20 Abril 2021
"Senadores 'independentes' propõem quatro investigações paralelas, todas potencialmente devastadoras ao Planalto. E já convoca audiências públicas que podem ter grande repercussão. E mais: no Chile, Coronavac reduz as mortes em 80%", escrevem Maíra Mathias e Raquel Torres, editoras do portal OutraSaude, em artigo publicado por OutrasPalavras, 19-04-2021.
O fim de semana trouxe mais notícias sobre a CPI da Covid, que pode ser instalada nesta quinta-feira. O jornal O Globo obteve a minuta do plano de trabalho da comissão feita pelo chamado grupo independente de senadores. A ideia é organizar a condução das apurações em quatro sub-relatorias.
A primeira delas vai examinar a compra de vacinas e outras medidas de contenção do vírus. É quando os senadores pretendem extrair, por exemplo, as justificativas do governo para recursar a compra de 70 milhões de vacinas da Pfizer oferecidas no meio do ano passado. E também tentar comprovar que o Planalto agiu de maneira deliberada em busca da contaminação do maior número de brasileiros o mais rápido possível com a crença de que isso poderia levar à “imunidade de rebanho”.
A segunda subrelatoria vai se concentrar no colapso no sistema de saúde em Manaus, com ênfase na crise de falta de oxigênio e no episódio do lançamento do TrateCov, aplicativo do Ministério da Saúde que indicava o “tratamento precoce”. Mas as investigações sobre medicamentos ficarão concentradas em outra subrelatoria, que além da aquisição de drogas sem eficácia comprovada vai examinar os atrasos na compra dos sedativos e bloqueadores do kit-intubação. Por fim, a quarta subrelatoria vai olhar os contratos firmados pelo ministério e o repasse de recursos federais a estados e municípios.
Ainda de acordo com o documento, a comissão deverá ouvir pelo menos 15 pessoas que ocuparam postos de comando no governo durante a pandemia, como Fábio Wajngarten (Secretaria de Comunicação), o inventor do “placar da vida”, quando o número de pessoas “recuperadas” da doença passou a suplantar o número de mortes e casos novos.
Além de Pazuello, a lista dos ‘ex’ inclui ainda Ernesto Araújo (Relações Internacionais), que será questionado sobre as negociações do Brasil com governos de outros países e multinacionais em relação à compra de vacinas e insumos como agulhas e seringas, e Fernando Azevedo (Defesa), que deve ser convocado por causa da atuação do Exército na produção da cloroquina.
Nessa seara, a comissão também deverá ir atrás de entidades médicas que estimularam o uso de remédios que não têm comprovação científica e planos de saúde, que obrigaram os médicos a usá-los.
Já há oito especialistas mapeados para audiências públicas: Átila Iamarino, Miguel Nicolelis, Margareth Dalcolmo, Natália Pasternak, Marcia Castro, Roberto Kalil Filho, David Uip e até Ludhmila Hajjar, que se movimentou para assumir o Ministério da Saúde.
A tendência é que o senador Omar Azis (PSD-AM), que tem apoio do governo, ocupe a presidência da CPI. Ele já se posiciona de maneira contemporizadora: “Não tem governo, seja de direita, centro ou esquerda, que não tenha cometido equívocos nessa pandemia. Em todos os estados, está tendo morte. O João Doria (PSDB, governador de São Paulo) é 100% contrário ao pensamento do Bolsonaro. São Paulo, por acaso, está vivendo um mar de rosas?”, disse na sexta.
Para a relatoria, o nome mais forte é o de Renan Calheiros (MDB-AL), que mostra postura mais combativa: “A CPI vai investigar os fatos determinados e fatos conexos. Num aprofundamento da investigação, saberemos se podemos responsabilizar alguém. Se responsabilizarmos, isso terá consequências penais, civis, administrativas. Mas não dá para antever o que vai acontecer, seria um mero exercício de futurologia”, disse ao Valor.
Membro da CPI, o senador Tasso Jereissati também falou. Em entrevista à Folha, o tucano foi contundente: “Não há dúvida nenhuma que um dos principais culpados pela situação a que nós chegamos é o governo federal”. Para ele, a CPI pode provocar uma mudança “para melhor” em Jair Bolsonaro “que mudou em relação à vacina, mas não mudou em relação ao afastamento social”. “Se no andamento da CPI, por exemplo, houver provas de que a atuação da Presidência da República obstruiu e boicotou um processo de afastamento social, isso pode realmente forçá-lo ou, pelo menos, pensar duas vezes para se portar de maneira diferente”, disse.
Essa entrevista foi publicada na sexta-feira. Pois bem: no sábado, o presidente parece ter dado um recado para seus críticos. Não só ignorou os protocolos sanitários, dispensou o uso de máscara e provocou aglomeração em uma viagem à Goianápolis (GO) – como levou a tiracolo o ex-ministro Eduardo Pazuello. Está para sair a nomeação do general da ativa para o comando da Secretaria Especial de Modernização do Estado, ligada à Secretaria-Geral da Presidência.
Enquanto Jair Bolsonaro se recusa a receber uma dose de vacina, embora sua vez na fila tenha chegado há mais de duas semanas, no Peru o ex-presidente Martín Vizcarra foi inabilitado de exercer qualquer cargo público por dez anos como punição por ter se vacinado de forma irregular e em segredo contra a covid-19. O Congresso peruano aprovou na sexta-feira, por 86 votos a zero a inabilitação do político – que foi o mais votado nas eleições legislativas do dia 11 de março, com mais de 165 mil votos.
Para o Congresso, o ex-presidente é culpado de tráfico de influência, conluio e por mentir em suas declarações sobre o escândalo envolvendo as vacinas que ele, seus familiares e membros do alto escalão de seu governo receberam antes do prazo determinado pelas campanhas de imunização do país.
O “vacinagate” veio à tona em fevereiro por meio de reportagens publicadas pela imprensa peruana. Na época, Vizcarra admitiu ter recebido doses do imunizante produzido pela Sinopharm em outubro de 2020, mas alegou que ele, sua esposa e seu irmão foram vacinados porque eram voluntários no ensaio clínico organizado pela universidade responsável pelos testes da vacina no país. A instituição negou o envolvimento de Vizcarra e seus familiares no programa de ensaios.
De acordo com a imprensa peruana, o número de funcionários do governo imunizados às escondidas pode ser muito maior, já que, além das doses experimentais utilizadas nos estudos, a Sinopharm forneceu outras duas mil “vacinas de cortesia” a responsáveis pelos ensaios e membros do governo. Nesse sentido, as ex-ministras da Saúde e das Relações Exteriores, também flagradas no vacinagate, foram inabilitadas pelo Congresso na sexta.
São excelentes as notícias divulgadas pelo governo do Chile sobre a efetividade da CoronaVac, ou a proteção que ela confere em condições de ‘vida real’. Os números mostram que, 14 dias após a segunda dose, houve uma efetividade de 67% contra infecção sintomática por covid-19, 85% contra hospitalizações, 89% contra internações em UTI e 80% contra mortes.
Ou seja, o risco de uma pessoa vacinada morrer é 80% menor do que o de uma não-vacinada. Não é uma proteção total, como já alertamos aqui, mas é bem alta. O documento divulgado pelo Ministério da Saúde diz que, “como não temos vacinas 100% eficazes, é fundamental que TODOS recebamos” e ressalta que outras medidas preventivas devem ser mantidas.
O Chile continua com uma das campanhas de vacinação mais rápidas do mundo e baseia-se quase completamente no imunizante chinês. Um terço dos chilenos já receberam duas doses de vacinas. Entre eles, 91% tomaram a CoronaVac e só 9% a vacina da Pfizer – desta última, foram entregues menos de dois milhões de doses das 10 milhões contratadas em setembro.
Ainda vai levar tempo até os efeitos da vacinação serem sentidos para valer no Brasil. Faz três meses desde que a campanha nacional começou, mas só um terço dos grupos prioritários recebeu alguma dose de imunizante. A promessa inicial do Ministério da Saúde era terminar essa fase em quatro meses, como lembra o UOL. Mas só foram aplicadas 35 milhões de doses até agora; para alcançar todas as pessoas desses grupos, faltam 120 milhões.
Numa projeção otimista, em que não haja mais atrasos nas entregas, essa população pode receber ao menos a primeira dose até junho. Mas Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, acredita que isso só deve acontecer no fim de julho, por conta do nosso histórico de mudanças no cronograma. Nesse caso, as segundas doses terminariam de ser distribuídas em outubro. E então faltariam ‘apenas’ os mais de 80 milhões de adultos brasileiros que não estão em nenhum grupo prioritário…
A despeito disso, neste fim de semana o presidente Jair Bolsonaro enalteceu nas redes sociais a velocidade da imunização do Brasil. Já o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, foi a campo aplicar injeções pessoalmente. “Eu pensava que salvava a vida do povo fazendo cateterismo, mas estava enganado. A gente salva a vida das pessoas vacinando a nossa população”, disse.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, mandou ofícios a todos os 27 governadores pedindo explicações sobre a lentidão na vacinação. Há uma discrepância entre as doses já entregues pelo governo federal (que chegaram a 50 milhões) e o total efetivamente aplicado. Por conta disso, recentemente viralizaram nas redes sociais posts dizendo que o problema no Brasil não é a falta de vacina, mas a aplicação na “linha de frente”.
Especialistas já explicaram, porém, que a diferença está ligada principalmente ao intervalo de entrega das vacinas aos postos de saúde e à demora no registro das informações em alguns lugares.
E tem também a reserva de vacinas para a segunda dose. Como se sabe, o governo federal pediu que estados e municípios parassem de fazer isso, argumentado que a distribuição estava normalizada e que não havia risco de desabastecimento. Porém, o Fórum de Governadores decidiu manter a orientação para que parte das doses seja estocada. Dado nosso cenário de constantes incertezas, faz sentido. Na Paraíba, o MPF, o Ministério Público da Paraíba e o Ministério Público do Trabalho enviaram à Saúde um ofício pedindo que seja priorizada a CoronaVac ao enviar novos lotes de vacina para o estado. O motivo: a falta desse imunizante para a segunda dose.
Os médicos que defendem o mentiroso tratamento precoce têm obtido ganhos financeiros e políticos. O Estadão mostra que ao menos quatro profissionais usaram a fama que essa defesa lhes garantiu nas redes sociais para tentar a sorte nas últimas eleições – e um conseguiu. Pedro Melo (PSL) foi eleito vereador da cidade de Porto Ferreira, no interior de São Paulo. Em uma live transmitida em março no canal da Associação Médicos pela Vida, criada para defender a cloroquina, ele admitiu que suas contas criadas nas redes sociais para “orientar a população sobre o tratamento precoce” o ajudaram a se eleger.
Outro exemplo de vantagem é dado pela médica Raíssa Soares, que foi convidada por Jair Bolsonaro para discursar sobre o tratamento precoce em um evento no Palácio do Planalto em agosto passado. Ela usou sua fama para fazer campanha para o candidato Jânio Natal (PL), que concorria à prefeitura de Porto Seguro. O político foi eleito e a nomeou secretária da Saúde. Agora, ela planeja disputar o governo da Bahia em 2022 – “se tiver o apoio do presidente Jair Bolsonaro”.
Os influencers do “tratamento precoce” também têm outro tipo de ganho, o financeiro. O recém-formado médico alagoano Marcos Falcão mantém desde 2014 um canal de direita no YouTube, hoje com mais de 200 mil seguidores. Em março, ele divulgou seu número de WhatsApp oferecendo “tratamento precoce” por telemedicina. Cobra R$ 150 por atendimento, e afirma que já foi procurado por mais de dois mil pessoas. Se tiver ‘atendido’ todas, ganhou R$ 300 mil. Segundo ele, não está dando conta de responder a todos os pedidos de consulta. Ele também tem planos políticos: pretende se candidatar a deputado federal nas próximas eleições.
O Conselho Federal de Medicina continua dando guarida a esse tipo de balcão de negócios com medicamentos não só eficazes, mas perigosos, e mantém parecer de abril de 2020 que autoriza médicos a indicarem hidroxicloroquina e azitromicina.
Os números de casos e óbitos por covid-19 no Brasil pararam de crescer nas últimas semanas. Mas tem um problema: eles estacionaram em um patamar altíssimo. No ano passado, o país ficou três meses em um ‘platô’ de cerca de mil mortes diárias, e só então elas começaram a cair. Agora estamos muitos degraus acima, em cerca de três mil. E os hospitais seguem sobrecarregados, em risco de colapso a cada nova subida nas internações.
É verdade que dessa vez temos vacina, mas como vimos, deve levar meses até que todos os grupos prioritários sejam protegidos. O que freou as contaminações até aqui foram as medidas de restrição de mobilidade, que estão rápida e precocemente sendo flexibilizadas. “O Brasil só deu uma respirada, encheu pulmão de ar e já vai voltar a mergulhar de novo. Não deixou cair o número de casos para valer”, alerta o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt na BBC.
Segundo suas análises, alguns estados já mostram uma “reversão de tendência”, ou seja, quando a desaceleração das infecções diminui, caminhando para acelerar de novo. É o que acontece na Bahia e no Amazonas. Em outros, como o Rio, nem chegou a haver desaceleração.
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Como a CPI do Genocídio pode alcançar Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU