novo bispo (p. 317-318). A “palavra é dada aos três bispos que assumiram o encargo da difícil e delicada transição” (p. 23). Canuto abriu espaço para que Dom Leonardo Ulrich Steiner (2005-2011) e Dom Adriano Ciocca Vasino (2012...) caracterizassem, eles mesmos, sua ação nessa prelazia. Dom Eugênio Rixen, que foi administrador apostólico entre a saída de Dom Leonardo para a secretaria geral da CNBB e a chegada de Dom Adriano, também tem a palavra (p. 319-335).
Dom Pedro Casaldáliga (Foto: Reprodução | Amazônia.org)
Em anexo ao livro, encontra-se a Carta Pastoral: Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifundiário e a marginalização social (p. 347-391), divulgada por Pedro Casaldáliga, no dia da sua sagração episcopal e tomada de posse na Prelazia, a 23 de outubro de 1971. Em nota de rodapé, Canuto esclarece que o “original desta carta tem 123 páginas. Até a página 45 é a Carta Pastoral que aí é reproduzida. As páginas restantes são reservadas à Documentação. São documentos de diversas espécies: cartas enviadas às autoridades denunciando situações de injustiça e pedindo providências, relatórios sobre conflitos existentes; depoimentos de pessoas submetidas a condição de exploração do trabalho; recortes de jornais etc” (p. 347).
Beozzo faz notar que “a corajosa carta de Pedro Casaldáliga abriu o caminho para que outros grupos de bispos e alguns regionais tomassem coragem para se pronunciar e sobretudo criar instrumentos concretos de enfrentamento dos problemas ali levantados, em especial os relativos aos povos indígenas, com a criação do CIMI (1972), e aos conflitos de campo, com a criação da CPT (1975). Ambas as iniciativas encontraram em Dom Pedro Casaldáliga (e na Prelazia) um dos seus mais entusiastas articuladores e promotores” (p. 24).
Em suma, nos 50 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia “a obra detalha a caminhada de Pedro Casaldáliga ao lado dos povos indígenas, sua missão religiosa, que percorreu o médio Araguaia, seguindo as correntezas do rio, casa de tantos povos originários e onde travou suas primeiras lutas contra as desigualdades, as perseguições e a devastação ambiental no Brasil. (...) A segunda parte desta importante publicação mostra como a fé de Pedro Casaldáliga reuniu milhares em torno de um mesmo objetivo, da mesma igreja, que extrapolou limites e fronteiras. Mas suas causas também despertaram ódio, processos de expulsão e ameaças de morte, que não conseguiram calá-lo e nem distanciar delas” (p. 29). O “bispo de pés descalços não descansou. Continuou cuidando, mesmo a distância, do povo pobre, dos indígenas ameaçados em sua existência e de todas as causas que se confundem com sua vida” (p. 30).
Dom Pedro Casaldáliga (Foto: CPT Nacional)
Esta obra resgata “a história da Prelazia inserida na caminhada da Igreja no Brasil e companheira e parceira de tantas outras Igrejas da Pátria Grande Latino-americana, paixão e compromisso de toda uma vida da parte de Dom Pedro Casaldáliga” (p. 24). Dai a “relevância social, política e eclesial deste estudo” (p. 19). Desde o seu “nascedouro, a Prelazia de São Félix colocou no centro de suas preocupações os graves crimes contra os povos indígenas, ribeirinhos, posseiros e outras populações tradicionais e a assustadora devastação da Amazônia” (p. 20). Diante dos “efeitos catastróficos dos eventos climáticos extremos e da urgência e gravidade da crise ecológica alçada ao topo da agenda política, econômica e social em nível mundial” (p. 19), a “Prelazia esteve à frente e ao lado das principais iniciativas que o enfrentamento dessa emergência ecocida em relação à terra, às aguas e à floresta; etnocida em relação aos povos indígenas, genocida em relação aos posseiros e ribeirinhos” (p. 21).
O historiador Sérgio Ricardo Coutinho, no Posfácio (p. 337-339), citando Peter Burke diz que “a função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer” (p. 339). Assim sendo, Antônio Canuto nesta valiosa obra “cumpre muito bem esta função” (p. 339).