A covid-19 irrompeu em um mundo em que “estávamos vivendo uma condição de controle da incerteza, um controle estatístico, até filosófico, sobre a premissa de que certos tipos de fenômenos pertenciam ao passado”, avalia Alejandro Kaufman. Daí o pânico e a sensação de vulnerabilidade despertada pela atual pandemia, cujo caráter desconhecido desmoronou a fantasia de acreditar que “a incerteza era algo calculável”.
Alejandro Kaufman é professor universitário, crítico cultural e ensaísta. É professor titular regular na Universidade de Buenos Aires (UBA) e na Universidade Nacional de Quilmes (UNQ) e pesquisador do Instituto de Pesquisas Gino Germani, atrelado à Faculdade de Ciências Sociais (UBA). Foi professor visitante nas universidades de Bielefeld, San Diego, Zurique e ARCIS. Santiago do Chile, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris.
Membro do conselho diretor da revista Pensamiento de los Confines, é autor de inúmeros artigos em revistas especializadas, livros em colaboração e traduções. Escreveu, entre outros, La pregunta por lo acontecido (2012) e Golpes (2017). Em 2018, recebeu o Pañuelo Blanco, máximo reconhecimento das Mães da Praça de Maio.
A entrevista é de Bárbara Schijman, publicada por Página/12, 26-07-2021. A tradução é do Cepat.
Que realidades e experiências vividas observou com a pandemia do coronavírus?
É uma grande pergunta. Acredito que um dos aspectos centrais desta experiência foi o modo como se dá a incerteza. De onde vínhamos em relação à incerteza? De que a incerteza era algo calculável. Não é que a incerteza seja nova, mas de algum modo estava disciplinada. Ou seja, há múltiplas experiências coletivas, sociais e cognitivas que estavam sendo objeto de um tratamento preditivo.
É possível dizer que tal condição faz parte da modernidade, mas nos tempos mais recentes há uma especificidade em relação a como lidar com a incerteza. Por isso, nos processos modernos se fala em pós. O pós em relação ao moderno é, em boa medida, o tratamento da incerteza. O modelo explicativo, confiável, tipo newtoniano, tipo clássico, entra em crise no século XX. Estávamos vivendo uma condição de controle da incerteza, um controle estatístico, até filosófico, sobre a premissa de que certos tipos de fenômenos pertenciam ao passado.
A questão epidêmica estava localizada, sobretudo na periferia. O fato de alguns atores terem alertado sobre a possibilidade da pandemia não influenciou muito e, agora, pode ser tomado como uma previsão acertada. A outra questão que vinha ocorrendo, para além dessa gestão da incerteza e também como parte da gestão da incerteza, era de algum modo ficcionalizar o Apocalipse, que, na realidade, é ficcionalizar a vulnerabilidade.
Em que sentido “ficcionalizar a vulnerabilidade”?
Nos últimos anos, foi se solidificando uma consciência de vulnerabilidade a partir de posições das ciências sociais, da filosofia e na ficção. As distopias são de vulnerabilidade geral, de Apocalipse, de algo que se degrada. Há um montão de histórias que mostram que algo falhou, nas quais algum traço simples produz uma catástrofe geral e tudo para.
Na realidade, o que se aborda nessas ficções é o estado de vulnerabilidade da civilização técnica. É uma situação complexa, com um enorme controle dos acontecimentos, mas, ao mesmo tempo, com uma grande vulnerabilidade. E, então, também na ordem do conhecimento científico foram se expandindo noções acerca da vulnerabilidade: o que acontece com os recursos, os fenômenos geológicos, não só com as mudanças climáticas, mas com o modo de entender o clima como um evento angustiante.
Por isso, não é estranho que os prognósticos meteorológicos tenham se transformado em um espetáculo de entretenimento, onde buscam consolá-lo da incerteza. Todas essas questões servem para entender a pandemia, não de um modo preconceituoso, como se o que alguém está aprendendo agora, fosse sabido antes, porque este é outro problema que aparece na ordem da comunicação, do conhecimento, das conversas e do que dizemos sobre a pandemia.
Esperar respostas imediatas ou infalíveis acarreta implicitamente certa negação da vulnerabilidade?
Existem fenômenos de servidão voluntária, de autoritarismo, de expectativa de que um outro ou uma alteridade resolvam as incertezas. Tudo acontece ao mesmo tempo. O que ocorre é que, em nossa época, a forma de enfrentar a dor, a morte, o inesperado são formas técnicas, diferente de outras épocas.
Então, qualquer uma das experiências que possamos descrever está atravessada por uma lógica instrumental, por uma cultura da técnica. Ou seja, trata-se de conhecer os fenômenos causalmente e resolvê-los de forma técnica. Isso é próprio de nossa época e do modo como funciona o mundo contemporâneo.
Toda sociedade se organiza ao redor de alguns tipos de certezas ou crenças. As nossas se concentram em uma visão técnica e essa pandemia está sendo encarada dessa maneira. O que acontece e produz certa confusão é que não são os cientistas que governam, mas os Estados. O governo é político, as decisões são políticas justamente porque não existe um saber estabelecido em relação ao que está acontecendo.
Não é a lei da gravidade, algo que está estabelecido, mas trata-se de uma quantidade de eventos que são completamente desconhecidos. E hoje, após mais de um ano de pandemia, ainda temos um elevado grau de incerteza. Aprendeu-se muito, a coordenação entre esforços de pesquisa em todo o mundo é de uma dimensão crescente e nova. Mas, no entanto, ainda restam muitíssimas incertezas porque as incertezas também têm a ver com o modo como se estende o tempo do processo. E aí aparece outro tema, o da vacinação.
Como alívio da incerteza?
Quero dizer que a vacinação teria sido eficaz, se dispuséssemos de uma vacina que pudesse ser dada ao mundo todo, ao mesmo tempo. Porque isso teria produzido o que se chama de “imunidade de rebanho”. Ao ser aplicada de forma muito prolongada no tempo, a eficácia é reduzida, em um contexto no qual surgem novas variantes. Estamos em meio a isso, a nível global.
Agora, este problema não está sendo amplamente compreendido, nem está sendo bem comunicado. Os governos sabem disso, mas o papel dos meios de comunicação nesse sentido é devastador, sobretudo da imprensa hegemônica que não cumpre um papel de contribuição para um conhecimento que permita prevenir males maiores.
Aí temos outro elemento prévio, que vem de antes, que é a sociedade do entretenimento. Tudo tem que ser simples e demarcado, tem que ser divertido, suave. Não se pode falar da morte, não se pode falar de incerteza, não se pode falar do cuidado também. E bem, a pandemia não tem nada de suavidade. Lembremos quando a morte ainda estava na vida social pública. Ou seja, havia luto. Essa forma que temos agora nos deixa sem amparo diante de uma tragédia como esta.
Em paralelo, também se levanta como estão construídas nossas subjetividades cognitivas, nossos conhecimentos. Constroem-se sobre a ideia de que sabemos. Ou seja, não estamos preparados para dizer “não sei”. Na pandemia, os únicos que dizem “não sei” são os que sabem, que são os epidemiologistas. No entanto, exigimos que eles digam algo que não sabem, nem podem saber.
Quanto do pânico é alimentado e retroalimentado pela incerteza? O cansaço com o pânico pode gerar certos descuidos?
O pânico produz um esgotamento porque é um grande gasto de energias, ou seja, muitas das coisas que conversamos representamos nas ficções. A violência, a angústia, tudo. A indústria cultural nos transmite determinados significados. Com o pânico, acontece o mesmo.
O pânico é um fenômeno denso e não muito estudado, porque não é fácil estudá-lo, não há um lugar onde possamos observá-lo porque ocorre de forma inesperada, captura aqueles que o sofrem e os submete a um gasto de energias. Tem a ver com a perda do autocontrole, com um estado de perda da razão. É uma situação de extrema vulnerabilidade que nos leva a agir de forma ineficaz. O pânico é um estado de inconsciência.
Como funciona o pânico no contexto atual da pandemia?
A [unidade de] terapia intensiva é o lugar onde essa incerteza é disciplinada e administrada por meios técnicos e esta pandemia específica a superlotou. O pânico da pandemia ocorre aí, não acontece como em outras epidemias da história. O que produz o início do pânico é a superlotação das [unidades de] terapia intensiva, que um recurso técnico de gestão artificial de manutenção da vida, requerido em uma medida aparentemente normal, limitada, de um dia para o outro e de modo global, tenha se revelado impotente. Não foi o grande número de vítimas mortais, ao menos inicialmente.
Por isso, há espaço para negar o que acontece, porque não há uma mortandade do tipo que conhecemos pela literatura ou a história. O ponto nodal do pânico foi a crise técnica da gestão da morte. De alguma forma, há um comportamento social que poderíamos chamar de hedonista. Ou seja, tenho que poder fazer o que eu quiser: tenho que poder viajar, tenho que poder opinar, tenho que poder consumir. Essa é a vida moderna. A pandemia exige que eu faça algo que vai contra isso e no mundo de hoje isso é muito difícil de conseguir.
Por isso, é muito difícil conseguir fazer com que as pessoas se distanciem, ficamos conformados, em nível global, em não superlotar as terapias intensivas. Essa construção técnica que tínhamos da morte foi questionada pela pandemia. E convivemos com um estado de cansaço, é claro. O cansaço também é consecutivo à calamidade. Porque a capacidade que temos de enfrentar um esforço como o que significa um enorme perigo é muito limitada.
Por que considera que “as vacinas são materializações do laço social”?
As vacinas substituem o distanciamento. No caso desse tipo de vírus, como a transmissão é aérea, precisamos de distância entre as pessoas. Em paralelo à vacina como materialização do laço social, há outra coisa a ser dita: as vacinas são inerentemente um acontecimento solidário. Isso a diferencia dos remédios que servem para tratar uma pessoa por uma causa de forma individual. Estas vacinas só servem se são dadas a todos.
Se realmente a vacinação não for programada da forma mais rápida e generalizada possível, a longo prazo, perderá toda a sua eficácia. Então, a vacina materializa a solidariedade. Por isso, não é por acaso que sejam os países com tradições socialistas os mais predispostos a fabricar vacinas, porque a vacina não é um grande negócio. O negócio é fabricar remédios para indivíduos que possam pagar seja o que for. A vacina tem que ser dada para toda a população.
Voltando ao tema do pânico, a monopolização da vacina nos países desenvolvidos é um comportamento de pânico. Já tenho o conhecimento de quantas vacinas preciso, mas as guardo para mim. Isso não tem lógica alguma, mas levou um montão de tempo até que decidissem a doá-las porque era mais prevalente o estado de pânico das sociedades poderosas que têm a capacidade de se protegerem, em detrimento de outras.
Em casos assim, pânico e ideologia.
É que o capitalismo acarreta o pânico de se empobrecer. Ou seja, o pânico contemporâneo é também um pânico econômico. A economia é um regime de pânico: de que não se produza o suficiente, de que não haja recursos, de que não se cresça, de que haja inflação. Esse comportamento de pânico é constitutivo, porque a vida contemporânea é a gestão da incerteza.
Há uma diatribe permanente contra as vacinas que vêm de lugares que não gostam e uma apologia de vacinas de países desenvolvidos. Tudo isso é pura ideologia. E a vacina também é ideologia e política. É ideológica no sentido de que é um desenvolvimento técnico que materializa a solidariedade. Por isso, um país como Cuba se coloca na fabricação de vacinas, porque é natural que faça isso e politicamente está habilitado.
Na cultura contemporânea, fenômenos que concernem a todos são tratados de modo diferente, segundo a perspectiva política. Então, ninguém é contra as vacinas do ponto de vista estatal, mas as abordagens são diferentes segundo as posições ideológicas. Por exemplo, é dito que a Rússia faz geopolítica com as [vacinas] Sputnik e que os Estados Unidos fazem uma doação.
Em relação a essa última questão, e pontualmente sobre as diferentes posições acerca da vacinação e as medidas para combater a propagação da covid-19, existe todo um debate acerca das liberdades individuais, o esmagamento de direitos e o que muitos chamam de “discursos de ódio”. Como concebe essas posições fortemente antagônicas?
No que se refere ao tópico da liberdade, há vários aspectos: um deles se refere ao fato de que o modo de vida consumista, hedonista, supõe não ter restrições, coisa que na prática não é assim. O capitalismo se baseia no movimento de mercadorias, signos, pessoas. A ideia de que não tenha restrições é, claro, fictícia. A própria lógica do fluxo de signos, mercadorias e pessoas requer um controle.
Por um lado, há um sentido comum, uma condição existencial de desejo de movimento. São as nuances ideológicas que incidem no tema das restrições. A vida contemporânea não é mais do que uma gigantesca lista de restrições de todos os tipos.
Então, é inclusive uma parafernália propagandística ideológica completamente frívola, mas que, no entanto, faz com que uma quantidade de pessoas faça uma distinção em relação às ideologias às quais se opõem. Essas posições têm certa eficácia porque possuem um componente de experiência coletiva, que é uma vida baseada no movimento.
Eu distinguiria, então, entre uma vida baseada no movimento e a ideologia que oferece uma conotação específica em relação a certos interesses, que é o que fazem os que se opõem pela direita. Não deve haver prevenção apenas ao próprio discurso de ódio como tal, mas às difamações e assédios sofridos por aqueles que nos previnem de tais consequências.
Aqueles que os proferem, de má-fé, amparam-se na liberdade de expressão para validar suas manifestações intrinsecamente incompatíveis com a própria liberdade de expressão para a qual apelam, porque o que dizem tem como objetivo imediato silenciar, mediante o dano moral, aos que atacam. É um dilema de difícil resolução na convivência democrática e que não deveria ser subestimado.