13 Outubro 2021
"A Fraternidade é um nome do aberto. Creio que é nossa tarefa, estou falando daqueles que trabalham como eu no âmbito do cuidado, mas é uma tarefa mais geral, voltar ao aberto. Não ter medo da vida para mim é um nome da Fraternidade”, escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das Universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por Settimana News, 11-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A filósofa Laura Boella e o psicanalista Massimo Recalcati, coordenados pela teóloga Isabella Guanzini, participaram no Pontifício Instituto Teológico João Paulo II de um debate público sobre o Apelo para Salvar a Fraternidade - Juntos. A seguir apresentamos a transcrição da palestra de Massimo Recalcati (feita com base na gravação em áudio-vídeo do evento, não revisada pelo Autor).
Boa tarde a todos e obrigado pelo convite. Li com atenção esse livro que aparece, por um lado, como um manifesto, por outro, como uma carta que tem seus destinatários e agradeço por me incluir entre eles. Além disso, ainda aparece como uma súplica, que é a forma mais radical da pergunta.
E, por fim, diria que tem o aspecto de um grito: há algo nesse texto que se parece com um grito. E qual é esse grito? Eu vou expressá-lo nas palavras de Gilles Deleuze, que define a ética de uma única maneira possível: ética significa estar à altura do que nos acontece. Esse pequeno texto nos leva a isso: estaremos nós à altura do que está nos acontecendo?
A convocação dos intelectuais se dá por meio de uma palavra que eu gostaria de problematizar, porém, porque é efetivamente muito problemática: é a palavra “humanismo”, e hoje é um termo que não usufrui – vamos dizer – de uma "boa reputação". Depois do estruturalismo, o pensamento contemporâneo seguiu na direção anti-humanística, a-humanística.
O humanismo parece mais uma escória metafísica como Heidegger também o entendia. Esse livro, a meu ver acertadamente, partindo da lição cristã e bíblica mais geral, com razão e com coragem (diria para não desistir desta decisão) repropõe o tema do humanismo e em torno dessa palavra convoca os intelectuais.
Mas o que significa responder a essa palavra? O que significa hoje estar à altura desta palavra?
Nosso tempo confundiu dramaticamente humanismo com antropocentrismo. O antropocentrismo é a dimensão delirante do humanismo. É o lugar de onde brota a violência homicida, a opressão do homem pelo homem, o culto fetichista do dinheiro, a concepção individualista, apenas individualista, da liberdade. A degeneração do humanismo em antropocentrismo exige uma retificação.
Acredito que este seja o primeiro ponto sobre o qual podemos dialogar: falo como leigo, mas a contribuição da lição cristã é decisiva para mim; permanece decisivo libertar o humanismo da loucura antropocêntrica.
A lição cristã sobre esse ponto coloca no centro a Fraternidade. Se quisermos dissociar o humanismo do antropocentrismo, a maneira mais clara e radical de fazer isso apresenta a Fraternidade como questão decisiva e é a tese que desejo desenvolver.
Se queremos estar à altura do que nos acontece, devemos reconhecer que Fraternidade é o nome mais radical da transcendência. A transcendência, no Apelo, é evocada pela referência a Deus: referência a Deus e referência à transcendência. Se perdermos o horizonte da transcendência, o humanismo desmorona no antropocentrismo.
Por que o humanismo pode conseguir não recair no antropocentrismo? Porque fazemos existir algo que está na ordem da transcendência. Mas quando digo algo na ordem da transcendência, como leigo, não penso um mundo por trás deste mundo, em outro mundo. Estou pensando em encarnações de transcendência, das quais a Fraternidade é o modelo mais elevado.
O próximo é uma encarnação radical da transcendência: não o próximo como semelhante, mas o próximo como estrangeiro, o próximo como inimigo.
É o inimigo que se deve amar, o tema sobre o qual a Fraternidade deve ser testada. Então a Fraternidade é uma figura de transcendência. Mas não só isso: nesse pequeno texto há outros nomes. Por exemplo, a Terra é uma figura de transcendência; a Terra seria o lugar da imanência. Na realidade, quando esse livro diz que devemos aprender a habitar a Terra com dignidade, a coloca como um lugar da transcendência e nos lembra que devemos ser guardiões dessa transcendência mais do que donos. A Terra é uma grande figura da transcendência.
Os tempos mudaram: vida, verdade, morte são figuras da transcendência. O nome próprio é uma figura da transcendência. Vimos, sempre na experiência do Covid, que o nome é irredutível ao número, que o nome próprio - como dizia o Papa Francisco em sua encíclica - é imensamente sagrado. Há algo de imensamente sagrado na dimensão in-sacrificável da singularidade.
Dissociar o nome do número é a operação que contrasta o avanço niilista do cientificismo, do economicismo e do culto fetichista do dinheiro que é evocado no texto do Apelo. Todos são fenômenos em que o número anula o nome, domina o nome, nos próprios nos tornamos números.
Além disso, é uma lição da psicanálise como prática de cura (porque não me sinto tanto um intelectual, me sinto como uma pessoa que tenta curar outras pessoas e este é o meu ofício). Um dos ensinamentos cardeais da prática da cura é que devemos preservar a heterogeneidade entre o nome e o número, porque a cura é apenas cura para o nome.
Lacan o diz com uma fórmula luminosa e, a meu ver, muito cristã, quando afirma que o amor é sempre amor pelo nome. Não é amor pela vida em geral; o amor pela vida em geral desperta suspeitas. O amor é sempre amor pelo nome próprio, por aquele corpo, por aquela presença, por aquela história.
E aqui entra outro aspecto: como dar credibilidade a esse Apelo? Como podemos tornar esse Apelo verdadeiramente crível e não retórico? É o ponto central, para além dos conteúdos que compartilho profundamente.
Não há atalhos: a única maneira de tornar o apelo credível é testemunhar a sua verdade. Podemos encher a boca com a palavra Fraternidade, mas, se não praticarmos a Fraternidade, se praticarmos o ódio, a inveja, a luta fratricida dentro e fora das nossas instituições, não tornamos o texto credível.
Este é o problema que coloco em geral a respeito da grande questão do Pai. Hoje não estamos mais em uma sociedade religiosa e o texto diz isso claramente; não estamos mais no tempo em que existiam as sociedades religiosas, estamos em outro tempo. Portanto, se não estamos mais em uma chamada sociedade religiosa, o Pai não pode ser um horizonte transcendental. Deve ser um testemunho.
O nome do Pai se dissolve no ato de seu testemunho. Precisamos repensá-lo, como a meu ver o magistério de Francisco tem feito desde o início, colocando o problema do Pai (como diria o jovem Marx com Engels) a partir dos pés. Não mais a glória do nome, mas o ato de testemunho que faz existir algo como uma significação paterna que é decisiva para dar sentido à vida. Lacan dizia isso à sua maneira, inclusive ironizando. Mas, na realidade, quando ele falava sobre o futuro triunfo da religião na década de 1970, ele o dizia ironicamente. Em minha opinião, ele previa, senão o triunfo, a necessidade do discurso religioso: diante da onda niilista do cientificismo e da técnica, da violência homicida, o discurso religioso preserva a dimensão do sentido. Sem ele, a vida se desumaniza.
Ao contrário de Freud que previa a vida breve da religião, destinada a ser dissolvida pelo avanço da ciência, Lacan argumenta que não será assim porque sempre precisaremos preservar o sentido que, justamente, torna a vida humana.
Se pensarmos bem, vivemos a experiência da Fraternidade durante o Covid. Finalmente fizemos experiência da Fraternidade.
A Fraternidade é uma dimensão do vínculo que transcende a dimensão do eu. Lacan descrevia a centralidade do eu no tempo contemporâneo como uma "eu-cracia". A Fraternidade é o nome de uma desconstrução possível da "eu-cracia". O que nos ensinou o magistério Covid? Por exemplo, que as instituições são um dos nomes da Fraternidade. Em minha opinião, se posso oferecer uma sugestão, este sobre as instituições é um capítulo que falta no livro.
A Fraternidade significa repensar as instituições: o que teria sido de todos nós durante o Covid sem a existência das instituições? Teremos sido arrastados como rolhas ao vento; claro, é possível criticar a atuação de um governo ou se pode discutir como a crise foi gerida. Mas sem as instituições, primeira entre todas a família, sem as famílias, literalmente teríamos sido destruídos. Portanto, é preciso repensar as instituições.
Mas é preciso superar um preconceito dramático que hegemonizou a história civil de nosso país e não só do nosso país. O preconceito populista que contrapõe a vida às instituições, segundo o qual de um lado haveria a vida, a sua inocência, a sua pureza e, pelo outro, a podridão das instituições, sua corrupção, é que a tarefa da vida é entrar em uma relação antagônica com a instituição.
Pensamento louco, outro delírio do nosso tempo. A vida sem as instituições simplesmente não existe. Pasolini, que a seu modo foi um radical adversário crítico das instituições, costumava dizer (cito de “Transumanar e Organizar”) que as próprias instituições carregam em si algo comovente e misterioso. As instituições - acrescentava Pasolini - realizam o maior milagre: tornam possível a vida juntos. Portanto - é um conselho para os redatores do Manifesto – se poderia acrescentar um capítulo sobre a poética das instituições, pensar que existe uma poética das instituições que nos espera, sem a qual estamos 'condenados'.
A Fraternidade também é uma experiência do 'não-todo'. Uso uma categoria central no pensamento de Lacan. A Fraternidade é uma experiência do 'não-todo', uma experiência que Caim não consegue suportar. Caim não pode suportar a experiência do intruso, o filho que chegou depois, ele não pode suportar Abel porque isso o lembra de que ele não é tudo. É por isso que os irmãos são abençoados, porque nos lembram que nós não somos tudo. Eis porque - acrescento – o irmão é nome do Pai: lembra-nos que não somos tudo. O "não todo" não é uma dimensão aflitiva de desmoralização; o 'não todo' é a condição para ser autenticamente livres e generativos.
O texto bíblico não é retórico: quando fala de fraternidade, fala dos fracassos da Fraternidade. Em primeiro lugar, Caim e Abel, depois Jacó, Esaú, José e seus irmãos, a parábola de Lucas do filho pródigo, Judas e Pedro. A fraternidade assume primeiramente a forma de uma dificuldade. Não há nenhuma retórica, nenhuma celebração do nós a partir justamente do texto bíblico.
Impossível imaginar que a psicanálise não o saiba: o ódio é mais antigo do que o amor, afirma Freud. O judeu Freud que conhece muito bem a Torá, sabe que o ódio vem antes do amor, porque o estrangeiro representa o mundo, representa uma fonte ingovernável de perturbações e em relação ao mundo, nós entramos em uma relação de defesa organizada. Este é um aspecto muito importante.
O 'não todo' é uma experiência difícil, porque o impulso do humano - e mesmo sobre isso o logos bíblico é muito claro - o impulso perverso do humano está em sua deificação. Um nome da Fraternidade que hoje deveríamos colocar radicalmente em jogo, é o amor pelo aberto. A fraternidade é uma experiência da abertura, é uma experiência do encontro.
Mas quando dizemos hoje que a Fraternidade, como figura da transcendência, é uma experiência do aberto, estamos dizendo que estamos diante de um impulso do nosso tempo que não é mais aquele da globalização, da liberalização, da afirmação de uma concepção individualista da liberdade.
O nosso tempo tem como símbolo dominante, antes do Covid, a experiência do muro. Trump vence as eleições com esse símbolo, o Brexit é uma experiência de quebra do vínculo, sem falar do Leste europeu: o arame farpado, o concreto armado, o muro, a viga, o porto fechado, tornaram-se monstruosos símbolos da contemporaneidade anti-fraternidade.
Freud, Reich, Fromm e os outros da escola de Frankfurt que estudaram cuidadosamente a psicologia do fascismo conheciam muito bem a pulsão para fechar. Eles sabiam perfeitamente que a função para o fechamento não é apenas o efeito do analfabetismo político ou de uma barbárie: ao contrário, faz parte do humano.
Reich coloca isso como uma grande questão no início da Psicologia de Massa do Fascismo: o problema não é porque as massas aceitaram passivamente o fascismo, porque não reagiram contra a ditadura. O verdadeiro problema, diz Reich, é porque as massas puderam desejar o fascismo, isto é, desejar a vida fechada.
Acredito que é um vetor que atravessa o nosso tempo: o medo da vida. Digo isso como clínico: nós também vemos cada vez mais jovens - usamos a expressão clínica de fobias sociais - que se afastam do mundo, se afastam da vida, têm medo da vida. Os hikikomori são o paradigma.
Na língua japonesa significa justamente quem que se coloca fora da vida, quem que se coloca fora do cenário do mundo, na pulsão securitária que caracteriza o nosso tempo. Onde o problema da segurança da vida vale mais do que a vida. Não posso deixar de lembrar a parábola dos talentos que Sequeri comenta com maestria (em Temor de Deus, um dos seus livros mais belo que para mim representou um encontro especial) quando explica que aquele homem enterra o talento porque tem medo da vida, porque tem medo do encontro com a vida.
Considero este um grande tema do nosso tempo que a experiência do Covid só irá fortalecer. Já meus colegas falam de uma síndrome pós-traumática de adaptação que vemos se espalhar como um incêndio, ou seja, a dificuldade de reintegração social e, portanto, de reintegração no laço social após a experiência traumática que nos obrigou ao distanciamento.
O distanciamento não é apenas uma medida sanitária de proteção, necessária, mas é um impulso humano interno: o ser humano não só aspira à liberdade, mas também deseja rejeitar a liberdade, viver a liberdade como um fardo, rejeitar a experiência do aberto.
Mas a Fraternidade é um nome do aberto. Creio que é nossa tarefa, estou falando daqueles que trabalham como eu no âmbito do cuidado, mas é uma tarefa mais geral, voltar ao aberto. Não ter medo da vida para mim é um nome da Fraternidade. Obrigado.
Em colaboração com a Sala de Imprensa da Pontifícia Academia para a Vida.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Não ter medo da vida: um nome da Fraternidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU