04 Março 2021
“A própria razão do diálogo inter-religioso não nos é imposta de fora, mas, pelo contrário, o encontramos no conteúdo da nossa própria fé. Portanto, não se trata de um acréscimo, nem de algo opcional, mas de algo fundamental para a missão da Igreja. É possível fazer uma hermenêutica da fé que nos leve a concluir que o diálogo pertence à fé em Jesus Cristo e não a uma imposição externa, e que, além disso, longe de questionar a própria identidade, reforça e expressa em toda a sua virtualidade”, escreve Fermín Rodríguez López, professor do Departamento de Teologia da Universidade Loyola, Espanha, em artigo publicado por Religión Digital, 16-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A primeira semana do mês de fevereiro foi instituída pela Assembleia Geral da ONU como a Semana Mundial da Harmonia Interconfessional entre todas as religiões. Em sua resolução de aprovação (20 de outubro de 2010), afirma que a compreensão e o diálogo entre religiões constituem dimensões importantes da cultura de paz e destaca a necessidade imperiosa de que as distintas religiões dialoguem em favor de uma maior compreensão mútua, harmonia e cooperação e que as crenças e imperativos morais de todas elas incluam a paz e a tolerância.
Ademais, em 04 de fevereiro deste ano, celebrou-se pela primeira vez o dia mundial da fraternidade humana. Precisamente, essa foi a data escolhida, em 2019, em Abu Dhabi, para a assinatura do “Documento sobre a Fraternidade Humana. Pela paz e a convivência comum”, pelo Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, e Sua Santidade o Papa Francisco. Sem dúvida, fazendo honra ao santo de Assis, o Papa deu um forte impulso ao diálogo inter-religioso.
A isso ele se comprometeu em 20 de março de 2013, uma semana depois de sua eleição, em Roma, diante dos representantes das outras religiões, afirmando que “a Igreja Católica é consciente da importância da promoção da amizade e do respeito entre homens e mulheres das diversas tradições religiosas”. Por isso, a expressão “cultura do encontro” e tudo o que ela implica são uma constante presente ao longo de seu magistério.
Recentemente, em seu discurso inaugural como presidente dos EUA, Joseph R. Biden demarcava que “a história e o futuro dos n não depende apenas de um de nós, tampouco de alguns de nós, depende de todos nós”. Palavras que podemos assinar para qualquer nação em particular e para toda a humanidade em geral.
Igualmente, coincide a Encíclica Fratelli Tutti sobre a necessária inclusão de todos para assim caminhar rumo a construção de um amanhã em harmonia. “O futuro não é monocromático, mas sim é possível nos animarmos em olhá-lo na variedade e na diversidade do que cada um pode contribuir... porque a paz real e duradoura é possível só a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira” (n. 100 e 127).
Embora o diálogo inter-religioso faça parte deste apelo à cooperação para o bem comum, ainda podemos dar um passo adiante e buscar um fundamento teológico para ele. A razão última desse encontro e cooperação entre religiões não é sociopolítica, nem nasce, em última análise, como uma resposta forçada ao contexto desafiador em que vivemos, nem é o resultado da diplomacia que busca a paz a todo custo; se fosse, seria uma mera ‘bondade’ ou ‘moda efêmera’.
A razão última, argumenta Francisco no final da Fratelli Tutti, está em Deus, é teológica: “O ponto de partida deve ser o olhar de Deus” (n. 281). Por isso, porque a razão não está em nós, podemos permanecer firmemente enraizados na nossa própria identidade cristã, “da qual não devemos abdicar para agradar ao outro e, ao mesmo tempo, ter a coragem da alteridade, que implica o pleno reconhecimento do outro e de sua liberdade” (Francisco, Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019).
E a própria razão do diálogo inter-religioso não nos é imposta de fora, mas, pelo contrário, o encontramos no conteúdo da nossa própria fé. Portanto, não se trata de um acréscimo, nem de algo opcional, mas de algo fundamental para a missão da Igreja. É possível fazer uma hermenêutica da fé que nos leve a concluir que o diálogo pertence à fé em Jesus Cristo e não a uma imposição externa, e que, além disso, longe de questionar a própria identidade, reforça e expressa em toda a sua virtualidade. Aqui estão quatro argumentos teológicos que apoiam o diálogo inter-religioso.
Em primeiro lugar, como apontamos acima, é o argumento teológico. A origem ontológica do diálogo da Igreja com as outras religiões encontra-se no próprio mistério da Trindade. A vida imanente da Trindade é um mistério dialógico. A doutrina trinitária explica esse mistério reunindo elementos aparentemente inconciliáveis, a saber, a unidade e a indivisibilidade da natureza divina junto com a pluralidade das pessoas e das relações.
Longe de constituir uma mera obra de arquitetura teológica, é uma tentativa em que, a partir da fé, a Igreja tenta chegar a uma compreensão da revelação divina em Jesus Cristo que nos permita vislumbrar a presença de uma vida de comunhão e troca em Deus. Algo que João, em sua primeira carta, condensou em palavras mais simples, mas profundamente cheias de conteúdo, “Deus é amor”.
Com base nessa breve declaração, Karl Rahner argumentou que qualquer teologia que busque alcançar uma compreensão cristã de outras religiões que, por sua vez, apoie o diálogo inter-religioso, deve começar com o princípio fundamental da vontade salvífica universal de Deus (cf. Kirche, Kirchen und Religionen, 357). Porque falar a verdade como cristão não significa exclusão, mas comunicação, relacionamento e inclusão. Bem, em última análise, a verdade não é algo que alguns de nós possuímos em oposição a outros, mas Alguém que nos possui, sustenta e ama a todos e, portanto, nos coloca na mesma órbita de relação de amor uns com os outros.
Nas palavras a seguir, o Papa Francisco traduziu este princípio em um discurso em Nairóbi em 2015: “O diálogo inter-religioso nasce de nossa convicção na universalidade do amor de Deus e na salvação que Ele oferece a todos”. Como reflexo ad extra da mesma vida divina ad intra, a história da salvação se desenvolve em um diálogo constante da salvação de Deus com quem é seu outro, o ser humano. Deus é o único criador de tudo e, portanto, é o Pai de todos. Um é a família de Deus desde a sua origem até ao seu destino final, que não é outro senão o próprio Pai que criou tudo o que existe através da sua Palavra universalmente presente na criação.
Em continuidade com o que foi dito até agora, o segundo dos nossos argumentos é duplo, cristológico e pneumatológico, e presente na oração da Igreja: “Vós sois santo, ó Deus do universo, e tudo o que criastes proclama o vosso louvor, porque, por Jesus Cristo, vosso filho e Senhor nosso, e pela força do Espírito Santo, dais vida e santidade a todas as coisas” (Oração Eucarística III). O diálogo de salvação com a humanidade, que brota da própria vida imanente de Deus, atinge o seu ápice e a sua realização na encarnação do Filho pela ação do Espírito Santo.
Na Gaudium et Spes, o Concílio Vaticano II afirma que, com a sua encarnação, o Filho único se uniu a cada pessoa humana, sem exceção, redimindo cada pessoa humana e, desta forma, “mesmo quando tal homem disso não se acha consciente: Cristo, morto e ressuscitado por todos os homens, a estes — a todos e a cada um dos homens — oferece sempre... a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação” (João Paulo II, Redemptor Hominis, 14).
Essa luz universal é o próprio Espírito Santo, que trabalha no coração de cada pessoa individual e ativo em uma diversidade de dons entregues à pluralidade dos povos, culturas e religiões para o bem da única família de Deus. Por isso, concluem os Padres do Concílio: “devemos crer que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de que, na forma conhecida de Deus, associem-se a este mistério pascal” (Gaudium et Spes, 22).
A Igreja, corpo de Cristo animado pelo Espírito, não é impedimento para o diálogo, mas sim que este é parte de sua vocação e missão; por isso, o terceiro argumento eclesiológico. Tendo-se proposto o Vaticano II a “apresentar a todos a natureza e a missão universal da Igreja” a definiu “como um sacramento, ou seja, sinal e instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (Lumen Gentium, 1).
Bastaria aqui perguntar-nos se, entre as muitas maneiras de realizar esta sacramentalidade, não é aceitar o desafio de encontrar outras tradições religiosas em busca da verdade e da cooperação em favor de soluções comuns aos desafios que afetam a humanidade. A natureza íntima da Igreja é ser família, pois o princípio imanente que a anima desde dentro é a própria vida trinitária; este ser da Igreja se manifesta e se desenvolve externamente como família, criando relações familiares de comunhão e amor com outras famílias religiosas.
O quarto e último argumento é o antropológico. Deus dá à pessoa a sua própria vida trinitária, habitando-a e fazendo-a acreditar, ter esperança e amá-la. Essas três virtudes teológicas encontram expressão concreta, entre outras, no diálogo inter-religioso. Como busca comum da verdade, é um ato de obediência à fé na verdade que ultrapassa a todos nós e está além de todos os interlocutores. Na esperança, lançamos nossos olhos no futuro e enxergamos além de nossas discrepâncias e dificuldades presentes. É o Horizonte que nos move a todos desde dentro, nele percebemos e visualizamos um futuro de reconciliação e paz para todos quando Deus é tudo em todos.
O diálogo não se concentra no presente, nem encontra sua motivação última nas diferenças. Pelo contrário, o que realmente dinamiza e apoia o diálogo entre os diferentes é a promessa divina de um futuro de reconciliação quando nossas diferenças fizerem sentido. Da mesma forma que o amor não busca a si mesmo ou o seu próprio benefício, o verdadeiro diálogo introduz os interlocutores em uma dinâmica de esvaziamento que os impede da tentação de fazer proselitismo, de seguir agendas ocultas que apenas buscam transformar o outro em uma imagem de si mesmo.
Porém, voltando ao primeiro argumento, o diálogo reflete o olhar amoroso de Deus que descobre a bondade própria da criação. O diálogo é, portanto, a aceitação e o respeito do outro, não apesar das diferenças, mas nas suas diferenças. Revela-nos que essas diferenças são os canais pelos quais a graça chega até nós; É, como afirmou Bento XVI em Africae Munus, “a capacidade de reconhecer o que há de positivo no outro, de aceitá-lo como um dom que Deus me dá por meio daquele que o recebeu, que então se torna administrador das graças divinas”. Esta forma de diálogo expressa simultaneamente nosso amor comum pelo Pai de todos e nosso compromisso comum e recíproco para com os outros.
Esperançosamente, tivemos muito a dizer e perguntas a responder, porque temos a possibilidade de continuar a dialogar. Nosso objetivo no momento era reconhecer, como disse João Paulo II na Redemptoris Missio, que “o diálogo inter-religioso faz parte da missão evangelizadora da Igreja. Não se opõe à missão ad gentes; além do mais, ele tem laços especiais com ela e é uma de suas expressões”.
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Uma fundamentação teológica para o diálogo inter-religioso? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU